A barista deixou sobre a mesa uma xícara grande de café. Um jazz suave tocava ao fundo e o inverno sempre ameno do Rio de Janeiro me anunciavam uma tarde agradável que reservei para mim mesmo. Tirei da mochila um livro que havia algum tempo eu adiava uma desejada leitura. Aquela tarde tinha o carinho de um afago do ego na alma. A poltrona era confortável, o ambiente se mostrava acolhedor e o café estava delicioso. Tenho por hábito ler com um lápis na mão. Sublinho as partes que me chamam a atenção, anoto no canto das páginas as ideias que me ocorrem e faço desenhos para tentar explicar aquilo que não ainda consigo traduzir em palavras. Isto, por todo o livro. Estes são alguns dos motivos que me deixam sem jeito para emprestar livros a pessoas que não tenho muita intimidade, pois, não raro, nem mesmo eu, depois de passado um tempo, me lembro as razões dos muitos rabiscos que tracei. O outro motivo é que costumo muito consultar justamente essas anotações quando escrevo ou mesmo lendo outro livro, me dou conta da conexão de ideias que se integram para formar uma ideia diferente, com mais amplitude e profundidade. Eu tinha iniciado a leitura naquela tarde perfeita, quando rompeu uma violenta discussão na cafeteria. Em tom de voz alterado e palavras agressivas, pai e filho se machucaram. O rapaz, com cerca de vinte anos de idade, foi embora pisando forte; o pai ainda tentou que ele ficasse, pois, alegava ainda ter muita coisa para falar. As pessoas se olharam assustadas, se mostraram aliviadas pelo encerramento da discussão e retornaram aos seus afazeres. Fiz o mesmo. Todos temos problemas, pensei. Bebi um gole de café, deixei que o jazz me embalasse e voltei à leitura. Antes que fizesse mais um rabisco no livro, um impulso me fez tornar a olhar para o homem sentado ao balcão. Ele não conseguia conter as lágrimas. Cada um com os seus problemas, tentei me convencer e retornei à leitura. Os meus olhos teimaram em não me obedecer. Algo no homem me sensibilizara. Tive e tenho diferenças com as minhas filhas; sei que são importantes alavancas evolutivas por nos conduzir para além de onde sempre estivemos, desde que estejamos dispostos a avançar. Por vezes, o sofrimento é tão grande que não percebemos os pés atolados em tantas mágoas; então, acreditamos não existir uma maneira diferente e melhor para se viver, salvo, é claro, se o outro entender as nossas dores, mudar o seu comportamento e nos pedir desculpas. Não! Isto equivale a emperrar a roda da vida. Há uma vida encantadora mesmo sem que o ideal aconteça. O mundo perfeito é o mundo possível. Quando fazemos a rodar girar, a vida se ilumina. Tive um impulso para lhe dizer isso, mas me contive.
Não devo me meter nos problemas dos outros, já tenho os meus. No mais, ainda corria o risco de ser maltratado ou mal interpretado pelo homem. Voltei ao livro, um universo maravilhoso estava à minha espera. Não naquela tarde. Somos muitos em um, a aldeia que me habita entrou em polvorosa. Alguns dos meus habitantes começaram a trocar ideias, argumentar e ponderar. Lembraram-me de momentos parecidos que passei, de como as falhas de comunicação, as lentes e filtros pelos quais analisamos os acontecimentos e captamos as informações, permitem ou impedem entendimentos mais claros e adequados. Ao mudar as lentes, as cores ficam mais nítidas; ao substituir os filtros poluídos, deixamos de nos contaminar. Pare de ser intrometido e volte à leitura, é isto que você veio fazer, gritou alguém em mim. Você tem que oferecer o seu melhor ao mundo, sugeriu outro habitante. Aprenda a resolver os seus problemas antes de solucionar os dos outros, falou mais um. Balancei a cabeça na tentativa de que eles se calassem, esvaziei a xícara de café, pedi mais uma à barista e mergulhei no livro. Ali eu estaria seguro. Ledo engano. Na primeira linha do parágrafo seguinte estava escrito que o medo é o maior empecilho ao amor. Então, uma voz serena, diferente de todas as demais que tinham palpitado, me lembrou que amor sem envolvimento é poema desperdiçado. Aquela voz era inconfundível, pois vinha da alma. Sim, como sempre, estava repleta de boas razões. Nenhum conhecimento possui valor se não servir de engrenagem a um melhor funcionamento da vida.
Esperei que os seus olhos cruzassem com os meus. Eram olhos aflitos a procura de amparo e compreensão. Fiz sinal para que se sentasse à mesa comigo. Ele me pareceu aliviado pelo convite e, sem hesitar, se sentou na poltrona ao meu lado. Quando trouxe o meu café, sensibilizada e atenta à situação, a barista veio com uma xícara para o homem também. Não precisei falar que tinha assistido à discussão dele com o filho, pois tinha sido comum a todos na cafeteria. Esclareci que poderíamos conversar sobre outros assuntos, como modo de ele se acalmar, se assim preferisse. O homem disse que não, pois precisava desabafar e, ainda mais, entender a razão de o filho se comportar de modo tão intransigente. Pedi para que contasse a sua história, não apenas para que eu o entendesse um pouco, mas principalmente para que ele ouvisse a própria narrativa. Costuma ser um jeito valioso para começar a entender a si mesmo. O homem falou muito, era tanto sofrimento que parecia que explodiria se não extravasasse. Em resumo, disse que se divorciou quando o filho ainda era bem pequeno, a mãe ficara muito magoada e, em razão disto, o menino tinha sofrido alienação parental. Segundo ele, a mãe distorcera sua a imagem a ponto de deformá-la em um monstro. Desde pequeno a garoto teria aprendido a odiá-lo. A mãe transferira a mágoa que sentia para o filho. Argumentou que, por mais que fizesse ou falasse, nada parecia ter força suficiente para o rapaz se permitir outro olhar e diferente viés dos fatos. O motivo da briga que eu assistira tinha sido em razão dele ter programado uma viagem com o filho, comprado as passagens, reservado os hotéis, detalhado cada dia do passeio e, na véspera do embarque, naquela tarde na cafeteria, o rapaz comunicou que não iria porque não estava com vontade. Resignado, o homem ponderou que era impossível mostrar ao filho o equívoco que existia enquanto o rapaz se negasse a conviver com ele, uma vez que as palavras já tinham se mostrado insuficientes. Questionava a si mesmo se não era hora de desistir, pois assim sofreria menos.
Bebi um gole de café e indaguei ao homem: “O que desequilibra a balança?”. Ele disse não ter entendido a pergunta. Tentei explicar: “O que nos faz sofrer é aquilo que faz a balança interna desalinhar. Se por vezes nos negamos a ver, em outros momentos enxergamos o que não existe. Fora do equilíbrio, perdemos o prumo. Todos os fatos passam a ter pesos adulterados. A realidade fica deturpada, pois, a verdade descarrilhou”.
O homem discordou que isso estivesse acontecendo. Para ele, os fatos eram muito claros. A sua convivência com o filho era desperdiçada em razão de ele ter do pai uma imagem que não correspondia a verdade. Mostrei o meu olhar: “Você pode entender a enorme dificuldade de convivência, repletas de aspectos distorcidos que geram asperezas no trato pessoal e se sentir injustiçado. Isto trará irritação pela maldade praticada e desânimo pela sensação de desamparo provocada. Mas existe também uma possibilidade diferente, ela o levaria a enfrentar a situação como um desafio de aprimoramento”. O homem disse que não estava entendendo. Expliquei ao meu modo: “Veja como se estivesse diante de uma fortaleza quase inexpugnável. Os sistemas de defesa estão todos ativados. Os muros do ressentimento são altos; nas vigias, arqueiros da intolerância; portões pesados do vitimismo se mantêm fechados; na retaguarda, os lanceiros do desprezo para conter qualquer investida. Contudo, em uma sala fechada, existe um tesouro de valor incomensurável, o coração do seu filho”.
“Trata-se uma fortaleza que resistirá aos ataques das verdades lançadas aos gritos, dos melhores argumentos disparados com irritação, da pólvora da pressa daqueles que ainda não aprenderam a lidar com o tempo das horas infinitas. Uma fortaleza que atacada com as bombas da impaciência fará com que o tesouro seja jogado no fundo do poço e nada de valor sobreviva”.
“Não se consegue invadir fortalezas desse naipe, elas precisam ser desmanchadas. Para tanto, há que se mostrar a sua desnecessidade das suas defesas. Para se viver em paz é preciso que não haja movimentos de guerra. Não me refiro apenas ao relacionamento entre pai e filho, mas principalmente na relação intrapessoal, ou seja, consigo mesmo”.
O homem me interrompeu para dizer que sempre ofereceu o melhor que havia nele para o filho, contudo o rapaz acreditava que ele fazia por culpa. Contudo, o amor era a sua única motivação, disse com evidente honestidade. Confessou que estava cansado. A cada dia lhe parecia mais intensa a falta de vontade em prosseguir. Argumentei por um viés pouco explorado: “Para se viver o amor é preciso entender o amor. Não é tão fácil como muitos acreditam. Embora, em maior ou menor grau, se trate um lindo sentimento comum a todas as pessoas, o amor também requer sabedoria. O amor se torna pleno à medida que a percepção se amplia e a sensibilidade fica apurada. Por isto se diz que evoluir é amar mais e melhor. O amor é um estilo de ser e viver que se conquista aos poucos”.
“Algumas das muitas características que esquecemos sobre o amor são a paciência e o equilíbrio que proporcionam quando já florescidos em nós. Ele não se assusta com a mentira nem teme a injustiça; não tem pressa nem desanima. Em sua maturidade, o amor conhece a fé, o tempo e a verdade.”
O homem pediu para eu explicar melhor. Tentei: “A fé traz em si o poder de uma inexorável força cósmica, a Lei da Evolução, a qual estabelece que o melhor irá acontecer, não na régua dos meus desejos, porém, na exatidão das minhas necessidades de aprendizado. No expoente da sua capacidade, ela permite a sintonia fina entre mim e o Universo, em uma mesma voz e movimento. A fé desmancha o medo e sustenta o ânimo; ela oferece a brisa suave da esperança nas tardes em que o calor parece insuportável. A fé nos diz para nada temer nem ter nenhuma pressa”.
“Assim a fé nos conduz ao mistério do tempo. Ele nos ensina que o amor é dócil, mas não é subserviente; tem infinitas reservas de paciência e tolerância, mas age com bom senso e firmeza; não negocia com as sombras nem com o mal. É manso sem jamais deixar de ser corajoso. O tempo mostra que o amor somente se faz perfeito através das suas imperfeições. No amor o tempo nunca se mede pelas horas, mas somente pelo bem compartilhado.”
“O tempo, não dos dias, mas do amor florescido na alma, nos encaminha até a verdade. Esta, nos liberta do sofrimento. Nenhuma dor tem como causa o amor. Todo o sofrimento tem raízes no egoísmo, nos condicionamentos ligados ao medo e à dominação, no apego injustificado de perder aquilo que não se pode possuir pela imaterialidade do objeto, no ciúme que aprisiona, no orgulho que confundimos como respeito e na vaidade que nos engana. Ficamos frágeis e dependentes. Nasce a dor à medida que não conseguimos enxergar o amor. O sofrimento mostra o equívoco no trato com o amor e o quão distante estamos de entender o significado de todas as coisas. Este é o código da vida: o amor oculto em cada situação. Do contrário, não chegaremos à verdade. Encontro com a verdade no mesmo dia que consigo ficar face a face com à minha essência. Para tanto, preciso de cada uma das virtudes que compõem o amor, sem as quais ele não se completa. Todos nós amamos desde sempre, contudo, quando consigo amar com simplicidade, humildade, compaixão, pureza, sinceridade, misericórdia, delicadeza e coragem, já não é um amor que tenha pernas. Ele descobriu as suas asas.”
“Portanto, pouca importância tem se o seu filho acredita que os seus gestos são movidos por culpa, como talvez seja confortável a sensação de vitimismo que ele se acostumou e lhe traz conforto. Você sabe do amor que o movimenta a ir ao encontro do rapaz; por ora, isto basta. Para ele, a ilusão de que a vida é ruim porque existe um vilão que o impede à felicidade pode trazer alguma comodidade, mas causa uma nociva estagnação. Iremos apodrecer até entender que o bandido de nossas vidas não está no mundo, mas se faz presente por intermédio das crenças paralisantes e das influências abusivas que as nossas próprias sombras exercem na forma como lidamos com a realidade”. Fixei os meus olhos nos do homem e o lembrei: “A você, vale a consciência em relação ao amor que orienta as suas próprias escolhas.”
“Ainda que nas necessárias incursões que precisamos fazer ao nosso passado para cicatrizar cada uma das feridas que sagram, você venha se deparar com antigas faltas, não se assuste nem fuja. A ausência de erros é um privilégio com o qual ninguém foi agraciado. Peça desculpas e se perdoe também, todos temos as nossas dificuldades. Assuma a responsabilidade perante a si mesmo de fazer diferente e melhor daqui por diante. O compromisso com o presente precisa bastar para que o passado não seja o peso a desequilibrar a balança. Isto costuma causar constantes sofrimentos. Tenha consigo a segurança e a serenidade proporcionada pela fé, pelo tempo e pela verdade. Então, você terá a leveza típica das manhãs de sol, mesmo durante as mais severas tempestades.”
O homem insistiu que a reconciliação com o filho seria impossível enquanto a mãe do rapaz continuasse a distorcer a sua imagem como pai. Ponderei: “Quem traz consigo a fé, o tempo e a verdade sabe que o uso inadequado cega o fio da espada. Apenas viva sem pressa, sem medo e nunca desista de usar o amor como mapa, bússola e estrada. Assim, nele você também encontrará o seu destino”.
Ele insistiu que o ódio da mãe que contaminava o filho parecia sem fim. Lembrei ao homem: “Sem dúvida, o ódio causa muito estrago, mas o seu poder em algum momento se esgotará. Perceba a oportunidade e se prepare. Neste dia, esteja com os braços e o coração abertos para acolher o seu filho, sem permitir que a mágoa se revigore em sentido inverso e se volte contra a mãe. Dê um fim ao sofrimento de todos. Acredite, ela é uma das pessoas que mais sofre. Do contrário, não faria o que faz. Ter compaixão não é ser permissivo ao mal, mas ser compreensivo quanto as dificuldades alheias, até por ter consciência que não podemos exigir a perfeição que também não temos para oferecer. Há que se ter percepção e sensibilidade. Após a humildade, a compaixão é o próximo dos degraus fundamentais ao indispensável perdão, uma linda maneira de amar”.
Ficamos sem dizer palavra por longos minutos. Ele precisava concatenar aquelas ideias e as alocar nas gavetas da sua existência. Seria preciso elaborar cada uma delas para que as experiências vividas revelassem os segredos que ele ainda precisaria decodificar se quisesse avançar rumo ao entendimento de si mesmo. Ninguém melhor do que as pessoas com quem convivemos para nos dificultar a encontrar os códigos da vida. Somente assim, teremos acesso aos portais da fé, do tempo e da verdade. Isto nos fará amar mais e melhor.
O homem esvaziou a xícara de café, tornou a me olhar e perguntou quanto tempo teria de esperar até que a situação mudasse e pudesse ter uma convivência saudável com o filho. Fui honesto: “Não tenho a menor ideia, caso você use a régua dos dias. Esse tempo também será amargo se for as horas da vingança e trará ansiedade quando se tratar de um mero desejo. Se quiser utilizar uma melhor medida, arriscaria afirmar que seriam as estações que o jardineiro aguarda enquanto se encanta ao ver a semente se transformar em flor e depois em fruto. O tempo da criação é aquele que se revela e se manifesta em amor. Então, não terá existido tempo nenhum”.
Ele sacudiu a cabeça e afirmou que eu estava sendo muito poético e nada pragmático. Discordei: “Precisamos da arte para nos ajudar a despertar o sentido oculto da vida, o leito onde a verdade adormece. Precisamos da arte para ir onde a objetividade não alcança, explica nem satisfaz. Arte não é uma fuga da realidade, mas parte da alquimia necessária ao chumbo para se transmutar em ouro”.
Resignado, ele afirmou que era preciso entender a busca inútil e saber a hora de desistir. O homem agradeceu o café e a conversa, mas precisava ir embora. Antes de ele sair, argumentei: “O que resta a uma rosa se ela desistir de florir?”.
Ele me ofereceu um olhar triste, talvez o único que tivesse naquele momento, nada disse e saiu. Observei-o pela janela da cafeteria até que desparecesse na multidão. Com o lápis, rabisquei no livro uma indagação: qual a verdade da rosa?Eu precisaria desta resposta mais à frente e para sempre.
Imagem: Richard Kemp
14 comments
Hermoso!!!
Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz,
sem fim…
🙂sou tão feliz por vc existir nos meus instantes.. suas palavras são como flechas ao alvo , atingi meu ser com carinho , gratidão✨✨
É preciso amor pra poder pulsar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir!
Lindíssimo texto, como sempre…
Gratidão!
Ameiii, poético e profundo!
Gratidão infinita.
Parece que te conheço a muito tempo pois sua comunicação e simples e gigantesca ao mesmo tempo .
GRATIDÃO !
Gratidão imensa! 🙏
Um texto magnífico q ilustra o poder regenerativo do amor. Verdades q todos deveriam aprender ja na infância para prevenir toda uma vida de dor.
Divino querido.
‘Qual a verdade da rosa?’
(Reflexão esplendorosa)
Gratidão
Que sublime. Este texto despertou uma parte adorm Cida em mim …
Qual a verdade? Não é a minha opinião, nem desejo ou anseio de provar que faço tudo da melhor maneira e por Amor?
O que é o amor? Não é um mero sentimento que tento mostrar que sinto… Então amo
É um estado do ser, que descubro no mais profundo da Luz da Vida, que requer paciência, plantar, regar, florir e dar fruto.,como a rosa, que não impõe a sua verdade, mas manifesta o Seu perfume, que é o amor .
Aqui descubro muitos dos equívocos em mim.. Não é o tempo do relógio que me ensina, mas a maneira de viver o Amor, que a própria essência do Ser.
Muito gratidão por este texto. São palavras que exalam amor, em forma de luz
Gratidão!!!
Magnífico texto 👏👏👏👏👏
🌵🙏🏽
Gratidão Yoskhaz, por ser uma rosa em meu caminho!