Nova Iorque, Carnegie Hall. Uma orquestra ensaiava La Boheme. Sentei-me em uma das poltronas da plateia e me deliciei com o último ato da ópera magistralmente regida. Ao terminar, músicos e cantores se retiraram com a promessa de retornarem ao teatro dali a duas horas para o espetáculo daquela noite. Como se pressentisse a minha presença, o maestro se virou, me cumprimentou e perguntou: “Gosta de Puccini?”. Respondi que sim, porém, meu encanto maior foi notar que ele não usava nenhuma partitura para reger a orquestra. Ele deu de ombros, como se o fato fosse usual, e comentou: “Tenho-a bem clara na memória”. Indaguei se não temia esquecer. O maestro disse não com a cabeça e acrescentou: “As músicas que gosto ficam tatuadas em mim”. Insisti sobre o risco que corria; falei do constrangimento que sentiria caso ocorresse durante o espetáculo. Não custava se precaver, alertei. Ele franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Não conceda poder ao mal. Confie em si mesmo. Quem traz em si o poder da virtude é como um recém-nascido”. Falei que não tinha entendido. O homem explicou: “Nessa fantástica escola e oficina de aprendizados e realizações denominada vida, lidamos com toda a luz e escuridão que nos habita. Cada um de nós é o maestro a reger os instrumentos da orquestra que traz em si. Na descoberta de um som que sempre esteve fora do ritmo das virtudes, surge a possibilidade de afinar o tom. Uma oportunidade de transmutar ruídos em melodias, extrair o bem de onde antes reinava a incompreensão. Somente desta maneira a orquestra se aprimora. Algo precisa morrer em mim para que haja espaço para eu renascer. Todos os dias são bons para movimentos assim. A cada renascimento uma nova sinfonia se inicia. Quanto mais vezes morrer e nascer, mais virtuoso se torna o maestro. Fazer com que cada gesto entoe notas musicais luminosas compõe a perfeita ópera cósmica executada por mim ou por você”.
O músico prosseguiu: “Aquele que já morreu e nasceu mil vezes, ainda que em uma única existência, não será envenenado pelas serpentes nem alcançado pelas feras”. Antes que eu manifestasse o meu desentendimento, ele se adiantou: “Não falo do falecimento do corpo, mas da regeneração da alma. Deixar de ser quem éramos para nos tornar um indivíduo mais aperfeiçoado, com melhor compreensão sobre quem somos e uma diferente maneira de nos mover pela vida, permite o simbolismo de uma morte sem a qual não ocorrerá um renascimento. As virtudes são as fontes da força e do equilíbrio, da leveza e da suavidade. Para reagir da melhor maneira possível diante de situações desagradáveis, se faz necessário se mover de modo a não permitir que as confusões do mundo o arranquem do seu eixo de luz. Para tanto, ruídos das ruas não podem lhe impedir de escutar a voz da alma, a confluência interna do amor com a sabedoria. Isto o manterá firme em suas verdades e fará com que consiga evitar os conflitos, sempre desnecessários. Um jeito de ser e viver que o tornará imune ao veneno das maledicências, intrigas, ofensas e provocações”. Sorriu e ressaltou: “Não há como impedir que continuem sendo ditas e espalhadas, mas é perfeitamente possível não se envenenar com elas. Este é o poder que temos, já ouvimos falar, mas não sabemos usar. As multidões pouco ou nada sabem sobre ninguém. As pessoas estão condicionadas a acreditar nas suposições que criam na tentativa de preencher o vazio das incertezas que se agiganta e as incomoda; se frustram quando as expectativas geradas pelos seus desejos e interesses não são correspondidas; quando outro comportamento se mostra de modo a negar o seu, fazem juízo de valor tendo a si próprios como medida. Estão milhas e milhas distantes da verdade. No mais, gostam de depreciar as diferenças pela suposta comodidade de não precisar lidar com os seus próprios erros e medos. Iludem-se maiores do que são em devaneios vulgares. Sem se dar conta, se deliciam com a maldade”. Abriu os braços para evidenciar o óbvio das suas palavras e ressaltou: “Enfim, é impossível evitar que as pessoas falem, mas temos o poder de não nos deixar arrastar por suas vozes. Saber sobre si, basta. Não se trata de uma conquista fácil ou simplória. Para tanto, repito, há que se morrer e renascer mil vezes em uma única existência, como em uma viagem longa, difícil, porém, linda em descobertas, conquistas e realizações interiores”.
Perguntei sobre as feras a que se referira havia pouco. O maestro esclareceu: “São animais que se alimentam de outros animais. As feras sobrevivem da agressividade, nem sempre física. Elas mentem, fraudam, desprezam, iludem, escondem, coagem, cerceiam, subjugam para atingir os seus objetivos. Não sabem a diferença entre busca e desejo; se tornam escravas das paixões e ignoram que as genuínas vitórias não são sobre os outros, mas se referem às transformações internas”. Fez uma pausa para alertar: “Todo cuidado é pouco. Temos por hábito acreditar que as feras são os outros. Somos os outros dos outros. Em diferentes graus, não raro, somos nós as feras a depenar presas emocionais, cognitivas, físicas ou financeiramente mais frágeis. As virtudes amansam as feras do nosso quintal interno. Ao se recusar a viver como uma fera, não há como ser alcançado por ela. Não são os outros que estabelecem as sombras com que me relaciono; sou eu quem as define. O mal só faz morada em mim se encontrar um canto para habitar. Conhecer o mal é fundamental para se defender dele. Não fazer uso do mal é essencial para não se tornar sua presa. O mal alcança quem se deixa envolver por ele. Assim agem as feras”.
Comentei sobre a dificuldade de me valer apenas das virtudes para lidar com a aspereza que há no mundo. Admiti que tinha dias que me parecia uma tarefa impossível face à fragilidade diante de tanta agressividade. O maestro sorriu como se esperasse por aquele comentário e pontuou: “Ao se manter no raso da existência, as potências mostram uma aparência oposta ao que verdadeiramente representam. Fragilidade e força podem confundir olhares imaturos. Repare um recém-nascido, o seu corpo é frágil, porém, ao colocar a sua mão na dele, sentirá que o seu aperto de mão é forte. O que isso significa?”. Embora eu soubesse que o músico se valia de mais uma metáfora em torno do tema, não a consegui decifrar. Ele explicou: “A força com que um bebê fecha as mãos impressiona se comparado ao seu corpo pequeno e frágil. Assim é quanto a nossa verdadeira força. Um indivíduo de corpo franzino, mas de alma forte, mostra uma força desconcertante na firmeza mansa das suas atitudes, em uma vida virtuosa e coerente com as verdades que o orientam. Uma disciplina de desenvolvimento interno que não deve ser usada para vigiar os outros, mas apenas a si mesmo. Diante do bem e do mal, sim é sim, não é não; inexiste a conveniência do talvez. A firmeza é a virtude de se manter alinhado à verdade, como já a entende, principalmente quando diante de condições difíceis, tentadoras ou confortáveis. Por sua vez, a mansidão é a virtude de quem abdicou de qualquer variante de agressividade para consolidar as suas conquistas. A História é repleta de homens e mulheres assim”.
Se o Tao Te Ching é o livro do Caminho, da Verdade e das Virtudes, entender os pormenores do Caminho era o objetivo daquela inusitada viagem. Então, pedi para que esmiuçasse a ideia de força e equilíbrio, suavidade e leveza decorrentes do exercício das virtudes e da verdade. O maestro explicou: “A força é a potência que nos move. A vontade, a determinação e a persistência inabalável de seguir em frente não se origina dos estímulos externos, porém, dos movimentos internos”. Voltou a se valer da mesma analogia: “O recém-nascido desconhece a união entre homem e mulher, mas não lhe falta vigor”. Sorriu como se uma doce lembrança avivasse a sua memória e acrescentou: “Pode chorar o dia inteiro sem ficar rouco”. Em seguida, esclareceu: “Aquele que se permite morrer e renascer mil vezes traz em si a harmonia do atos. Não existirá mais a separação entre o mundano e o sagrado, seja de tempo, espaço ou escolhas. A transcendência da vida estará sempre embutida nos gestos simples de sobrevivência no decorrer dos dias da existência. Ao extrair a música sagrada através dos instrumentos mundanos, a perfeita harmonia se completa. Quem caminha por gosto não cansa; aquele que se torna inteiro na unicidade entre propósitos e ações não tem a força fragmentada pela separação do céu com a terra. Quando não há fragmentação interior, a força se multiplica. Almas fortes agigantam corpos franzinos”. Fez um pausa antes de prosseguir: “O equilíbrio reside na coerência entre o saber e o fazer, na aplicação da verdade e das virtudes em cada gesto simples do cotidiano. Quanto maior a dificuldade, mais o equilíbrio se consolida. Você conhece a nobreza dos valores que lhe movem e se vale apenas deles para avançar; eis a fonte legítima. Assim é a perfeita harmonia, quando nos sentimos equilibrados e fortalecidos, confiamos em quem somos para lidar com quaisquer dificuldades; os problemas são enfrentados com serenidade e criatividade, ao invés da agonia e desespero com os quais muitos ainda costumam se deixar envolver”.
Indaguei como aplicar a teoria à prática. Sem conhecer as ferramentas não há como as utilizar na obra. O músico fez uma breve descrição de algumas virtudes básicas: “A humildade é a virtude de se entender incompleto aliada à vontade de crescer infinitamente. O autêntico mestre será sempre um sincero aprendiz, disposto a rever conceitos, aperfeiçoar a verdade, ainda longe de se tornar absoluta, e agregar novas virtudes, essenciais à sua evolução espiritual. Trata-se de um luminoso movimento interno que se expressa com naturalidade através de ações simples e silenciosas no mundo. O orgulhoso é o oposto do humilde. Repare que no orgulhoso os seus movimentos são apenas externos na tentativa de ocultar uma enorme fragilidade interna, a qual se nega a enfrentar. São barulhentos e espalhafatosos pela necessidade de se fazerem notar. Apesar da aparência forte manifestada em arrogância e empáfia, a essência é fraca por ter sido abandonada; ele está fragmentado entre o interno e o externo, o mundano não dialoga com o sagrado que vive nele. São pessoas ásperas e tensas no trato pessoal; inexiste a leveza e a suavidade que expressam a harmonia individual”. Pedi para que conceituasse esses dois atributos. Eu os queria em mim. O maestro esclareceu: “Leveza é a característica daquele que já conseguem se mover pela vida sem mágoas e ressentimentos, sem cobranças nem exigências em suas relações interpessoais. Por terem reelaborado as questões mal resolvidas do passado, não mais permitem que as diferenças de olhares e posturas, comuns em todos os relacionamentos, se manifestem em explosões irritadiças nem em implosões de contrariedades. São solidários a todos sem a teimosia de os modificar. A suavidade surge da capacidade de se mover sem conflitos. Se pensar bem, são desnecessários. Para tanto, a paciência se faz indispensável. Uma virtude que surge da aceitação de que a vida nunca será do jeito que desejamos. No trato com toda gente reside um dos mais importantes desafios evolutivos. Aproveitei-os; quanto mais complicados, maiores as oportunidades de desenvolvimento; problemas complexos demonstram a confiança do mestre na capacidade resolutiva do aprendiz. Alegre-se e agradeça”.
Pedi para que falasse sobre a tolerância, uma virtude que muitos confundem com a paciência, e a compaixão, uma virtude essencial ao perdão, sem o qual será impossível seguir leve e suave. Ele esclareceu: “Desde que não atinja direitos fundamentais de outras pessoas, a tolerância consiste em respeitar as escolhas alheias, mesmo sem concordar com elas. Há muita nobreza em se viver assim. Assim como você e eu, todos têm o direito de seguir as suas próprias verdades. A compaixão vem da humildade em reconhecer as minhas imperfeições e dificuldades, pois, do contrário, irei me arvorar em juiz do mundo e exigir dos outros a perfeição que não tenho para oferecer”. Por alguns instantes, observou o teatro vazio e acrescentou: “Essas virtudes se tornam impossíveis de serem aplicadas corretamente se faltarem outras, como a simplicidade, a sinceridade e a pureza. A simplicidade reside na capacidade se olhar para si sem enganos, máscaras ou fantasias. Desnudar-se diante do espelho da verdade representa a morte para os vícios comportamentais que negamos a ver e, porquanto, uma oportunidade ao renascimento dedicado à reconstrução interior. A sinceridade fala do trato da verdade consigo mesmo. Mentimos por comodidade, vergonha ou fuga. Sem sinceridade, a honestidade, que é a verdade no trato com os outros, restará prejudicada; jamais conseguirei ser claro com alguém se não trago a clareza em mim. Enquanto adiarmos esse enfrentamento, nos manteremos andando em círculos que, em análise apurada, equivale à estagnação. Por sua vez, a pureza é a determinação de não se valer do mal em suas conquistas, mesmo quando está disponível e se mostra tentador e conveniente”.
Fez um gesto com a mão como se regesse uma orquestra e pontuou: “A sensatez é o maestro a determinar o momento em que cada uma das virtudes se fará necessária a execução das sinfonias de todos os dias. Silêncio e som são indispensáveis à música. Até o amor precisa de bom senso para não se perder nos campos da paixão que escraviza e do ciúme que destrói. Não há vitória fora do amor; e o amor precisa da sabedoria para amar mais e melhor. Poder sem equilíbrio leva à destruição. Quando desequilibrada, a virtude se perde no lado sombrio da vida. A fé vira fanatismo; a humildade se torna submissão; a simplicidade se confunde com simplismo; a tolerância se embaralha com a permissividade; a compaixão aguça o sofrimento; a humildade vira motivo de orgulho; a arrogância se faz enganar como se fosse respeito; a pureza tropeça na ingenuidade; o arrependimento se torna remorso e o perdão se perde na culpa. Força sem equilíbrio é poder vazio pela aspereza que instala um império na crença de que desta maneira as vitórias se tornariam mais acessíveis. A vida se resumirá em uma ópera mal escrita e desafinada por excessos, abusos, invasões e usurpações. Agressividade não é melodia, é barulho. A brutalidade em suas mil manifestações e disfarces. Ganhos viram perdas. Conquistas de superfície não vão além das aparências, trazendo à rebarba quedas profundas e duradouras. O Caminho não é assim. Sem entender o uso e a melodia de cada instrumento, não haverá nenhuma sinfonia. Apenas ruído e confusão. Restarão as ruínas dos teatros abandonados vencidos pelo tempo. Todo movimento na contramão do Caminho conduz ao esgotamento, desânimo e cansaço. Ao contrário do que muitos acreditam, os portais do tempo nunca foram as horas, mas as eternas transmutações interiores permitidas pelas infinitas mortes e renascimentos em si mesmo. Então, o tempo deixa ser o vilão que rouba os dias para se tornar o guardião que protege o viajante através do Caminho”.
Os músicos da orquestra retornaram. Sem demora, homens e mulheres, elegantemente vestidos, ocuparam as poltronas da plateia. Olhei para o maestro como quem pergunta onde eu deveria ficar. Ele me indicou um lugar na coxia e sussurrou que eu deveria fechar os olhos e ouvir. Apenas isso. A música aliada às vozes dos cantores que narravam um drama repleto de dificuldades, amor e superação formaram uma mandala de sons e palavras em mim. Ao abrir os olhos eu não estava mais lá.
Poema Cinquenta e Cinco
Quem traz em si o poder da virtude
É como um recém-nascido.
Não será envenenado pelas serpentes
Nem alcançado pelas feras.
O seu corpo é frágil,
Porém, o seu aperto de mão é firme.
Desconhece a união do homem com a mulher
Mas não lhe falta vigor.
Pode chorar o dia inteiro sem ficar rouco.
Assim é a perfeita harmonia.
Poder sem equilíbrio leva à destruição.
Força sem equilíbrio é poder vazio,
Ganhos viram perdas.
Isto não é o Tao.
Todo movimento contrário ao Tao leva ao esgotamento.
3 comments
Gratidão! 🙏😁
Gratidão 🙏
oroboros