MANUSCRITOS VI

Areia movediça

O dia amanhecia quando entrei na cantina do mosteiro. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, já deixava que uma xícara de café embalasse os seus pensamentos, enquanto se deliciava com uma fatia de bolo de aveia. Ele sorriu ao me ver. A alegria serena e o constante bom humor eram seus companheiros inseparáveis. Apesar de ter assistido a diversas situações complicadas ocorridas no mosteiro, não me lembrava de nenhuma que tivesse sido capaz de arrancá-lo do eixo de luz no qual caminhava. Impressionava-me a sua força mansa e equilíbrio improvável diante das mais duras provocações. Era algo que eu admirava e desejava para mim. Contudo, eu ainda estava bastante distante. Enchi uma caneca com café e me sentei ao seu lado. Comentei que aquele ciclo de estudos transcorria maravilhosamente bem. As aulas se mostravam produtivas e todos pareciam satisfeitos com os aprendizados oferecidos. No entanto, havia um fato recente que me intrigava. Miguel, um jovem e culto monge, na faixa dos trinta anos de idade, havia algum tempo, chegara emocionalmente despedaçado no mosteiro. A sua bela esposa falecera poucos meses após ter sido acometida por uma enfermidade avassaladora. Ele estava inconsolável. Foi acolhido pelo Velho com carinho e paciência. Naqueles dias era comum, logo cedo, antes do início das atividades, ver os dois andando pelos roseirais do jardim interno do mosteiro. Miguel recebeu as orientações e o amor necessários para superar um momento de extrema dificuldade. Misericórdia é a virtude de oferecer o nosso melhor, seja em palavras, seja em atitudes, para atenuar o sofrimento de alguém. Uma linda maneira de amar. O Velho fez isto com uma dedicação incomum. Mais rápido do que eu acreditava, Miguel conseguiu cicatrizar a ferida dolorosa. Eu acompanhara e apreciara cada etapa daquela valiosa transformação.

O que me intrigava não era a superação do Miguel, mas passado dois anos, ele havia conhecido outra moça, se apaixonado e casado. Não me causava estranheza o casamento, mas o fato de o Velho não ter sido convidado para a festa de celebração. Vários monges da Ordem estiveram presentes. Fiquei indignado justamente por restar esquecido aquele que mais se empenhou para tirá-lo do porão escuro, de onde chegou acreditar que nunca mais conseguiria sair. Incomodou-me a injustiça. No período de estudo seguinte, observei o Velho tratando-o com o mesmo carinho e atenção de sempre, como se não tivesse sido deixado de lado. Isto me intrigava. Confessei que eu jamais conseguiria. O bom monge franziu as sobrancelhas e disse em tom repleto de compaixão: “Ele deve ter motivos para isso”. Insisti que não era justo; pedi que ele me explicasse que motivos seriam esses. O Velho deu de ombros e argumentou: “Os motivos são dele, não meus. Embora eu desconheça quais são, não me cabe antever que eles não existam ou que sejam insuficientes. Ao contrário, cabe a mim respeitar as escolhas concernentes à vida do Miguel. Sua vida, suas escolhas. Um princípio filosófico que alicerça a dignidade e fundamenta a compaixão. Ao não aprisionar ninguém às minhas verdades e escolhas, eu me liberto por impedir qualquer dependência emocional, como dívida oriunda dos atos que pratiquei. No amor nunca haverá credores nem devedores. Esta ideia desconstrói sofrimentos”. Em seguida acrescentou: “Por isso os poetas cantam que o amor liberta”, e fez uma pergunta retórica: “Entendeu agora?”. 

Depois, acrescentou: “Não me cabe gerenciar as escolhas de ninguém. Tenho apenas de cuidar para que o melhor de mim jamais me escape. Nada mais. Isto é libertador. Se não me esforçar para compreender as dificuldades alheias e acolher as inadequações com a necessária compaixão, passarei a existência acreditando que o mundo conspira contra mim. Será um sofrimento infantil, desnecessário e sem fim”. Falei que não era fácil agir desse modo. Ele explicou: “Não é fácil por causa do software pré-instalado em nosso inconsciente, denominado condicionamentos ancestrais, que nos faz acreditar que todas as nossas contrariedades, frustações e decepções existem porque sou uma pessoa boa em um mundo ruim. Sinto-me perseguido, sem lugar e constantemente desconfortável; os dias se fazem pesados. Faz-se necessário desmontar esse raciocínio limitante; do contrário, o sofrimento nunca cessará. Uma nova maneira de pensar, bastante simples, precisa ocupar o seu devido lugar”. Bebeu um gole de café e esclareceu: “Em verdade, sem exceção, caminhamos no tênue limite entre o bem e mal. Se reajo mal diante da maldade, também me torno um homem mau. Se a desonestidade de alguém me faz agir da mesma maneira, permito que o mundo estabeleça a linguagem que irei usar. Se me irrito ou entristeço por causa da ofensa ou da acusação que alguém me faz, deixo que o desequilíbrio dos outros me contagie e me faça sofrer. Não há sabedoria nisto. Se me envolvo em mágoa ou ressentimentos em razão da escolha de alguém, concedo aos outros o poder de decidir o veneno que me adoecerá e desperdiço a alegria indispensável à leveza dos dias. Não há amor nisto. Ao deixar que isso aconteça, abandono o melhor de mim; a minha luz se apaga. Torno-me uma pessoa amarga, ou ainda mais grave, um indivíduo que acredita que a maldade se faz indispensável em um mundo malvado. Fico aprisionado a uma ideia tola, estagnante e equivocada”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “Essa maneira de pensar me parece tão nefasta que a denomino de areia movediça. Ao aceitá-la, ela terminará por me engolir”.

Bebeu um gole de café e mostrou outro viés: “Cabe a mim decidir quem serei e a maneira como viverei. A ninguém mais. Não posso justificar que reagi mal ou, ainda pior, me tornei agressivo ou triste porque alguém agiu errado comigo. Enquanto eu não conseguir ser quem quero me tornar me justificando nas influências externas danosas que recebo, significa que ainda não me tornei dono de mim. Quando reajo condicionado à ação dos outros, haverá mais do mundo e menos da minha essência em quem eu sou. Assim, dia após dia, sem me dar conta, me torno o avesso de quem quero ser”. 

Mordeu um pedaço de bolo antes de prosseguir: “Ao agir mal por causa da maldade alheia, entrego o poder da minha vida nas mãos de pessoas desequilibradas ou mal-intencionadas. Afasto-me da luz, traio a minha consciência e contrario o meu coração. Enquanto as atitudes dos outros me servirem de desculpa para eu explicar as minhas escolhas equivocadas, não conseguirei avançar”. Sacudiu a cabeça e disse: “Preciso me livrar dos enganos. Mostrar-me bom perante àqueles que me fazem bem não exige nenhuma dificuldade. A virtude reside em me manter firme aos meus propósitos luminosos quando diante dos reveses da existência. As virtudes precisam orientar todas as minhas palavras, gestos e reações. Por serem a confluência do amor com a sabedoria, as virtudes precisam se firmar como a regra, e também servirem à exceção, de cada uma das minhas decisões. São valores fundamentais de construção da obra de si mesmo. Eis a pedra angular da evolução. Esta é a fronteira entre a infância e a maturidade da alma; entre a dor e a cura. Esse é o poder da luz nas minhas mãos”.

Esvaziou a xícara de café e revelou: “O segredo está em não deixar que o coração seja afetado pelas as inadequações do mundo. Lembre-se, o coração precisa estar leve para que as ideias sejam claras. Do contrário, ficaremos aquém quando poderíamos ir além. Não existirá nenhuma liberdade. Nada em você será seu”.

Aquele período de estudos tinha se encerrado com muitos aprendizados. Dentre tudo que havia sido ensinado naqueles dias, a conversa com o Velho na cantina tinha sido o que mais me impactou. Contudo, não somos aquilo que sabemos; somos aquilo que fazemos. O aprendizado é somente a primeira etapa de cada ciclo evolutivo. Depois, se faz necessário transmutar, compartilhar e seguir ao encontro de novas e infinitas transformações. Inexoravelmente. 

Doze meses se passaram. Era o dia no qual os monges chegariam para um novo ciclo de conhecimento. Seriam quatro semanas de aulas, debates e reflexões. A cantina era ponto de encontro para as conversas informais. À medida que chegavam, os monges deixavam as malas nos quartos e iam rever os amigos. Iam também em busca de uma xícara de café acompanhada com um pedaço de bolo. A alegria era indescritível. Muitas histórias para contar, além das expectativas quanto aos aprendizados que seriam permitidos. No entanto, nem tudo são flores em um jardim. A erva daninha da amargura sufocava as minhas margaridas; as larvas da raiva devoravam os meus lírios. Explico. Uma prima muito próxima a uma das minhas filhas, contrariada com uma escolha que fiz, havia distorcido alguns fatos e os usara para que a minha filha ficasse magoada comigo. Isto criou entre pai e filha um atrito que nunca houvera, com ações e reações muito ruins. Tivemos um sério desentendimento; ela fora agressiva como nunca antes. Estávamos magoados um com o outro, a ponto de eu decidir que me afastaria dela por tempo indeterminado. Também não mais lhe prestaria qualquer ajuda financeira. Considerei uma ingratidão o seu comportamento diante do pai que eu acreditava ter sido por mais de trinta anos. Que ela seguisse a vida distante de mim e que terminasse o mestrado com os seus próprios esforços. Uma decisão irrevogável. 

Sentado na última mesa, próximo à janela com vista para as montanhas, eu conversava com o Velho. Contei os fatos e falei da decisão que havia tomado. Argumentei que eu precisava ser justo comigo. O tempo mostraria a ela quem era quem. O bom monge me ouviu com a sua enorme paciência e indescritível compaixão sem me interromper. Quando terminei, ele fez menção em falar, mas se calou. Ele olhava atento para a porta da cantina. Todos os monges pararam as suas conversas. Ao me virar, entendi o silêncio. A entrada de Miguel foi impactante. O jovem monge estava emocionalmente destroçado. Mais uma vez. O motivo nos foi explicado. A sua mulher, com quem havia contraído núpcias recentemente, após o falecimento da sua primeira esposa, tinha sido fatalmente atingida em um acidente automobilístico. O Velho aguardou que todos os monges expressassem solidariedade, se levantou, abraçou o Miguel e, como a cena de um filme já visto, o levou para andar nas vielas repletas de roseiras do jardim interno do mosteiro. 

Sempre tive o hábito de acordar muito cedo, com as estrelas ainda altas no céu. Naqueles dias, ao me dirigir para cantina em busca das primeiras canecas de café, eu os via conversando enquanto andavam por entre as rosas. Sentado à mesa próxima à janela com vista para o jardim, eu os observava e refletia. Mesmo relegado na festa, o Velho voltara a estender a mão no infortúnio. Não se tornara mau porque agiram mal com ele. Era o mesmo bom homem de antes. Ele não permitira que nada nem ninguém o arrancasse do seu eixo de luz. As inevitáveis agruras da vida jamais impediriam que o seu melhor florescesse e frutificasse no mundo. Ele não apenas sabia, mas também fazia. Isto se traduzia em inegável beleza e intangível leveza. Tive a nítida sensação de existir um gigante dentro daquele corpo franzino e alquebrado. 

Depois de duas semanas, embora não estivesse recuperado por completo, o que ainda demoraria algum tempo, Miguel estava um pouco mais fortalecido e equilibrado. Já caminhava sozinho pelo roseiral. Naquele momento era importante que fosse assim para que voltasse a acreditar em si mesmo e, por consequência, no poder irresistível da vida. Como se tornara um costume naqueles dias, eu o observava pela janela da cantina, enquanto o café impulsionava as minhas reflexões. Foi quando o Velho apareceu sem avisar e se sentou ao meu lado. Antes que eu falasse palavra, ele perguntou: “Ainda amargurado e ressentido?”. Entendi que o bom monge dava prosseguimento à conversa interrompida no dia da chegada ao mosteiro. Ele se referia às emoções que me dominavam após a briga com a minha filha. Ratifiquei a minha decisão de me afastar dela. O Velho me olhou com compaixão e indagou: “Vai jogar pelas regras das sombras?”. Antes que eu me justificasse, ele acrescentou: “Vai se tornar um homem mau porque agiram mal contigo?”. No estilo socrático, continuou: “Qual a diferença haverá entre você e um troglodita qualquer?”. As perguntas escalavam nuances de raciocínio.

Embaralhado entre as emoções densas que estreitavam as minhas escolhas e a verdade que ressaltava à consciência, demorei a responder. Expliquei que eu precisava ser justo comigo. A minha filha tinha sido excessivamente agressiva e precisava entender o limite que ultrapassara. Respeito é fundamental. O Velho franziu as sobrancelhas e argumentou: “Um dos maiores enganos é quando usamos boas ideias para sustentar as piores soluções. Sem dúvida, respeito é muito importante em qualquer relação, mas o banimento é a única ou a melhor maneira de você resolver isso? Existe sabedoria em se privar do convívio e se negar ao amor? Afastar-se da sua filha é abrir mão de tudo de bom que sempre houve entre vocês. Seria justo contigo e com ela?”. Então, concluiu sem deixar de me oferecer as possibilidades de regeneração, um exercício que fazia através das perguntas: “Ao se decidir pelo afastamento, você cederá à armadilha de quem manipulou a sua filha como isca. Vai deixar que a maldade vença? Vai abdicar da sua luz?”. 

Regenerar-se é retornar ao ponto da queda; se levantar e voltar a caminhar. Mais forte e equilibrado, seguir em direção até então inimaginável.

Antes de me deixar encontrar as respostas que eu precisava, o Velho me permitiu uma pista: “Boas escolhas não deixam sabor amargo no coração”. Uma lágrima rebelde revelou a purificação que a minha alma ansiava. Ao me envolver na luz oriunda daquelas palavras, o amor ocupou o seu devido lugar em mim, sem o qual nada faria sentido. Embora fosse simples, não era uma conversa qualquer; somente as perguntas certas nos permitem as melhores soluções. Entendi quais escolhas eu deveria fazer dali por diante para equacionar o conflito com a minha filha de maneira sábia e amorosa. Deveria haver compaixão para que pudéssemos nos perdoar; simplicidade para que pudéssemos afastar as máscaras dos enganos; humildade para cada qual admitir os seus equívocos. No mais, muita atenção para jamais voltar a participar como peças no tabuleiro do desequilíbrio dos outros, como meros joguetes da maldade alheia. Uma armadilha permitida em função de termos reagido mal diante do mau. Contudo, sempre haverá virtudes disponíveis para iluminar quaisquer sombras. Basta aprender a usar. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e sussurrou: “As melhores saídas serão sempre as que nos conduzem à beleza dos encontros”. O bom monge segredou-me uma verdade insofismável: “A maldade é como areia movediça. Ela se manifesta através de mil enganos e se esconde por trás de inusitados personagens. Enquanto não entendermos como isso funciona dentro da gente, seremos engolidos todos os dias”. 

Pediu licença e foi aos seus afazeres, não sem antes levar consigo uma caneca de café. Logo que amanhecesse eu telefonaria para a minha filha. Seria uma linda conversa, como são todas as conversas de amor. Eu não tinha nenhuma dúvida. Pela janela, voltei a observar a regeneração do Miguel, que reaprendia a viver. Embora por motivos distintos, semelhante oportunidade me fora concedida naqueles dias. Ao fundo, vi o Velho passar pelo corredor lateral do mosteiro, com seus passos lentos, porém, firmes. A sua mão estava estendida a todos. O bom monge não mais se permitia sucumbir à areia movediça das incompreensões que nos fazem parceiros involuntários da maldade. 

8 comments

Leticia Fonseca junho 27, 2021 at 4:44 pm

Os motivos são dele, não meus. Gratidão.

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Viviane Barbosa junho 28, 2021 at 8:59 pm

Gratidão por tamanho amor e sabedoria 😍

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Terumi julho 3, 2021 at 9:17 pm

Gratidão 🙏

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Moller julho 5, 2021 at 11:40 am

“Boas escolhas não deixam sabor amargo no coração”.

Muito bom Yoshaz. Grato!!

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SCHWEITZER julho 5, 2021 at 2:34 pm

“Boas escolhas não deixam sabor amargo no coração”.

Acho que essa citação, diz exatamente oq eu me sinto em relacao ao texto.

Me sinto bem alimento, com o coração satisfeito e repleto de luz.

Um linda e leve estoria, uma que alimenta não apenas a mente, mas a alma daqueles que leem.

Amei.

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Fernando julho 8, 2021 at 8:09 pm

Gratidão profunda e sem fim

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Sandro julho 16, 2021 at 9:34 pm

“Se me irrito ou entristeço por causa da ofensa ou da acusação que alguém me faz, deixo que o desequilíbrio dos outros me contagie e me faça sofrer.”

Obrigado, eu precisava ouvir essa…

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Elvis julho 28, 2021 at 12:00 pm

É a quinta vez que leio e sempre apreendo algo novo, muito obrigado.

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