POEMA CINCO – AS LEIS E O FOLE.
Eu estava de volta ao Oriente. Os traços étnicos, as roupas, os utensílios e a arquitetura eram fontes seguras para me situar no espaço e no tempo. Tive de me afastar para o canto da estreita rua de terra a fim de evitar uma carroça puxada por um boi. Em frente, um homem de idade avançada, mas ainda ágil, terminava os últimos ajustes no portão da sua casa. Cerejeiras floridas adornavam o entorno. Ele me pediu ajuda para que conseguisse dar o encaixe final na dobradiça. Era uma pessoa habilidosa e não demorou a finalizar o serviço. Depois me ofereceu uma xícara de chá. Enquanto as ervas estavam em infusão, percebi que sobre a mesa repousavam escritos feitos a nanquim. Perguntei sobre o que ele escrevia. O ancião disse: “Escrevo sobre as coisas que vejo sem que estejam disponíveis aos olhos”. Indaguei como ele fazia isto. A resposta foi imediata: “Observo o mistério, toda a sabedoria e amor jorram desta fonte”. Ao perceber em mim um enorme ponto de interrogação, esclareceu: “O mistério é tudo aquilo que existe no universo, influência as nossas vidas, mas não damos a devida importância. Daí a nossa dificuldade em entendê-lo”. Apontou para nós dois e acrescentou: “O mistério está na raiz de cada essência que, em resumo, são fragmentos multifacetados dele mesmo. Somos as mil faces que, quando encaixadas, desenharão o mosaico maior da vida”.
A conversa transcorria agradável, quando fomos interrompidos pelo soar de uma corneta, seguido por uma voz de tenor que anunciava a chegada do mensageiro do imperador. O ancião o convidou a entrar, se sentar à mesa e beber uma xícara de chá conosco. O mensageiro declinou do convite: “A minha missão é breve. O imperador tem muito apreço por vossa sabedoria. Ele deseja que faças parte da corte e assumas a função de conselheiro. Poderás morar no palácio e serás regiamente recompensado por seus serviços”. Fez um sinal para um dos guardas que o acompanhavam; em seguida, um baú repleto de moedas de prata foi colocado sobre a mesa. Logo após, roupas caríssimas confeccionadas de pura seda também foram oferecidas ao ancião, além de uma caixa com raras especiarias. O mensageiro explicou: “É uma pequena amostra da estima e da generosidade do imperador”.
O ancião arqueou os lábios em leve sorriso e, sem hesitar, se manifestou: “Diga ao imperador que muito me honra o cargo oferecido, assim como me encantam os finos e valiosos presentes. Tornar-se nobre e rico é o anseio de muitos, mas não o meu. Quero dedicar os meus dias a escrever o meu livro, observando a beleza única das floradas na primavera, o cantar dos pássaros na alegria do sol de verão, o sabor doce da fruta típica do outono e agradecer ao mistério por ter lenha na lareira para tornar agradável o frio do inverno. Este pouco é tudo para mim. Por favor, leve de volta as moedas, a seda e as especiarias, sem esquecer de agradecer ao imperador a sua inegável boa vontade com um homem já bem próximo dos seus últimos dias. Atônito e sem dizer palavra, o homem recolheu as coisas, girou nos calcanhares e partiu. Nas feições do mensageiro era possível notar a preocupação com a reação do imperador quando soubesse da recusa.
Como se nada de extraordinário tivesse acontecido, a serenidade do ancião se manteve inabalável. Por instantes, se divertiu com um beija-flor na janela e, depois, voltou a se sentar para tomarmos o chá. Esperei que ele traçasse algum comentário. Como nada falou, eu perguntei sobre o motivo da recusa. Era uma oferta muito generosa. O ancião me observou por alguns segundos, como se procurasse por algo em meus olhos e disse: “É como em um cerimonial dedicado ao mistério por quem não conhece as leis que regem, não somente os homens, mas também a vida. Pegam o animal mais bonito, o engordam, o adornam com riquezas e, quando se chega ao clímax da festa, o sacrificam em oferecimento a algum deus”. Bebeu um gole de chá e prosseguiu: “Assim é com todos que são seduzidos pelas honrarias, tentados pelas delícias do poder e corrompido pelas riquezas do mundo. Diferente não seria comigo ou com qualquer outro. O mistério nos ensina sobre as leis cósmicas, que nada têm a ver com as leis dos homens. Elas regulam a vida, são soberanas e inexoráveis. Entre várias, existe uma que determina que toda causa gera um efeito de igual quilate, embora nem sempre seja perceptível aos olhos da maioria. Nunca atua como vingança, sempre com finalidade educativa, para que a justiça cumpra a sua razão de existir”.
Depois de ilustrar a questão, retornou ao âmago da explicação: “A manutenção do poder mundano exige o sacrifício de muitos ao redor. Sendo assim, em nada me caberia reclamar no momento que, chegada a hora, me enviassem para o sacrifício, como os animais que, depois de engordados, são oferecidos em oferendas. Afinal, me beneficiei das regalias típicas de um jogo do qual conheço o resultado. Só os tolos lamentam da sorte. O mistério não é benevolente, trata os dez mil seres como cães de palha”.
Fiquei sem entender a última frase. Ele me explicou que dez mil seresera um termo muito comum na região, usado para designar todas as pessoas do mundo, sem nenhuma distinção. Em seguida, me mostrou um cesto trançado com palha de arroz que se assemelhava a um animal de quatro patas: “São chamados de cães de palha. Nos rituais, o povo coloca frutas e grãos nos cestos e o oferecem ao mistério. Ao final do cerimonial, é ateado fogo em todos os cães de palha, pois já cumpriram com a sua utilidade. Assim seria comigo ou com qualquer outro. O mistério não é benevolente nem é malvado, não é ativo, porém, reativo. Ele toma nenhuma iniciativa, apenas reage às nossas ações, nos ensinando sobre justiça, sabedoria e amor. Como um maestro, o mistério rege a sinfonia da vida, um conjunto de leis responsáveis pela ordenação, criação, equilíbrio e evolução de todas as pessoas que, como uma orquestra afinada, mantêm o ritmo da evolução planetária. As leis cósmicas mantêm a ordem, educam com exercícios e entregam a parte de cada indivíduo na medida do necessário para cada qual finalizar a obra de si mesmo. O fim de uma obra será sempre o início de outra. Abre-se para o indivíduo um novo ciclo de avanços. Assim, cada um ao seu passo, o mistério conduz todos a própria essência. Então, tornam-se sábios”.
Falei que começava a entender. Questionei se ele não se preocupava com a reação do imperador ao saber da sua recusa. O ancião argumentou: “Os sábios não são benevolentes, tratam a todos como cães de palha”. Diante do meu espanto por causa da ideia que aquela frase me fez supor, ele riu divertidamente e esclareceu: “Não irei lançar o imperador na fogueira. Ao contrário, lhe desejo uma vida longa para que possa aprender as valiosas lições oferecidas pela fantástica escola do mistério. Então, um dia, tornar-se-á um sábio e não mais desejará ter domínio sobre qualquer outra pessoa, salvo sobre si mesmo”.
Bebeu mais um gole de chá e seguiu na explicação: “Se desejamos ser dignos, devemos tratar a todos de um mesmo jeito, sem distinções, seja o imperador, seja um servo do palácio. Todo aquele que busca por sabedoria precisa compreender o movimento e as leis do mistério, sem os quais não entenderá o significado de cada situação que se apresenta na sua vida; todas, sem exceção, existem para nos mostrar algo que nunca reparamos ou ainda não entendemos”.
Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Todas as situações vividas geram causas; todas as causas se revelam oportunidades pelas diferentes maneiras de agir que proporcionam. O efeito será decorrente da escolha realizada. O somatório das escolhas escreve a história e define o destino de cada pessoa. Nem mais nem menos. Estamos matriculados em uma escola de excelência. Basta que saibamos fazer a exata leitura das aulas disponíveis nas situações vividas. Compreender o significado dos movimentos do mistério torna uma pessoa sábia”. Fez uma pequena pausa antes de concluir: “Preste atenção aos jogos do poder. Mesmo um cão de palha adornado com ricas fitas de seda nobre queimará na fogueira do mistério com qualquer outro cão de palha”.
Comentei que pelas feições do mensageiro, o imperador ficaria furioso. Indaguei se ele não temia queimar nas altas temperaturas das fogueiras típicas do ressentimento. O ancião deu de ombros e disse: “Se quero ser um homem livre tenho que viver como um homem livre. Onde há medo não existe liberdade”. Esvaziou a xícara e complementou: “Todos querem a liberdade, mas não querem viver os riscos inerentes à liberdade. Então, erguem as prisões que irão viver. Diferente não é com a dignidade, a paz, a felicidade e o amor. Trazem no coração os belos princípios, mas não vivem os valores que os constroem. Nunca os alcançarão. Almejamos tocar nas estrelas, mas insistimos em subir a montanha errada”.
Bebeu mais gole de chá e continuou: “Ainda não entenderam que a realidade da vida não acontece em um nenhum outro lugar, salvo dentro de cada pessoa onde a essência resta adormecida. É como uma semente que aguarda para germinar, onde nada ainda se criou. Logo, tudo está para ser criado. A criatura se torna o criador quando entende o poder que tem nas mãos. Este poder está dentro de nós, no mundo e além do mundo, é um poder imortal. Todo o poder dos imperadores é vil e vão, pois, são ilegítimos, perecem e têm um triste fim pela mentira que insistiu em se tornar verdade. É um poder de domínio sobre outras pessoas. Logo, não agrega ganhos à essência. Por isto, nenhum sábio almeja o trono do imperador. Por serem alunos dedicados na escola do mistério, os sábios se dedicam a buscar a verdade que somente a essência poderá lhes revelar. Lá os aguarda o único e verdadeiro poder”.
Pedi para ele explicar melhor sobre como chegar à verdade, uma vez que esse encontro estava caracterizado desde o início dessa minha estranha viagem. Com sua enorme paciência, ele disse: “O espaço entre o mistério e a essência é como um fole, ora vazio, ora cheio, quanto mais se move, mais produz”. Colocou um pouco mais de chá em as nossas xícaras e esclareceu: “O preço de um fole varia de acordo com o material que é confeccionado, o tipo de metal e a espécie do couro. No mercado há foles de todos os preços, para ricos e para pobres. Contudo, diferentemente do preço, o valor do fole se estabelece pelo ar que existe dentro dele, pois é assim que mantemos aceso o fogo que nos ilumina à noite, nos aquece no frio e transforma os alimentos”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Entende que mais valioso do que o fole é o próprio ar?”. Arqueou os lábios em sorriso e disse: “O ar não está à venda em nenhum mercado”.
Ao perceber o meu interesse em suas palavras, prosseguiu: “A função do fole é movimentar o ar para manter o fogo aceso. O meu corpo é o fole, o ar são os dias, o fogo se traduz na minha essência; a luz que passará a me orientar e me protegerá da noite escura. Em movimentos opostos, de vai e vem, de contração e expansão; de dentro para fora e de fora para dentro, o ar se move para que o fogo se mantenha aceso, ilumine, aqueça e transforme a essência. Vou ao mundo em busca de experiências, trago-as de volta para o amago do ser, as elaboro em mim. Depois, as compartilho com o mundo e prossigo nesse movimento sem fim. Não é para isso que o fole existe?”.
Anui com a cabeça e o ancião aproveitou o mesmo exemplo para explicar de outra maneira: “O fole são as minhas escolhas, o ar é a experiência que irei elaborar a partir delas, o fogo representa a intensidade da minha luz. Contrair para expandir é a razão do Yin e do Yang, os movimentos vitais da luz, sem a qual restará medo e sofrimento em forma de escuridão”. Abriu os braços como quem fala o óbvio e finalizou: “Em síntese, escuridão é tão e somente o tamanho da incompreensão que cada pessoa tem quanto a si mesmo e o desconhecimento quanto ao poder das suas escolhas para manter aceso o fogo da vida”.
Perguntei se o ancião dava aulas sobre esse e outros assuntos tão importantes. Ele negou: “O discurso prejudica o entendimento. Ninguém é o que fala, mas o que faz. A verdade é uma construção individual. Leia todos os livros, são muito valiosos, pois tratam do legado deixado pelos sábios que nos antecederam. Funcionam como bons mapas. Mas apenas mapas, nada mais do que isto. O mais importante é aprender a elaborar as próprias experiências. Ter um mapa não significa conhecer o destino; será necessário percorrer o Caminho. E ninguém poderá percorrê-lo por ninguém. Do contrário, seria impossível encontrar a semente do mestre que o aguarda no âmago do próprio ser. Depois, a fazer florescer”. Esvaziou a xícara de chá e finalizou: “Conheça as belezas do mundo, aprenda com os livros e com os sábios, entretanto, se faz indispensável entender que é sabedoria escutar a própria essência. Nela, a voz da verdade. Então, a luz”.
Perguntei se ele poderia me ensinar mais sobre a essência, pois eu entendia a sua importância para alcançar a verdade. O ancião arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Basta seguir a viagem”. Em seguida, fez um gesto com a mão para que eu o acompanhasse. Levou-me para fora da casa. Pediu que eu subisse em uma carroça puxada por um búfalo. Depois, murmurou no ouvido do animal palavras inaudíveis e, assim, parti. Acenei para o sábio em despedida. Após a primeira curva, a carroça saiu da estrada e foi ao encontro de uma linda cerejeira. As suas cores cintilantes me fizeram perceber que havia uma mandala no miolo de uma pequenina flor. Atravessei o portal.
Poema Cinco
O mistério não é benevolente,
Trata os dez mil seres
Como cães de palha.
Os sábios não são benevolentes,
Tratam a todos como cães de palha.
O espaço entre o mistério e a essência é como um fole,
Ora vazio, ora cheio,
Quanto mais se move, mais produz.
O discurso prejudica o entendimento.
É sabedoria escutar a própria essência.
6 comments
Exatamente o que precisava
Gratidão 🙏
Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…
Nossa, q texto espetacular, ouso dizer q a explicação do Tao ficou melhor q o texto original. Mas claro q isso se deve a eu nunca ter entendido o texto original como eu pude facilmente entender e me engrandecer com a brilhante narrativa do Yoskhaz.
Divino.
Aprendendo a escutar minha própria essência. Gratidão
obrigado. <3