MANUSCRITOS VI

A sorte nunca nos abandona

A oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos vinhos tintos e dos livros de filosofia, estava fechada. Os seus horários de funcionamento eram famosos por serem inusitados. Em geral, ele começava a trabalhar ainda de madrugada, com as estrelas altas, para encerrar o expediente na hora do almoço. Eu terminara mais um período de estudos no mosteiro e descera a montanha, de carona no caminhão do mercado, antes de o dia amanhecer. Como o trem que me levaria até a cidade mais próxima ainda demoraria a passar, eu aproveitei para conversar com o Loureiro e me encantar com a sua habilidade de costurar ideias, uma mestria igual a como fazia com o couro.  Daquela vez, a sorte parecia não estar do meu lado. Sem ter o que fazer, me dirigi a estação, onde havia uma cafeteria que funcionava a noite toda. Acomodei-me em uma das várias mesas. Pedi uma xícara de café e um pão na chapa com manteiga acompanhado de uma fatia do bom queijo da região. Ao fundo, um jazz na voz de Nat King Cole. Peguei na mochila um livro,O próximo passo, de Marcelo Cezar. Pronto, poderia ficar ali por dias sem nenhum problema. Na medida que amanhecia, outros passageiros chegavam para ocupar as mesas enquanto esperavam pelo trem. Pela janela envidraçada, por vezes, eu parava para refletir sobre o conteúdo da leitura e me distrair ao observar as pessoas que passavam na plataforma. Próximo ao horário de embarque, sou surpreendido com a entrada de Loureiro, sempre elegante do vestir e no agir, puxando uma pequena mala de bordo. Descobrimos que viajaríamos no mesmo vagão. A sorte tornara a sorrir para mim. Comemoramos com duas xícaras duplas de café.

Nessa metrópole, onde de lá eu embarcaria para o Brasil, Loureiro visitaria o irmão, um empresário muito bem sucedido em seus negócios, que se recuperava de uma delicada cirurgia. Aproveitaria para também visitar a irmã que morava na mesma cidade. Havia algum tempo que não os encontrava. Foi uma viagem rápida, com menos de duas horas de duração. Ainda no trem, recebi uma mensagem que o meu voo estava atrasado e somente embarcaria à noite. O sapateiro me convidou para acompanhá-lo. Aceitei de imediato.

Tomei um susto ao chegar na casa do seu irmão. Era um pequeno palacete do século XIX, finamente reformado e decorado. Havia requinte e bom gosto. Fomos recebidos por uma funcionária que nos encaminhou à sala de refeições. Uma enorme mesa repleta de iguarias nos aguardava para o café da manhã. Jean, o irmão de Loureiro, ainda demorou alguns minutos para descer do quarto. Foi quando chegou o filho de Jean, um jovem com quase trinta anos. Raul, como se chamava, trabalhava com o pai. Quando viu o tio, sorriu e deu um forte abraço em Loureiro. Fomos apresentados e o rapaz se mostrou gentil e atencioso. A conversa estava animada, o jovem lembrava de uma viagem de férias, quando ainda adolescente, fora acampar com o tio. Riam dos acontecimentos à medida que os recordavam. Como se fosse a mudança de cena em um filme, Raul mudou de comportamento de repente, assim que os pais entraram. A fisionomia do jovem passou do riso fácil à circunspecção. Cumprimentou os pais de maneira educada, quase formal. O desjejum me pareceu desconfortável, como se houvesse uma pressa implícita para que terminasse logo. A mãe perguntou pelos netos, se dando por satisfeita ao saber que estavam bem. Não se interessou por mais detalhes. Com o pai, a conversa se limitou aos negócios da empresa, a qual o filho assumira temporariamente o controle enquanto Jean convalescia. Quando surgiu uma oportunidade, Loureiro iniciou uma série de perguntas sobre a esposa e os filhos do sobrinho. O rapaz deu um largo sorriso; animado, contou sobre a escola dos meninos, das suas travessuras e da viagem que fariam nas férias para a praia. Disse que a esposa terminara a faculdade e estava à procura de emprego. A mãe, com polidez, como quem faz um comentário casual, lembrou que a faculdade da moça estava longe de ter o mesmo prestígio da universidade cursada pelo filho, sendo esta a provável razão da dificuldade que ela tinha para se colocar no mercado de trabalho. O sorriso do rapaz desapareceu. Como em uma cena repetida muitas vezes, Jean interrompeu o assunto, de maneira séria, fazendo outras perguntas ao Raul sobre os acontecimentos na empresa, mostrando que havia coisa mais importante para tratarem. Para mim, restou outra sensação; ao desviar a conversa de modo abrupto, talvez a intenção fosse a de mostrar que as dificuldades da nora não faziam parte do seu rol de interesses. Compreendi que a nora nunca teria espaço nos negócios da família, ao menos enquanto os sogros estivessem no controle. Sem demora, o sobrinho se despediu, pois iria trabalhar. O jovem se foi. Em seguida, o sapateiro tentou puxar conversa sobre assuntos pessoais, motivos que criam laços e intimidades. Uma família precisa desta proximidade e, até mesmo, cumplicidade. No entanto, Jean as respondia de maneira superficial para, em seguida, desviar a conversa para questões corriqueiras como política e esportes. Outra cena bem ensaiada. Naquela casa, havia um muro entre almas muito difícil de transpor. Sem demora, estávamos nos despedindo com a mesma formalidade que se encerra uma reunião de negócios.

Demoramos quase meia-hora para chegar à periferia da cidade. Não parecia a mesma cidade; em realidade, talvez não fosse. O táxi nos deixou em uma rua que era uma antiga vila operária, com todas as casas exatamente iguais, construída no início do século passado, na fase de industrialização da região, para que os funcionários não demorassem a chegar na fábrica de tecidos, que sucumbira aos processos empresarial de modernização e judicial de herança. Restaram as casas que foram vendidas aos antigos empregados com financiamento governamental. Um bairro muito simples que, apesar das evidentes dificuldades, me pareceu bem organizado. Ainda havia pequenos mercados e lojas de serviço para atender aos moradores, algo que não mais se encontrava nos setores sofisticados da cidade. De imediato simpatizei com o lugar, pois me lembrava, em uma versão bastante melhorada, do Estácio, bairro onde fui criado no Rio de Janeiro.

Fomos recebidos com algazarra pela Maria, irmã de Loureiro. Ao ver o táxi estacionar, ela foi para a calçada com os braços abertos e um sorriso largo. Me recebeu como se fôssemos amigos de infância. Sem me dar conta, eu estava em casa. Um surrado sofá, com o tecido puído e pés tortos, nos acomodou com boa vontade. Sem demora, Maria e Loureiro embalaram em uma animada conversava sobre os filhos, as delícias e contratempos que surgiam dos relacionamentos. Da sala, bem próxima à cozinha, era possível avistar as panelas sobre o fogão; o aroma delicioso me fazia desejar aquele almoço. Maria preparara a comida e convocara os quatro filhos para que fossem almoçar com tio. Seria um dia alegre para os sobrinhos que adoravam Loureiro.

Além dos filhos de Maria, fui surpreendido com a chegada de Anne, também convidada para o almoço. Anne era a jovem casada com o Raul. Os pais dela também moravam na vila operária e eram imigrantes. A maioria dos imigrantes têm uma linda história de superação quase nunca escrita. Sempre tive admiração e respeito pela coragem e determinação dessas pessoas. Foi na casa de Maria que Anne e Raul se conheceram e começaram a namorar. Conversei muito com a moça. Ela me contou que os seus pais tinham vindo da África; enfrentaram muitos reveses, mas apesar das dificuldades, ou talvez por causa delas, se mantiveram unidos. Tinham o cuidado de fazer com que a força de um se transmitisse aos demais; todos se fortaleciam para enfrentar as dificuldades e seguirem em frente. Se no âmago do ser encontramos a fonte interna de equilíbrio e força, a família representa uma poderosa fonte externa destes mesmos atributos.

Essa ideia ficou mais nítida para mim durante o almoço. Como à mesa não havia lugar para todos, almocei sentado no sofá. Pude assistir, como um observador privilegiado, a cena na qual os rapazes e moças falavam abertamente dos seus problemas momentâneos. Alguns opinavam sugestões, outros ofereciam palavras sinceras de entusiasmo, esperança e ânimo; de algum jeito, todos se interessavam e participavam da vida de todos. Dentro daquela casa não havia muros.

Foi uma tarde maravilhosa. Os rapazes e moças se foram após o almoço, pois tinham seus afazeres e trabalhos. Fiquei com Maria e Loureiro até a hora de partir para o aeroporto. Despedi-me dela com vontade de ficar e a promessa que retornaria em breve. Aquela casa era encantadora. Dentro daquela casa, havia um lar desperto; lar é uma casa com alma. Nem toda casa consegue ser um lar. Uma casa é um lugar que abriga pessoas; um lar acolhe uma família. O que difere uma da outra, são os muros interpessoais.

No trajeto ao aeroporto, Loureiro me perguntou a razão dos meus olhos tristonhos. Confessei que, após aquele dia, de tudo que havia assistido tanto na casa de Jean quanto na de Maria, compreendi que eu nunca morara em um lar, tampouco tivera uma família.

Relembrei que os meus pais se divorciaram quando eu e meus irmãos éramos adolescentes, ainda bastante imaturos. O imaturo nunca se percebe como tal, do contrário revelaria uma boa dose de maturidade. Foi um período complicado e nebuloso. Os meus pais estavam mais interessados em viver as suas novas experiências amorosas; os filhos foram liberados para conhecerem o mundo sem qualquer regra preestabelecida, razão de muitos equívocos e sofrimentos. Nunca nos faltou nada de essencial, ao menos no aspecto material. Embora morássemos em um bairro operário, tínhamos comida à mesa, roupa limpa para usar e boas escolas para cursar. Havia uma casa com um endereço certo; desde a separação, nunca mais tivemos um lar. Tampouco uma família.

Uma dor aguda me fez deixar escapar uma lágrima vadia. Loureiro me alertou que o passado é fonte de conhecimento, jamais de sofrimento. Cabe a cada um fazer o direcionamento correto para que as experiências sejam úteis e valiosas: “Faça com que a mente pacifique emoções. Nunca deixe que percorram em direção contrária, ou seja, as paixões atrapalharem os pensamentos. Todo sofrimento é um equívoco, pois pode se desmanchar através da ideia correta. Encontre o mestre escondido por trás de cada experiência; isto nos equilibra e fortalece”.

Admiti que não chorava pelo passado, mas pelo presente. Eu tinha passado por alguns casamentos e, como ele sabia, tinha duas filhas. Eu as amava demais. No entanto, como repetição de um antigo padrão, elas desde cedo decidiram por estudar em lugares distantes, cada qual em um continente. Uma longa distância nos separava. Eu não tinha dado a elas um lar. Tampouco uma família. 

Eu fracassara. Aquele dia me permitira a clareza desta exata leitura. 

Loureiro franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Deixe de dramas. Do contrário, ficará sentado na beira da estrada, desmilinguido em lamentos inúteis”. Fez uma pausa antes de iniciar o raciocínio: “De fato, hoje tivemos demonstrações reais da diferença de uma casa e de um lar. Assim como da beleza e do valor de uma família. Contudo, mesmo que não haja a harmonia que vimos na casa de Maria, a família fornece muitas das importantes experiências que devemos elaborar nesta existência para entendermos melhor alguns conceitos fundamentais à vida. Mesmo quando surgem dos dissabores. Nada é à toa. Entenda a razão de cada pessoa em sua vida, as suas belezas e dificuldades, assim como o aprendizado que advém dessas diferenças. Aceite o que o distanciamento lhe ensinou. Compreenda a ideia de que todas as pessoas que estão em seu caminho são importantes ao seu destino. Mesmo aquelas que se afastaram. Você só entendeu a importância de um lar por ter morado em uma casa sem alma; só percebe o valor de uma família como fonte extrínseca de força e equilíbrio por ter apenas a si mesmo como fonte intrínseca destes atributos essenciais para seguir me frente. Acredite, você precisava passar por isto. Uma experiência que permitiu novos significados. Alegre-se por isto”.

Loureiro tinha razão. Não era difícil olhar para o passado e me recordar, quando jovem, como eu desdenhara da importância da família, conceito de convivência que eu considerava ultrapassado e impeditivo para uma vida livre. Eu nada sabia sobre liberdade, admiti. O sapateiro me lembrou: “Nada se perde, tudo se transforma. Cabe agora fazer bom uso daquilo que aprendeu e aplicar ao seu cotidiano”. Falei que era tarde, as minhas filhas estavam crescidas e distantes. Não me era mais possível ter uma família. Loureiro tornou a falar com firmeza: “Até quando vai insistir no drama e se aprisionar em ideias limitantes? Troque as lentes escuras pelas quais insiste em olhar esta questão. Nada se perde se for levado ao laboratório de si mesmo. Lá toda experiência será elaborada para se transformar em novo labor, um jeito diferente de ser e viver. Assim, nos inovamos”.

Ele mostrou um diferente e inusitado viés: “Engana-se quem acredita que os padrões tradicionais de família são necessariamente melhores ou os únicos modelos possíveis. As pessoas são diferentes; assim, não pode existir modelo único e funcional para todos. Embora a importância da família e do lar continuem verdadeiras, os padrões de comportamento mudaram. Afinal, tudo muda o tempo todo, a impermanência é a constante eterna da vida. Sim, é possível flexibilizar os conceitos de família e lar na contemporaneidade. Um lar não precisa existir em uma única casa; uma família não precisa ser constituída dentro de moldes preestabelecidos nem carece de estar agregada somente por laços sanguíneos. O endereço certo de uma casa é o nome de uma rua; de um lar, o endereço é o coração”. Verdadeiros amigos compõem uma verdadeira família cósmica; filhos adotivos também, apenas para ficar em alguns poucos exemplos, porém, há muitos outros. Um lar pode se constituir por intermédio de casas em endereços distintos, porém, unidas sob a alma de um mesmo lar”.

Falei que não tinha entendido como aquele conceito se aplicava a mim. Falei que tinha me acostumado a morar sozinho e gostava disto. Aprendi que viver sozinho não é um problema; viver vazio, sim. Acreditava não ser o meu caso, pois havia alegria sincera na rotina dos meus dias. Eu me sentia bem com o estilo de vida que tinha escolhido para mim. Porém, confessei sentir falta de uma família. O sapateiro costurou a ideia com a usual mestria: “Para existir um lar e uma família não se necessário um mesmo endereço ou sobrenome. Bastam sabedoria e amor. O fato de você conseguir viver bem consigo mesmo é o passo primordial para que não haja relações de dependências emocionais que tanto atrapalham a boa manutenção de um lar e de uma família. Depois, pelo que sei, você tem uma meia-dúzia de amigos verdadeiros; se forem cultivados, os laços familiares entre vocês se intensificarão. Você tem também uma namorada maravilhosa que, se souberem alimentar o amor que os une, formarão uma autêntica família, apesar de morarem em ruas distintas. O amor traz a cumplicidade essencial a uma família e a um lar”.

Confessei que temia ter perdido as minhas filhas. Talvez elas formassem as suas próprias famílias e lares sem que eu estivesse incluído neles. Loureiro fez não com a cabeça, como se eu me recusasse a ver as infinitas possibilidades sempre ofertadas pela vida: “Em outras palavras, família e lar são portos seguros para todos aqueles que entenderem tamanha importância e estejam dispostos, ora a serem barco, ora a serem cais. Em verdade, o cais para a segura navegação das suas filhas sempre foi o seu coração de pai. Apesar das inúmeras dificuldades e rotinas incomuns, elas sempre puderam contar contigo. Você nunca as deixou navegar à deriva. Ainda que não digam, elas sabem e sentem isto. Em tempos tempestuosos, elas sabem onde podem se proteger. Isto as faz ter a real sensação de terem um lar e de pertencerem a uma família. A sua inusitada família”.

Arqueou os lábios em suave sorriso e constatou: “Você tem uma família bem fora dos padrões, de acordo com o compasso da sua alma; mas sem dúvida, é uma linda família.”. Fez uma pausa e finalizou: “Diferente não é comigo nem com a maioria das pessoas. Cabe-nos cuidar deles, lar e família, independentes dos moldes escolhidos. O fundamental é jamais deixar de abrigar todos aqueles que precisarem de acolhimento durante as intempéries da vida. Nisto reside a alma de um lar; assim derrubamos os muros para que uma família se instale no coração”. 

Piscou um olho e me contou um segredo: “Ao contrário do que muitos acreditam, a sorte nunca nos abandona. Nós que não prestamos atenção”. 

5 comments

Gleiza Jordânia fevereiro 15, 2021 at 6:28 am

Gratidão sempre…😊

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SCHWEITZER fevereiro 15, 2021 at 2:52 pm

Nao tenho palavras. Uma estoria de emoção e amor e a busca do amor. Triste e linda ao mesmo tempo. Amei querido, vc é a minha familia, não apenas nesta vida, mas na anterior e nas que daqui procedem. Te amo meu querido.

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Fernando fevereiro 15, 2021 at 4:14 pm

gratidão profunda e sem fim, Yoskhaz e Loureiro,
sem fim…

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Terumi fevereiro 15, 2021 at 8:38 pm

Gratidão 🙏

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Edilamar março 13, 2021 at 9:56 am

Gratidão!

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