MANUSCRITOS IV

O perfeito é inimigo da perfeição

 

Assim que o ônibus me deixou na pacata vila chinesa localizada na subida do Himalaia, deixei a minha bagagem na única hospedaria do lugar e me dirigi à casa de Li Tzu. Eu tinha ido para mais um breve período de estudos com o mestre taoísta. Quando passei pelo portão, Meia-noite, o gato negro que morava na casa, me ofereceu um olhar entediado e voltou a dormir. Esperei terminar uma sessão de meditação na qual Li Tzu orientava uma turma de alunos oriundos de todos os cantos do planeta. Fui recebido com a sua habitual alegria serena e logo estávamos na cozinha para um chá. Enquanto as ervas aguardavam em infusão, começamos a conversar. Ele estava muito feliz, pois tinha encontrado recentemente o Velho, o monge mais antigo da Ordem, em uma solenidade para antigos acadêmicos na universidade inglesa onde tinham se formado. Embora frequentassem cursos diferentes, fora lá que iniciaram a sólida amizade que atravessava décadas. Comentou que era muito interessante rever os companheiros com quem dividira aqueles anos de estudo. Cada qual seguira uma direção, de acordo com as circunstâncias da existência. Reparou que para alguns o tempo havia sido generoso; para outros, cruel. Vários colegas estavam inegavelmente melhores, apesar da idade, estampando o sorriso tranquilo daqueles que trazem a felicidade consigo, os gestos mansos da dignidade e o brilho no olhar típico dos que conquistaram a liberdade interior e a paz do coração; outros, entretanto, estavam céticos quanto à humanidade, desiludidos em relação à vida, sem qualquer esperança depositada em um amanhã diferente e melhor. Também havia aqueles que necessitavam contar vantagens vãs na tentativa de se iludirem maiores que os demais ou mesmo para acreditar que talvez fossem felizes. Eu quis saber a razão de o tempo não agraciar a todos da mesma maneira. Li Tzu deu de ombros, como quem diz o óbvio, e falou: “As escolhas. Elas desenham o destino e colorem a plenitude”. Enquanto vertia o chá para as xícaras, complementou: “Aqueles que tentaram conquistar o mundo perderam a si mesmo. Os que encontraram consigo ganharam a vida”.

Falei que, em relação a todas as coisas, ninguém deveria se contentar com menos do que aquilo que fosse perfeito. Li Tzu repousou a caneca de chá à minha frente e disse: “O Tao ensina que o perfeito é inimigo da perfeição”. Pedi para ele explicar melhor, pois não tinha entendido. Ele ampliou o raciocínio: “O perfeccionismo traz muito sofrimento por se tornar uma prisão ao invés de servir como ferramenta de libertação. A busca pela perfeição é a tentativa inútil de, tendo Deus como arquétipo, viver a perfeição inatingível, ao menos neste momento da existência. A batalha inglória de atingir o impossível pode causar muito sofrimento; a depender de como souber lidar com isto, você se frustrará, e esta frustração se manifesta pela descrença, desânimo, impaciência ou agressividade”.

Discordei de imediato. Citei o Livro de Mateus que aconselha: “Portanto, seja perfeito assim como o Pai Celeste é perfeito”. Questionei se ele achava que havia erro naquelas palavras. Li Tzu arqueou os lábios em leve sorriso e comentou: “O texto é irretocável em seu maravilhoso ensinamento. Jesus é o mestre que aperfeiçoou todos os demais. Na Bíblia encontraremos as mais valiosas lições de metafísica que existem. Apenas é preciso a exata interpretação, além de levar em conta a complicada questão das traduções para as diversas línguas a partir de um idioma limitado como o aramaico. Embora no Oriente não seja tão comum a tradição cristã como a encontramos no Ocidente, penso que a verdadeira sabedoria é única, independente de sua fonte. Todos os povos se encontram no Caminho. O amor é o ponto de encontro”.

“Não por acaso, conversei sobre essa questão recentemente com o Velho e temos o mesmo entendimento. Quando o mestre diz para buscarmos a perfeição ele não se refere a negação ou a supressão de nossos defeitos e dificuldades, mas quanto ao empenho de nosso aperfeiçoamento. Ele nos orienta a sermos pessoas inteiras e completas. Com toda a sombra e luz que nos envolve, sem escondermos de nós mesmos as arestas que precisam de lapidação. Devemos nos empenhar na transformação pessoal para que possamos ser diferentes e melhores a cada dia. No entanto, isso deve ser feito de uma maneira doce e suave, com a consciência que a evolução ocorre a passos lentos para que seja firme. Ao contrário, o perfeccionista quer a perfeição já, a todo momento e a qualquer custo. Ele não permite que se ande no compasso do próprio entendimento, como se a perfeição, seja em relação a si, seja quanto aos outros, tivesse que estar sempre pronta para o desfrute. Falta a percepção de que o Caminho é um processo, é uma travessia, que deve ser aproveitado passo a passo com empenho, alegria e admiração. No entanto, o perfeccionista tem olhos apenas para o destino. E se perde por isso”.

“O indivíduo perfeccionista, por ser rigoroso consigo, por não admitir a imperfeição, acaba por ser exigente em excesso com o mundo, se tornando uma pessoa chata e intolerante. O perfeccionista parece andar com um chicote na mão a açoitar a si mesmo diante dos menores erros e a toda a humanidade por seus equívocos. Se o sagrado é concebido por sua sabedoria, justiça e amor infinitos, será sempre um amigo e aliado em nossa jornada rumo à luz, jamais um feitor. Então, é primordial que troquemos o chicote por uma lanterna na viagem da evolução”.

“O perfeccionismo é a semente da intolerância, uma enorme e danosa sombra coletiva, na qual uns criticam os outros pelos mesmos erros, por dificuldades comuns, semelhantes a todos. Como se não bastasse, o perfeccionismo acaba por se tornar uma fábrica de hipocrisias. Pela dificuldade em lidar com a perfeição que nunca consegue alcançar, o perfeccionista precisa negar a si mesmo as próprias imperfeições. A maneira mais comum é por meio das incessantes críticas que o perfeccionista faz quanto ao comportamento alheio. Também costuma ditar regras como se fosse o senhor da humanidade; vigia a todos como a sentinela do mundo. A intolerância é um comportamento típico daqueles que vivem fora de si mesmos, que não fazem a mínima ideia de quem são”.

“Há também aqueles que, ao se frustrarem por não atingirem a perfeição no que são e em tudo que fazem, se escondem do mundo por sentir vergonha das suas dificuldades, pelo medo das críticas que porventura receberão. Aos poucos as suas forças são minadas pelos ralos da existência e eles acabam esquecendo dos seus sonhos, do seu dom e de todas coisas maravilhosas que existem na vida. Perdem o ânimo. Ânimo significa a força da alma. Logo, tornam-se desanimados. O desânimo se caracteriza pelo vazio que se instala no coração do ser. O coração de qualquer pessoa precisa pulsar todo o poder do universo que nele habita. É assim que encontramos e movimentamos o sagrado em nós ”.

Eu quis saber se todas as vezes que tecemos uma crítica ao comportamento alheio revelamos o lado perfeccionista que nos habita como estratégia de ocultar as próprias dificuldades. O mestre taoísta apenas balançou a cabeça em concordância.

Questionei se devíamos esquecer de buscar a perfeição para nos contentar em ser o que somos. Li Tzu franziu as sobrancelhas e corrigiu com firmeza: “Não foi isso que falei. Eu disse que devemos ser completos e inteiros ao invés de apenas perfeitos. O indivíduo inteiro conhece as suas sombras e a sua luz. Completa-se com as suas dificuldades, as quais trabalha para superar na medida que expande a consciência e amplia a capacidade de amar. Aquele que busca a perfeição é diferente daquele que a exige o perfeito de imediato, pois sabe que precisará da paciência e da tolerância para afastar a irritação e o inconformismo; a sua jornada será de alegria por cada vitória que alcançar sobre si mesmo, apesar das dificuldades ainda existentes; será impulsionado pelo ânimo da superação e não pela tristeza dos obstáculos. Será uma vida de avanços ao invés de uma existência de estagnação. O ser completo é consciente das suas imperfeições. Porém, sabe das infinitas possibilidades de transformação que possui para se tornar diferente e melhor, um pouco a cada dia. A pessoa que se imagina perfeita deseja a perfeição agora, de imediato. Por inatingível, sofre com a sensação de fracasso. O perfeito é a face sombria da perfeição”.

“O perfeccionista sofre com a síndrome da divindade. Ele não se permite humano por se desejar perfeito como Deus. Então sofre por sua humana desumanidade”.

“Quando me entendo por inteiro amplio as minhas capacidades. Ao me descobrir vaidoso vou buscar o valor da simplicidade; ao me reconhecer orgulhoso entendo o poder da humildade; diante dos preconceitos e da inveja resgato a pureza e a sinceridade; para me curar de uma mágoa uso o infalível perdão com a força incomensurável do amor. Quanto mais aceito as minhas sombras, mais me aproximo da luz.”

“Somente ao aceitar as minhas sombras me é possível iluminá-las; posso transmutar chumbo em ouro. Essa é a alquimia sagrada da vida”.

Ficamos em silêncio. Enquanto eu saboreava o chá, aproveitava a quietude para concatenar as palavras de Li Tzu. Foi quando tomei um susto. Eu sempre vira Meia-noite, o gato preto que morava ali, deitado. Pela primeira vez o vi andando. Ele tinha apenas três pernas. Apesar disto, se movia com certa agilidade. Ao notar o meu espanto, o mestre taoísta contou que o resgatou após um atropelamento, há muitos anos. Brinquei ao lembrar que gato era bicho de feiticeiro pela capacidade de transmutar as energias do ambiente. Li Tzu sorriu e disse: “Somos bons companheiros. Meia-noite, com as suas três patas, todos os dias me faz recordar das imperfeições; minhas e do mundo. Apesar do seu problema ele não desiste de caminhar. Assim, me oferece lições diárias de superação, humildade e compaixão”.

Esvaziou a xícara de chá antes de concluir: “Mas não é só isso. Ao não permitir que a mutilação atrapalhe a sua vida, ele me incentiva a mergulhar em minhas próprias imperfeições para encontrar aquelas que me impedem de caminhar. Dentro de cada uma das minhas imperfeições, e apenas lá, vou encontrar o melhor de mim que ainda não conheço.”

Interrompi para dizer que aquilo era incoerente. Era impossível encontrar o melhor no pior. Para mostrar que o óbvio não está na superfície, Li Tzu aprofundou o raciocínio: “O indivíduo supostamente perfeito não tem espaço para se expandir. Resta estagnado. Em cada imperfeição está oculta uma das chaves da evolução. Encontrar a chave desvenda o sagrado que me habita; quando giro a chave movimento o poder do universo que se manifesta através das minhas infinitas transformações. Isto ocorre quando me torno uma pessoa melhor; agrego uma virtude ao meu jeito de ser e viver; ilumino uma das minhas sombras. Percebe que eu preciso das minhas imperfeições para evoluir?”

Em seguida, finalizou: “Sou grato às minhas imperfeições, pois apenas elas me conduzem ao Tao. Ninguém chega à luz sem passar pelas próprias imperfeições.”

6 comments

Rose janeiro 24, 2018 at 12:53 pm

Gratidão! Rose.
Compartilhando:
Dificuldades na Prática da Reforma Íntima…
– Lutar ou não? essa indagação muitos encarnados se fazem a fim de avaliar a utilidade do complexo empreendimento da reforma íntima.
O sofrimento lhes será inevitável, pois os seus conflitos internos estarão em ebulição e não bastará a aparência para concretizar verdadeiramente qualquer modificação substancial.
Um dos primeiros entraves a ser removido é a ausência ou a dormência da autocrítica. As pessoas, de um modo geral, julgam-se isentas de avaliações ou se concedem o benefício da dúvida, o que dificulta ou impede o reconhecimento dos seus erros e dos desvios de toda ordem, muitas vezes a movimentá-las com frequência no cotidiano.
Não que todos os seres humanos considerem-se perfeitos.
Expressam aos outros que não o são, por certo: intimamente, porém, acham que são menos errados que o seu vizinho, portanto, mais perfeitos que o próximo. Aí está a chave inicial do insucesso na reforma íntima.
A persistência do indivíduo no descobrimento dos próprios defeitos ampliará consideravelmente o âmbito de possibilidades de êxito. Somente quem sabe os males que possui, pode curá-los. A ignorância é um sério entrave na renovação interior. Forças negativas, produzem reações similares. Cultivar maus pensamentos, portanto, cria um universo contraproducente ao encarnado.
Abrindo o coração para o bem, estará tecendo condições para um envolvimento positivo e, com isso, surgirá a possibilidade de ouvir críticas e estabelecer o diálogo acerca dos problemas que cercam sua personalidade e seu modo de agir.
Após ter assimilado o processo de autocrítica, o segundo passo será agir com sinceridade. De nada adianta enganar-se na reforma íntima, porque se assim o fizer ela não será autêntica. A sinceridade prevê a vontade de ouvir críticas para poder solucionar problemas, não com o sentido de retorsão ou revanche.
Quem crítica pode estar ou não no mesmo processo. Se estiver sua censura será fraterna, com o objetivo de esclarecer e não de ferir, tendo por pressuposto a mansuetude e o amor, príncipe dos sentimentos cristãos. Caso não esteja, ainda assim, será a objeção recebida com naturalidade e incidirá o perdão sobre aquele que não soube expressar-se ou mesmo assacou uma inverdade.
Uma terceira dificuldade a ser enfrentada é a bagagem secular de erros e mazelas que o Espírito traz consigo ao longo do seu processo evolutivo. São fatores determinantes para a sua maior ou menor resistência ao processo de reforma íntima. Não se trata de uma desculpa, nem de uma justificativa excludente, mas somente de mais um entrave na sua luta por um processo interior.
Obstáculo implacável constitui o maior ou menor desapego aos valores cristãos. Sem fé, não há força interna que seja capaz de levar o encarnado ao áspero combate que irá travar consigo mesmo, visando produzir, com eficácia, a sua reforma íntima.

(Texto extraido do Livro “Fundamentos da Reforma Íntima / Abel Glaser / Espirito Cairbar Schutel / Editora O Clarim)

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Claudia Pires janeiro 24, 2018 at 7:35 pm

Grata pelo texto .Entendo melhor agora a perfeição dentro do auto-conhecimento. Obgada!

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Roberto Pires janeiro 29, 2018 at 8:57 am

O perfeccionismo é um mal que nos machuca muito. Já fui muito e hoje brigo contra esse comportamento tão pernicioso. O texto relata fidedignamente o modo de pensar de alguém com esse transtorno. Parabéns.

Minha vida se tornou mais leve e gostosa, quando percebi o quanto isso me fazia mal e como as vezes me deixava manipular por pessoas que percebiam essa fraqueza.

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João Ricardo fevereiro 9, 2018 at 1:02 pm

Tenho esse problema de questionar e querer que as pessoas e o mundo sejam diferentes. Inclusive, cobro isso de mim mesmo e fico triste, ou, aborrecido quando cometo erros!
Não que eu queira a perfeição, mas que as decisões e as inicitivas sejam feitas com mais responsabilidades e ordem.
Realmente é um sofrer, pois não há retorno e nem consigo mudar nada com as minhas indignações. Obrigado pela lição.

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Jailson março 11, 2018 at 2:12 pm

Eu vejo os meus erros, eu procuro com humildade melhorar como pessoa, eu compreendo que no caminho do aperfeiçoamento contínuo não estou só, não sou sozinho na viajem do meu íntimo, compartilho a cada instante a oportunidade de querer o bem das pessoas que estão nessa mesma jornada ou em terrenos diferentes, o conhecimento nos proporciona horizontes que com a bússola da verdade estaremos travando uma guerra pacífica com os guerreiros da vitória.
Namastê

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Romario Sales março 27, 2018 at 5:03 pm

Obrigado por compartilhar!

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