A tranquilidade e a camaradagem eram as tônicas do mosteiro. Todos os monges que chegavam para mais um período de estudos traziam consigo a boa vontade, não apenas em estarem receptivos aos novos conhecimentos, mas também a terem um relacionamento fraterno com os demais que ali estavam. Os dias corriam calmos e alegres, os monges se tratavam com respeito e bom humor, embora brigas e intrigas também fizessem parte do convívio, como é comum ao processo de iluminação das sombras pessoais inerentes a todos. Os mais sutis sentimentos, assim como as emoções densas, percorrem as entranhas de qualquer pessoa; saber como iremos usá-los define quem somos e o destino próximo. Assim como a luz, as sombras atuam em todos os lugares onde as permitimos se movimentar. O alcance da percepção ficará restrito às lentes utilizadas e a sensibilidade será afetada pelo nível de contaminação do filtro usado. Entender essa elaboração é indispensável à jornada evolutiva, sem a qual não se conquista às plenitudes.
Como de costume, eu ficaria cerca de um mês no mosteiro para mais um período de estudos. Eu já era monge havia alguns anos, mas nem por isso conhecia a todos os integrantes da Ordem, pois como o mosteiro funcionava o ano inteiro, os ciclos nem sempre coincidiam. A ponto de alguns mais antigos, como eu, nos conhecermos apenas de nome ou pelos cursos que ministravam. Eu ouvira falar de um jovem que ingressara recentemente, não mais do que três anos, mas já despontava pela sua sagacidade e dedicação nos estudos. Aqueles que tinham convivido com ele, o elogiavam muito. Soube que ele seria aluno do Shiur, o curso no qual eu era responsável, quando me entregaram a lista dos inscritos. Fiquei animado em conviver com um moço de tanto talento.
Como na Ordem não utilizamos sobrenomes como método de evitar que influências indevidas, tão comuns em sociedade, interfiram no tratamento igualitário e sem nenhuma distinção oferecido a todos monges, foi uma enorme surpresa e uma grande alegria ao me deparar com Jonas, filho de um sócio que tive por longo tempo na época em que estive à frente de uma agência de publicidade. A sociedade se rompera de modo turbulento e, alguns anos depois, eu abandonara definitivamente a profissão para iniciar um novo ciclo existencial. Em minhas memórias, Jonas ainda era um menino que entrava na adolescência na última vez que eu o vira. Agora, com cerca de vinte e cinco anos, tinha se tornado um homem bonito e com incrível semelhança física com o pai. Ele era o jovem e talentoso monge que muitos comentavam.
Estranhei a maneira como ele se comportou diante da minha manifestação de alegria ao reencontrá-lo depois de tantos anos. Embora tenha me tratado de modo educado, me pareceu frio e com a intenção de manter um distanciamento protocolar. Perguntei pelos seus pais e quis saber sobre ele. Polido, mas com poucas palavras, explicou que dirigia ao lado do pai a mesma agência de propaganda, que se tornara uma das mais conceituadas do mercado. Chamou-me atenção a sua fala pausada e muito segura para um moço que entrara havia pouco na fase adulta. Fui sincero ao falar da alegria em tê-lo no Shiur e nos votos de prosperidade que transmiti a toda a sua família. Eu acreditava que o passado em relação à agência ou ao seu pai restara resolvido, com todos os nós dissolvidos. Ele agradeceu com as feições sérias e apenas uma palavra. Atribuí o seu comportamento à traços de introversão da sua personalidade, sem dar outra importância ou razão.
Logo nas primeiras aulas se evidenciou em Jonas um modo deliberado de me provocar. À medida que as explicações avançavam, ele as questionava. O que a princípio traria os interessantes aspectos para a ampliação do entendimento pela possibilidade de aprofundar o assunto e esclarecer as ideias tratadas, começou a causar desconforto pelo clima denso de animosidade gerado pela clara intenção de me tirar a serenidade ou atrapalhar o bom andamento da aula. A desnecessidade daquele comportamento prejudicava o andamento do curso pela quantidade excessiva de interrupções, além do mal-estar crescente que se instalava entre os alunos.
Todas as relações precisam de limites para que não sejam abusivas. Naquela tarde, bastante chateado com os acontecimentos, me retirei para a varanda do mosteiro com vista para as montanhas. Eu precisava pensar sobre qual atitude tomar para não permitir que o mal crescesse e provocasse reações desagradáveis; de outro lado, era preciso ter cuidado para não me exceder na medida que tomaria, caso em que eu seria injusto. Para piorar a situação, Jonas arregimentara um pequeno grupo, formado por três jovens monges, que pareciam se deliciar com aquele comportamento, como se fossem uma espécie de torcida organizada ou espectadores de uma arena, que apesar de silenciosos, se percebia em suas feições, a cada provocação, a expectativa por uma reação desmedida, à espera de um desfecho infeliz em um combate desnecessário.
Como fazia frio, a varanda estava vazia. Sentei-me em uma das suas confortáveis poltronas e me deixei envolver por inúmeras reflexões de qual seria a melhor forma de agir. Não havia dúvida que algo precisava ser feito para estancar o crescimento daquela situação insalubre. Fingir que não estava acontecendo seria como ignorar o mal, uma hipótese que, por inadmissível, eu não considerava. Até porque estava prejudicando as aulas. No entanto, várias outras possibilidades se mostravam possíveis. Desde ter uma conversa com o Jonas até a sua exclusão do curso. Entre esses dois extremos, havia múltiplas escalas de abordagem.
Na minha opinião, a única razão para esse comportamento hostil, era o fato de Jonas ter crescido com uma ideia preconcebida sobre a minha personalidade, criada a partir das desavenças surgidas com o seu pai, por causa da diferença de olhar que passamos a ter em determinado momento de nossas existências. Tínhamos sido grandes amigos na juventude, havíamos erguidos juntos a agência de publicidade e conquistado alguns prêmios. Contudo, em algum momento, começamos a conduzir a vida por distintas veredas. Mudaram o olhar e o prisma que cada um tinha em relação à vida. Nenhum era melhor que o outro, eram somente diferentes. Quando nos demos conta, a afinidade desaparecera. Então, a falta de unidade fez surgir os conflitos. Passamos a ver a empresa por lentes distintas e os filtros ficaram cada vez mais poluídos. A relação, antes clara e alegre, ficou embaçada e soturna. Até que a dissolução societária fosse efetivada ocorreram muitas brigas e alguns anos. Jonas crescera com a verdade compreendida pela sua família.
Entretanto, a verdade da família de Jonas, embora genuína, era diferente da minha verdade, igualmente legítima.
Foi isso que expliquei ao Velho, o monge mais antigo do mosteiro, quando ele se sentou na poltrona ao lado. Ele trouxe duas canecas fumegantes com café e me entregou uma. O bom monge tinha percebido o que acontecia e viera conversar comigo. Manifestei a minha ideia: “Jonas precisa saber que ele não tem o monopólio da verdade, mas somente um olhar parcial de tudo que ocorreu no passado. Para cada fato existe no mínimo duas versões, além da verdade propriamente dita. Em outras palavras, talvez cada um traga consigo uma parte da verdade. Juntos, a teremos por inteiro”. A ideia me parecia sensata e insofismável.
O Velho tinha o olhar ao longe, como se fascinado pela belíssima paisagem. Ele comentou como se falasse consigo: “É verdade, mas também não é”. Antes que manifestasse a minha estranheza por aquele raciocínio, ele perguntou se eu via a montanha que estava à nossa frente. Sem entender a pergunta óbvia, respondi que sim. Ele prosseguiu de forma enigmática: “Enquanto você não conseguir enxergar através da montanha, terá diante de si somente uma rocha instransponível. É preciso ver o outro lado da montanha, pois é lá que o Jonas está. Você nunca conseguirá encontrar quem não consegue ver. A montanha é o conflito que os separa”.
Ponderei que eu queria justamente encontrar uma convivência harmoniosa com o jovem monge. Para tanto, se fazia necessário que ele conhecesse a minha verdade, ou a versão que eu tinha dela. O Velho balançou a cabeça como quem diz que entendia e me questionou: “Pergunte a si mesmo se você apenas quer elucidar o passado com a sua verdade ou se a quer impor a qualquer custo, até mesmo como maneira subliminar de acuar o Jonas diante da relação professor-aluno que os colocou frente a frente. Então, não haverá luz, mas um mero duelo e, como tal, um baile para as sombras. Será uma mera batalha travada contra o Jonas e não um belo trabalho de superação consigo mesmo. Uma oportunidade restará desperdiçada”.
Antes que eu pudesse discordar, ele prosseguiu: “Se quiser retirar o combate da arena vulgar do mundo e o trazer para o laboratório intrínseco onde a consciência elabora as experiências, constrói a verdade e amplia a realidade, seria importante que você perguntasse ao Jonas qual o olhar dele em relação a você. No entanto, esteja pronto para ouvir coisas bem desagradáveis e, até mesmo, absurdas”. Falei que não via sentido naquilo, pois a opinião de ninguém pode ter o poder de dizer quem somos. O Velho concordou: “É verdade, mas não foi com esse intento que fiz a proposta”.
“A sugestão é para você conhecer até onde é capaz de conviver com os olhares distorcidos sem se ofender. Também servirá para saber sobre a sua capacidade de filtrar a verdade alheia para entender aquilo que pode ajudar no seu aprimoramento e, ao mesmo tempo, deixar de lado o conteúdo nocivo e imprestável”. Argumentei a razão de eu me maltratar daquela maneira. O Velho explicou: “A verdade é dura como um granito. Quando bem trabalhada, se tornará a base segura onde se erguerão os pilares de uma pessoa forte e doce, capaz de suportar as mais severas tempestades ao mesmo tempo em que consegue suavizar as asperezas das relações”. Fez uma breve pausa e concluiu: “Antes de elaborar uma verdade não se consegue fazer bom uso dela”. Olhou-me profundamente e avisou: “Contudo, não aceite a minha sugestão sem ter a certeza de estar pronto. Saiba, muitos se deixam esmagar pela dureza da verdade. Então, nenhum benefício será possível nem trará qualquer crescimento”.
Eu não disse palavra. Era preciso metabolizar aquela ideia. Foi quando o Velho tornou a surpreender: “Para ver o outro através da montanha se faz necessário humildade, compaixão, sinceridade e coragem. Impossível se conseguir isso andando pelas rotas do mundo. Há que se ter uma alma disposta a voos inimagináveis. Pense nisso”. Pediu licença e foi ler na biblioteca.
Não consegui dormir naquela noite. Um turbilhão de ideias me impedia o sono. Veio-me recordações das brigas com o pai do Jonas, enquanto eu tentava imaginar as versões que ele ouvira em casa, quando ainda era um pouco mais do que um garoto. Considerei que talvez ele tivesse crescido, não apenas com um horrível conceito sobre quem eu era, mas tenha aprendido que me odiar era a coisa certa a se fazer. Não que isto fosse dito, mas uma conclusão tomada como óbvia diante de tudo que ouvira. Quanto mais antigas são as ideias que constroem quem somos, mais entranhadas elas ficam à nossa personalidade, mais complicado fica para serem desmanchadas. Temos a sensação de que iremos desaparecer se elas não mais fizerem parte de quem somos. Eis uma das maiores dificuldades da evolução.
Esses componentes tornavam enorme a montanha que me separava do Jonas. Encontrar quem estava no outro lado poderia também significar descobrir a parte da verdade que eu desconhecia. A sua importância? Ela me ajudaria a encontrar não apenas o Jonas, mas também uma parte de mim mesmo que eu desconhecia.
O mistério de um conflito é a causa da sua existência: a dificuldade de ver no escuro, quando, então, nada será encontrado.
Na manhã seguinte, procurei pelo Jonas. Eu o encontrei na cantina tomando café com os três monges da sua idade que formavam o tal grupo. Convidei-o para uma conversa a sós. Ele se recusou. Disse não ter nenhum interesse nisso. Percebi que os jovens sentados à mesa com ele, trocaram olhares irônicos e sorrisos sinistros, como se alimentados por aquele comportamento conflituoso. Avisei que ele estava suspenso das minhas aulas até que a conversa acontecesse. Jonas alegou que uma coisa nada tinha a ver com a outra. Argumentou que eu deixava questões pessoais interferirem no cotidiano do mosteiro. Contestei, em verdade, era ele quem fazia aquilo no me acusava. Expliquei que a sua maneira de se portar atrapalhava o andamento das aulas. Sugeri a necessidade de entender as razões para que pudéssemos elaborar um convívio mais harmonioso. Ele me acusou de usar indevidamente o meu poder de professor para acuá-lo a fazer o que não queria. Falei que fazia em respeito a mim mesmo e, também, como forma de estancar a propagação de uma situação desagradável. Acreditava que ele se beneficiaria com aquela conversa, pois, assim como eu, ele teria acesso a um olhar diferente sobre a realidade como a conhecia. Isto expandiria a verdade de ambos. Jonas prometeu que formalizaria uma queixa junto à coordenação da Ordem; ele considerava abusiva a minha postura. Aconselhei-o a agir do modo que entendesse correto.
Na ausência de Jonas, a aula transcorreu com a tranquilidade necessária ao bom aproveitamento de todos, inclusive o meu, sem as interrupções intempestivas que traziam tensão ao ambiente. Notei que os três jovens monges que formavam o grupo do Jonas ficaram atônitos e inseguros pela mudança de rumo da situação. Eles permaneceram calados durante a aula. Na hora do almoço, soube que Jonas levara à termo a reclamação conforme prometera, mas fora surpreendido com a declaração do Velho em estar de acordo com a minha decisão: “Quem se nega ao diálogo está fechado para a paz”, orientou o decano da Ordem.
A reação do jovem monge foi de procurar os colegas em busca de apoio. Entendia que um protesto coletivo ganharia força para mudar o curso dos acontecimentos. Sob diferentes desculpas, os três monges não apenas se esquivaram de qualquer compromisso para aderirem à briga de Jonas, mas também se afastaram dele. Era evidente, como em geral acontece, o conflito os interessava apenas como espectadores. Quando eu soube, lembrei das palavras de Loureiro: “Valentes são os boxeadores, a plateia é covarde, além de ser viciada em violência e ódio. No entanto, apenas os tolos sobem ao ringue para lutar”. Isolado, dois dias depois, o Jonas me procurou.
Fomos para a cantina, vazia àquela hora do dia. Pedi para que ele se sentasse na última mesa, próximo à janela de onde avistávamos as montanhas, e fui buscar duas canecas de café. Na volta, as coloquei sobre a mesa e fui direto ao assunto: “Jonas, sem melindres e censura, me conte exatamente como você me vê”. Ele questionou a necessidade daquilo. Expliquei: “Todo conflito, logo, todo mal, tem como origem uma equivocada percepção da verdade em relação à realidade. Isto nos afeta a sensibilidade. Então, todos perdem, pois tudo aquilo que poderíamos ser e viver, não será”.
Jonas fechou os olhos por um longo tempo, como se abrisse cada gaveta da memória para buscar os fatos que justificassem o seu olhar e as suas atitudes. É um momento muito difícil e todo equilíbrio é pouco. Ao rever fatos antigos podemos nos deparar com detalhes que não nos atentamos à época e isto altera a nossa verdade nem sempre de modo agradável. Depois, respirou fundo e começou a falar. Ele falou por mais de uma hora. Não o interrompi. Fez-me lembrar de fatos aparentemente esquecidos. Em outros, os mostrou por óticas diferentes das minhas, a ponto de parecem mentirosos. Não, aquelas situações tinham acontecido; a maneira de as interpretar era causa da minha estranheza. Uma mesma flor tem as suas cores e perfumes alterados pelas lentes e filtros do observador.
Lentes e filtros permitem navegar diferentes realidades por serem as ferramentas que definirão as bonanças ou tempestades com as quais cada um atravessará os mares da existência.
As lentes podem ter várias cores; serem claras ou escuras; estarem arranhadas, embaçadas ou com incrível nitidez. A lente usada altera a percepção do observador. Problema ou oportunidade, amor ou ódio, luz ou sombras, a interpretação de um fato se modifica de acordo com a lente usada. Isto define o nível de tolerância e o tipo de reação: a vontade de educar ou somente de punir quem agiu em desacordo com a nossa verdade.
Os filtros são igualmente importantes e possuem dupla função. Servem para auxiliar a separar o que há de bom ou de ruim nas situações que nos atingem e nas relações que vivemos. Permitem a entrada da luz ao mesmo tempo que impedem a contaminação pelas sombras. Possuímos um filtro externo, que depura a nossa relação com o mundo e outro interno, que filtra as ideias e emoções que fazem parte de quem somos. Ambos os filtros precisam passar por incessantes processos de aprimoramento e de purificação, sem os quais não conseguiremos usufruir da melhor realidade. Quando um filtro é por demais poroso deixará passar sujeiras; quando está contaminado, toda a água que passar por ele, mesmo aquela que é limpa, restará poluída.
Passado alguns anos, ao ouvir a verdade narrada através das lentes e filtros da família de Jonas, muitas das interpretações continuavam sendo absurdas para mim, pois demonstravam os interesses e desejos unilaterais do seu pai em detrimento aos meus. De outro lado, em várias situações pude constatar um igual comportamento da minha parte em relação ao pai de Jonas. Tínhamos agido de maneira muito parecida. Foi quando percebi dois aspectos fundamentais. O primeiro, como a mente cria trilhas tortuosas para justificar os desejos; trocamos lentes e filtros para montar uma verdade que nos engane e se torne agradável à consciência. O segundo aspecto, foi a constatação de que os motivos do rompimento não foram as enormes diferenças que existiam. Ocorreu, porém, quando deixamos de lado o que de comum nos unia.
Se usássemos as lentes e os filtros adequados entenderíamos que as diferenças não eram um problema, ao contrário, tinham sido os guindastes que ergueram a agência enquanto trabalharam sob um mesmo eixo. Se nos permitíssemos um pingo de sensibilidade, ficaríamos alegres por tudo de bom que tínhamos construído e conquistado no período que deixamos as nossas diferenças se explicarem, se complementarem e, principalmente, se admirarem. Os artistas passaram a se considerar mais relevantes do que a obra. Faltara percepção. Em algum momento, deixamos escapar o ponto que tínhamos em comum. Ao nos afastar dele, ficamos perdidos. A diferença que havia nos fortalecido, no descuido de passarmos a usar filtros e lentes inadequados, foi a mesma que nos destruiu.
Era preciso humildade para pedir desculpas pelos meus erros e compaixão caso o Jonas não conseguisse entender os equívocos do seu pai. Tive de admitir que me faltara na época melhores lentes e filtros. Expliquei a ele onde eu poderia ter feito diferente e melhor; não fiz porque não sabia; expus também onde compreendia que a recíproca se aplicava ao pai dele. Acrescentei que não era caso de procurar quem começou ou comparar quem mais errou, mas de cada um assumir perante a si mesmo o compromisso de fazer diferente e melhor dali por diante e, acima de tudo, de permitir que o amor e a sabedoria se manifestassem através do perdão.
O perdão, por ser fruto do amor e da sabedoria, traz na sua bagagem lentes e filtros mais avançados.
Todos os envolvidos precisavam se libertar das mágoas para encontrarem em si a paz indispensável à leveza dos dias. Permitiria, também, intensificar a ligação de dignidade com o presente, que se torna mais nítida e forte quando ajustamos as contas com o passado, independente de quão complicado tenha sido. Somente, então, entenderemos a felicidade.
Após as minhas palavras, a reação de Jonas foi o silêncio. Ficamos calados por um longo tempo. Ele perguntou se eu queria mais café. Sem esperar pela minha resposta, se levantou e retornou com duas canecas fumegantes. Sentou-se à mesa e nada falamos. Até que ele quis saber se poderia voltar a assistir as aulas do Shiur. Balancei a cabeça em anuência, ele pediu licença e se retirou.
Até o final do curso as aulas transcorreram com tranquilidade e o proveito de todos foi muito bom. Dali em diante, Jonas fez poucas perguntas, porém, todas se mostraram valiosas e pertinentes. Notei que a amizade dele com os três jovens monges sofrera modificações. Continuaram colegas, mas em outro nível de relacionamento. Ele e eu não mais conversamos. Quando terminou aquele período de estudos, no dia de partir, Jonas me procurou, estendeu a mão, me olhou com firmeza e murmurou: “Obrigado”. Tão e somente.
Um ano se passou. Eu estava entretido em uma conversa com o Velho na cantina, falávamos sobre a dificuldade de conceituar o amor como força e sentimento, um poder que, ao mesmo tempo, era o caminho e o destino. Embora a poesia nos permitisse belíssimas definições, foi o bom monge quem melhor o explicou para mim: “O amor é a disponibilidade interna para aconchegar o outro com o mesmo carinho que me acolho. Este é o comprometimento sem o qual o amor ficará restrito aos poemas”.
Foi quando um monge nos interrompeu para informar que uma pessoa desejava falar comigo. Pedi que o convidassem a entrar. Alguns minutos depois, fui tomado por uma grande emoção ao ver o pai de Jonas, meu ex-sócio na agência de publicidade, andando em minha direção. Ele tinha os olhos marejados e um lindo sorriso no rosto. Levantei-me e fui ao seu encontro. Sem dizer palavra, trocamos um forte, longo e inesquecível abraço entremeado com muitos soluços. O encantamento do perdão tomou conta da cantina e envolveu os monges que lá estavam. Mesmo sem compreender a exata razão, conseguiam sentir as vibrações luminosas daquele momento e, alegres, começaram a aplaudir. Jonas chorava, o Velho sorria. Tínhamos conseguido sobrevoar a montanha; uma façanha possível apenas depois de trocarmos as lentes e os filtros.
Fomos conversar a sós no jardim interno do mosteiro. O pai do Jonas comentou que a minha barba estava quase completamente branca e que combinavam mais com as argolas que eu usava nas orelhas havia muitos anos. Também achei que ele envelhecera bem, estava mais bonito. Sentados em um banco de pedra, revimos o passado através de lentes doces e generosas; nos ouvimos por intermédio de filtros não mais contaminados por rivalidades, mágoas e decepções. Ressoavam em mim com inacreditável lucidez as palavras do Velho sobre o significado e a importância da disponibilidade interna para acolher o outro. O amor. Um dia que ficará escrito na minha história por finalizar um importante ciclo de aprendizado e pelas transformações permitidas.
Enquanto conversávamos, observei o Velho passando pelo corredor lateral do mosteiro. Discreto, ele caminhava com passos lentos, porém, seguros.
Imagem: Kevin Carden – Dreamstime.com
18 comments
Grato pelos ensinamentos contidos nessas histórias!
Gratidão, irmão das estrelas! 🙏
Consigo ver um filme imaginando essa história.
Gratidão!!!!
Divino meu querido, simplesmente divino.
Sublime
Escrevo com lágrimas preciosas no rosto,
como se estivesse presente no momento desse abraço maravilhoso,
que muitos de nós sonhamos em dar em alguém.
Como sempre meu irmão das estrelas,
deixo aqui a minha mais profunda,
sincera e sem fim gratidão.
Sem fim…
Gente… Que delícia foi ler esse texto.
Estou grata e encantada com tamanho amor e perdão.
Muita gratidão por compartilhar conosco.
Namastê!!!
Como essas palavras são profundas!! Confesso que senti dificuldade de articular a leitura com as emoções que vieram para superfície!! Gratidão!
Grato amigo, um café incrível esse!
Gratidão Yoskhaz!
Por nos envolver com tanta profundidade nesses preciosos sentimentos, Gratidão!
Gratidão ✨✨🦉🙏🙏
Maravilhoso..aumenta a expectativa de como tudo vai se resolver…muito massa
“Obrigado”
🙏🏽🌵
Expetacular.
QUE TEXTO!!
FELIZ DAQUELE QUE DESISTIU DE MUDAR OS OUTROS E, INVESTIU SEU TEMPO LAPIDANDO A SI MESMO!
GRATIDÃO POR MAIS ESSE MAGNÍFICO APRENDIZADO.
Gratidão por este maravilhoso texto!
Muitas reflexões tenho feito com as lentes e filtros que estou construindo a partir da leitura das suas postagens.
Obrigado mais uma vez🙏🏾