MANUSCRITOS III

A vida não é curta

 

Era sábado à noite quando o ônibus estacionou na singela vila chinesa onde mora Li Tzu. Deixei a minha mochila na única estalagem do lugar e fui para a casa do mestre taoista. Como sempre, o portão estava aberto e a pouca iluminação era fornecida apenas por muitas velas espalhadas por todos os cantos, inclusive, no belo jardim de bonsais. Meia-noite, o gato preto que também morava lá, na espreita, desconfiado, me acompanhou o tempo todo com os olhos. Chamei pelo mestre algumas vezes, mas não obtive resposta. O silêncio apenas era quebrado por uma melodia alegre que vinha de longe. Achei que era deselegante esperar por ele em sua casa e, como eu estava sem sono, me deixei guiar pelo som animado. Atravessei algumas ruas sinuosas sempre tendo os meus tímpanos como bússola, até que cheguei a um sobrado de onde surgia a música. Subi os degraus de madeira da escada estreita e me deparei com uma espécie de baile aberto ao público. Surpreendi-me com Li Tzu dançando uma animada canção em companhia de uma bela moça. Em seguida, ele foi conversar com um grupo de amigos que pareciam felizes pela maneira como riam e se abraçavam. Estranhei o comportamento do pacato e silencioso mestre taoista.

Permaneci em pé, junto ao balcão de bebidas, observando o movimento. Na verdade, eu estava curioso para ver a reação de Li Tzu quando ali me percebesse. Apostei que ele se comportaria como uma criança envergonhada ao ser pega em plena travessura. Pedi uma bebida e esperei. Para a minha surpresa, ao me ver, o mestre taoista abriu um largo sorriso e veio até a mim de braços abertos. Após um abraço forte e sincero, perguntei se ele aceitava uma bebida, pois tive certeza de que toda aquela animação era em decorrência de um estado alcoólico alterado. Em outras palavras, tinha convicção de que ele estava bêbado. Então, outra surpresa quando Li Tzu respondeu: “Água, por favor”. Fez uma pequena pausa e justificou: “Não tenho nada contra, mas, particularmente, não aprecio bebidas fortes”. A pequena banda, formada por quatro ou cinco instrumentistas, com flautas, tambores, chocalhos e uma espécie de sanfona, iniciou uma canção que, exceto por mim, era bastante conhecida, pois quase todos foram para a pista de dança. O mestre taoista me convidou a se juntar a eles. Como recusei, ele pediu licença e foi acompanhar com os demais essa música em que todos repetiam os mesmos passos, como um corpo de balé ensaiado. Ao final, todos riram divertidos e bateram muitas palmas.

A minha estranheza com o comportamento de Li Tzu não me permitiu ser contagiado com aquela animação. No fim do baile, acompanhei o mestre taoista até a sua casa. Ainda durante o trajeto, expressei a minha surpresa por sua faceta de alegre dançarino, mormente quando comentei que constatara de que ele não estava alcoolizado ou tinha feito uso de outra substância. Li Tzu me olhou com compaixão e revelou: “A magia vem de dentro”.

Não satisfeito, acrescentei que ele, naquela noite, fugiu aos padrões que eu esperava. O mestre taoista sorriu e disse: “Ainda bem, Yoskhaz. Que eu possa sempre desconcertar com o inusitado e a ousadia”. Irritado, eu parti para o ataque ao dizer que aquele comportamento mundano no baile feria as diretrizes sagradas do Tao que ele próprio ensinava. Li Tzu balançou a cabeça em negativa e explicou: “O sagrado está oculto no mundano. Aquele precisa deste para se revelar”.

Demos mais alguns passos e ele prosseguiu: “A alegria e o bom humor são virtudes; logo, são ferramentas do sagrado. A alegria é a mais poderosa oração de agradecimento ao Universo por todas as bênçãos concedidas. Transmiti-la a toda gente o torna um emissário dos Céus. O bom humor tem o poder de transmutar energias de baixa vibração que, por ventura, se apresentem; por isto, também é sagrado”.

Como tínhamos chegado ao portão da casa de Li Tzu e, em razão do meu claro desconforto, ele, sempre elegante e generoso, me convidou para um chá. Acomodei-me em sua agradável cozinha enquanto o mestre taoista colocava algumas ervas em infusão. Não demorou, um delicioso perfume invadiu o ambiente. Sentado à mesa, diante de duas canecas fumegantes, Li Tzu iniciou a explicação: “O Tao sustenta a importância do equilíbrio entre as polaridades da vida, o Yin e o Yang”. Bebericou o chá e prosseguiu: “Podemos viver a vida longitudinalmente ou latitudinalmente”.

Interrompi para dizer que não tinha entendido. O mestre taoista foi didático: “Imagine a sua existência como um grande lago, que ora tem as águas plácidas banhadas por sol; noutras vezes, são agitadas por fortes tempestades”.

“Você pode mergulhar profundo no lago e perceber que a tempestade abala somente a superfície. Assim, aprender que toda a paz de que precisa reside no âmago do lago. É a descoberta da sabedoria oculta. É o movimento para dentro de si mesmo, de contração, o Yin do Tao. Quando retornar à superfície estará fortalecido e iluminado por trazer consigo toda uma realidade e poder, até então, desconhecidos”.

“Você também pode aproveitar os dias de sol para nadar para os lados, nas margens do lago, em busca do conhecimento, da alegria, das maravilhas oferecidas pelo mundo e, em contrapartida fundamental, de compartilhar o que já traz na bagagem. Assim, entender que a vida é farta em beleza e em infinitas possibilidades. É o movimento para fora de si, de expansão, o Yang ensinado pelo Tao. Ainda que de maneira diferente, você se sentirá igualmente fortalecido e iluminado”.

“Ambos os movimentos são imprescindíveis e se completam”.

Utilizei um surrado chavão, no qual estamos condicionados, para comentar que a vida é curta e quando nos damos conta, ela já passou; portanto, temos que aproveitá-la. Li Tzu sorriu, bebeu mais um pouco de chá, e disse: “Há uma ilusão e uma verdade no que você acabou de falar”. Eu quis saber ao que ele se referia e o mestre taoista foi paciente: “Sim, temos que aproveitar a vida. No entanto, para aqueles que assim o fazem, a vida não é curta. Ela tem o tempo exato”. Olhou-me nos olhos e completou: “Tudo depende do melhor sentido que cada um consegue aplicar à própria vida”.

Como as minhas feições deviam transbordar de curiosidade, Li Tzu prosseguiu na explicação: “A vida de todos é sujeita às Leis Universais, sem exceção. Como uma boa universidade que possui o intuito de fazer com que o aluno evolua, o plano de estudo é direcionado por dois professores, conhecidos na tradição oriental pelos nomes de karma e dharma. Cada pessoa tem a sua própria diretriz, entretanto, projetos individuais se entrelaçam em perfeito conjunto. O karma está ligado às lições a serem aprendidas por aquele indivíduo na régua da sua evolução. O dharma diz respeito ao propósito daquela existência, guiado pelo melhor uso dos dons e das habilidades concedidas e, também, à aplicação das virtudes já sedimentadas no ser, no intuito de fomentar outras, ainda em estágio inercial. Nenhuma ferramenta disponibilizada deve restar esquecida na obra da vida”.

“Como fazer isso da melhor maneira é a grande arte. A existência de cada pessoa é como um bloco de granito; cada qual é o artista designado para a transformação da simples pedra em obra-prima. Para tanto, é preciso se empenhar na extração do cascalho que esconde a divina estátua. A vida tem que ser a melhor obra de si mesmo a embelezar os jardins da humanidade. Quando entendemos isto e nos movimentamos nesta direção, a existência ganha sentido. Somente a vida desperdiçada se torna curta”.

“Como as águas do lago, a vida exige movimento, pois, apodrece na estagnação. Todavia, há os que, na ânsia por este movimento, acabam por confundi-lo com agitação, como um vício sombrio e aprisionador. A necessidade do novo não deve se confundir com a mera novidade; estilo não é moda; informação não é conhecimento; conhecimento não é sabedoria; diversão, embora saudável e imprescindível, não significa, necessariamente, aproveitamento. A correria, por si só, não significa avanço; a evolução deve se sustentar no binômio movimento-calma. O indispensável descanso deve estar atrelado ao trabalho para que não vire ócio, assim como a criatividade, necessária para rompermos com o automatismo dos comportamentos, deve ficar ligada à disciplina e ao esforço para que se torne uma realidade além da esfera das ideias, celeiro de nossas ações. O sonho precisa da disposição pessoal para no real encontrar o seu lugar. Ou se perderá nas nuvens. Quando esquecemos o sentido da vida, por mais longa que seja a existência, ela se torna curta”.

“De outro lado, existem os que diante das dificuldades apresentadas dissolvem a vida nas águas turvas do desânimo ou se afogam no redemoinho do fanatismo. A coragem excessiva e sem amor vira violência. A vontade desmedida pode levar a pessoa ao sombrio desejo de impor os próprios conceitos e a manipular às escolhas alheias. Boas intenções quando desligadas das nobres virtudes acabam por ser instrumentos detestáveis de manipulação e aprisionamento. O mesmo acontece com o outro lado da polaridade: a falta de coragem para enfrentar com sabedoria e amor as batalhas que se apresentam, aprisionam o indivíduo na sombra da desculpa de que ‘o mundo não tem jeito’, fazendo com que abandonem as lições e o propósito da vida, desconectando o melhor de si das maravilhas do mundo. Uma variante comum é o trancamento em si mesmo na busca por um conhecimento superior. Mergulhar em si mesmo é primordial para o progresso pessoal, contudo, é preciso voltar à tona e nadar para as margens para oferecer ao mundo o tesouro encontrado nas profundezas do seu âmago e, em contrapartida, conhecer as belezas disponibilizadas pelas outras pessoas, em constante exercício de aperfeiçoamento. O conhecimento nunca se transformará em sabedoria caso não seja compartilhado e aplicado ao cotidiano. Ao contrário, se tratará apenas do medo se escondendo nos mantos do egoísmo, do orgulho e da vaidade. É preciso vir sempre à superfície, se alimentar com o sol, respirar novos ares, confraternizar com toda a gente, encher os pulmões para voltar a mergulhar fundo no lago da vida. Ambos os movimentos, de longitude e latitude, devem se alternar incessantemente, como orienta o Tao”.

Esvaziou a caneca de chá, se levantou e tornou a enchê-la. Em seguida, prosseguiu: “Encontre consigo mesmo para conhecer a face oculta da vida; é na essência do ser que as virtudes se revelam. Mas também encontre com os seus amigos, abrace, sorria, cante e celebre esse valioso alimento da vida. Medite, trabalhe, ouse, brinque e descanse. Enfrente cada dificuldade, não como quem está diante de um problema, mas como quem percebe um mestre em sala de aula disposto a ensinar como se transforma muros em pontes. É no contato com o mundo, no esforço e no entendimento de unir todas as partes em uma única peça, que as virtudes se manifestam e se constrói a obra de arte cuja a matéria-prima é a vida de cada um de nós, pedaço primordial ao Universo”.

Olhou-me nos olhos e concluiu: “A vida te espera dentro e fora de você. A vida só é curta para quem insiste em fugir; seja dos becos escuros do mundo que anseiam por luz, seja das sombras que nos habitam, sedentas por iluminação. Apenas foge quem tem medo”. Interrompi para comentar que sentir medo é normal. Ele me corrigiu: “Não deveria. O medo se sustenta apenas na ignorância em saber quem você é, de verdade”. Então, Li Tzu finalizou com uma das sagradas lições do Tao: “O medo nada mais é do que a ilusão da separatividade”.

Olhei para o céu através da janela da cozinha. Tive a estranha e deliciosa sensação de que uma estrela brilhante sorria para mim.

 

5 comments

Christina Mariz de Lyra Caravello agosto 4, 2017 at 11:40 pm

“A vida te espera dentro e fora de você. A vida só é curta para quem insiste em fugir; seja dos becos escuros do mundo que anseiam por luz, seja das sombras que nos habitam, sedentas por iluminação. Apenas foge quem tem medo”.

Como disse o mestre, cada um de nós tem que trabalhar sua pedra de granito e transformá-la em obra prima. Mas muitas vezes somos desviados de nossa tarefa pelas sombras que nos habitam e que tumultuam nossos propósitos, nossa maneira de ser, que retardam nossas etapas de evolução.

Mergulhar em si mesmo, descobrir o certo e o errado de seu universo interior mas, primordialmente, voltar a tona e dar a conhecer a riqueza de suas descobertas e conhecer as de seus semelhantes.

As coisas só valem pelo que se faz com elas. O conhecimento só se transforma em sabedoria quando é compartilhado.

Podemos imaginar nossa vida como um grande lago de águas , ora banhadas pelo sol ora agitadas por fortes ventos. Quando mergulhamos fundo, percebemos a quietude que não é afetada pela tempestade da superfície. Nesse movimento interno aprendemos a sabedoria. É o Yin, do Tao.
Da mesma forma, quando nadamos para as margens, estamos indo ao encontro das riquezas do mundo, suas alegrias. Nesse movimento externo, compartilhamos a sabedoria de nosso mundo interno com as do externo. É o Yang, do Tao.

Ambos os movimentos, de mergulho profundo e de volta à superfície, devem se alternar incessantemente, segundo o Tao.
Ou seja, o aprendizado da sabedoria e seu compartilhamento.

Não é fácil, mas não devemos ter medo. Temos que viver a vida em toda sua plenitude.
Cada vida é pedaço primordial do Universo.

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Angélica Pellegrino agosto 4, 2017 at 11:50 pm

Agradeço ao Criador pela oportunidade! E por já estar em condições de compreender as maravilhas contidas na vida.
Agora vou continuar, por um bom tempo, pensando nesta lição.

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Claudia Pires agosto 5, 2017 at 4:47 pm

Adorei !!!!!

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Brunão agosto 6, 2017 at 8:45 am

“A vida te espera dentro e fora de você.”
Essa frase me parece transmitir a exata medida do que significa o equilíbrio…

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Dhaniel Terto Madeira agosto 31, 2017 at 3:43 pm

Gratidão!

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