MANUSCRITOS VI

Sobre correntes marítimas e navegação

“O berço do desespero é a crença na incapacidade das suas forças”, certa vez me ensinou Li Tzu, o mestre taoísta. Foi um período difícil em minha existência, como são as transições impostas pela vida. De acordo com o significado da palavra, transição é o deslocamento de um estágio existencial a outro. Quando não entendemos o fluxo da vida, fazemos o movimento errado. Então, perdemos o impulsionamento oferecido pelo universo. De outro lado, o deslocamento de um local conhecido, onde nos sentimos estáveis e seguros, para outro desconhecido, onde o inusitado se fará presente, sejam delícias, sejam dissabores, costuma trazer medo. Assumo os riscos inerentes à vida, e são muitos, ou me consolo na mesmice dos dias e me nego a ir além de mim mesmo? “A confiança na própria força traz consigo o poder e a magia da vida”, ensinava Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de transmitir a sabedoria ancestral do seu povo através da música e da palavra.

Complicado? Nada melhor do que começar uma história do início para a sua correta interpretação. Esses fatos aconteceram havia muito tempo. Tinha sido um grande amor, desses que vemos nos filmes. Em algum momento, como é comum em muitos casamentos, fomos nos distanciando a ponto de parecermos estranhos um ao outro. Quando a conheci tive a firme convicção que era a mulher da minha vida e que ficaríamos juntos para sempre. Será que eu tinha me enganado?

Eu achava muito difícil me separar, pois tínhamos vínculos de todos os tipos, de afetivos a financeiros. Havia uma linda filha nos primeiros anos da adolescência que ainda necessitaria de muitos cuidados e atenções da nossa parte; seria muito doloroso chegar em casa não a encontrar todos os dias. Questões financeiras, por vezes, trazem mudanças bruscas e desconfortáveis; requer adaptabilidade e desapego. Embora não houvesse briga, existia uma animosidade velada que causava um enorme mal-estar. Para ambos, sem dúvida. Os dias eram cinzentos e, sem me dar conta, passei a desejar que os finais de semana passassem rapidamente para que as horas de convivência se tornassem menores. Ela também.

Em um desses finais de semana, fui levado a participar de um evento na Marina da Glória, um porto destinado a barcos de pequeno porte às margens da Baía da Guanabara. Na época, houvera uma travessia transoceânica exclusiva para navegadores solitários. Participaram velejadores de todos os cantos do planeta. Sozinhos em suas embarcações, tinham realizado a regata Sidney-Rio. A agência de publicidade na qual eu trabalhava era responsável pela conta da empresa que patrocinara o evento. Foi quando conheci Ragnar, comandante do Asbru, um veleiro construído nos modernos estaleiros da Noruega que, apesar de ter apenas dez metros de comprimento, possuía toda tecnologia disponível daquele período. Foi uma amizade imediata. Conversamos bastante e, ao final da tarde, ao saber que eu viajaria em breve para São Francisco, cidade que ele adotara para viver, me convidou para irmos juntos de barco. Ele sairia em dois dias. Depois de conversar com a minha esposa, que me encontraria no final da viagem, foi o tempo necessário para eu organizar os afazeres e me conceder férias. Além da aventura, eu teria condições para pensar melhor sobre dilemas internos que precisavam de solução.

A sós, após os primeiros dias de viagem, foi inevitável que conversássemos sobre nossas vidas. Sem entrar em detalhes, comentei que o meu casamento passava por uma grave crise e era preciso encontrar uma saída. Confessei não saber qual atitude tomar. Ragnar tinha um jeito característico de se expressar. Fazia analogias náuticas aos aspectos da existência, como se observar o mar concedesse a ele toda a sabedoria necessária à vida. O que eu não sabia naqueles dias, era o fato de ele ser um estudioso da Teosofia de Helena Blavatsky e confidente da escritora Louise Hay. Assim são os sábios, simples e enigmáticos. Ele tentou me ajudar ao seu modo: “As correntes marítimas são como rios que se movem invisíveis pelos oceanos. Elas revolucionaram o mundo em uma época conhecida como Era das Grandes Navegações. Quando foram descobertas e, à medida que eram mapeadas, permitiram que as viagens náuticas fossem reduzidas à metade do tempo, com a vantagem de evitar muitas das tempestades causadoras de tristes naufrágios. As distâncias se reduziramquando os marinheiros passaram a navegar através dos rios invisíveis dos oceanos. Da mesma maneira, os movimentos pessoais precisam estar ligados aos fluxos cósmicos”. Movimentos e fluxos eram assuntos que só fui aprender com maior amplitude e profundidade muitos anos depois, quando fui estudar o Tao Te Ching com Li Tzu. Como eu nunca ouvira falar naquilo, quis saber como encontrar tais fluxos para conseguir navegar com maior intensidade pelos mares da vida. Ragnar pareceu complicar ao invés de facilitar: “Entenda as Leis. Elas impulsionam ou interrompem o fluxo de acordo com cada movimento que você fizer”. Fez uma pausa para alertar: “Esqueça a tolice de pensar em tirar proveitos indevidos, rasteiros e mesquinhos delas. Se o movimento não vier com a pureza do coração, esqueça. Não se navega com intenções espúrias no oceano das estrelas. Você irá naufragar”. Fiquei tonto na tentativa de alocar aqueles novos conceitos.

Falei que não entendia onde aquela ideia se adequava ao meu problema pessoal. Confessei não saber o que tinha acontecido para que o relacionamento chegasse àquele ponto. Eu queria entender a razão da minha mulher ter mudado tanto. O comandante nórdico me lembrou uma antiga lição: “A maior mentira é aquela que contamos para nós mesmos”. Afirmei que estava sendo honesto em minhas palavras. Ele explicou: “Mas não consegue ser sincero consigo mesmo. Por não conseguir lidar com verdade, fica sem o melhor entendimento. Por não saber qual o movimento exato a fazer, o fluxo da vida se interrompe. Então, o sofrimento se instala e campeia em terreno propício”.

Ragnar esclareceu: “É maravilhoso quando encontramos alguém para navegar ao nosso lado durante a Grande Travessia. Contudo, não esqueça que essa jornada é realizada dentro e fora da gente, ao mesmo tempo. Como em qualquer viagem, está repleta de possibilidades e contratempos, momentos nos quais podemos nos perder de quem nos acompanha. Temos olhares, gostos, percepções, sensibilidades, princípios, valores e ritmos distintos. Tudo isso é muito pessoal e, quando compreendido, desenha um jeito autêntico de ser e viver. Não raro, nos afastamos sem que haja má fé ou mesmo negligência. Simplesmente, mudamos. Lembre, precisamos nos transformar para evoluir. Todos mudam ou deveriam mudar. Contudo, as transformações se processam de dentro para fora, são muito íntimas e pessoais, para depois se manifestarem no mundo. Cada um tem o seu passo e compasso. Por vezes, um avança e o outro ainda não está pronto para acompanhar; noutras, ambos se transformam, mas essas alterações fazem desaparecer as afinidades que antes existiam, pois passaram a se encantar por diferentes paisagens. Nada de errado, é assim mesmo. Em outras palavras, um seguiu o fluxo da vida enquanto o outro permaneceu estacionado. Ou, também acontece, pegaram correntes marítimas distintas e agora navegam em diferentes oceanos. Quaisquer das possibilidades criam o distanciamento. O processo evolutivo, por ser único, é individual. Nem sempre será possível estar ao lado daquela pessoa, ao menos em grau de afinidade mais íntima, por toda a travessia”.

“Não se lamente sentado à beira do cais. As correntes marítimas são essenciais à vida nos oceanos, elas nunca cessam. A razão de existir de um barco não é o cais, mas o mar. Lançar-se em travessia é o movimento primordial; entender sobre o fluxo dos mares traz a capacidade de navegar com leveza para chegar a portos cada vez mais distantes”. Fez uma pausa para concluir: “Não esqueça, o mar é para todos que querem navegar”.

Comentei que a vida parecia nos punir por termos sido negligentes em nossas relações. O nórdico fez não com a cabeça e disse: “Esqueça essa ideia tosca de punição e passe a trabalhar com conceitos mais elaborados. A vida é uma escola de grandes mestres e ensina através de métodos adequados à capacidade de cada aluno. Educar é tornar melhor. Assim evoluímos. Perdemos o fluxo impulsionador da vida quando fazemos movimentos contrários à evolução. Nada mais”. 

Questionei se era possível reencontrar o fluxo. Ragnar sorriu, fez sim com a cabeça e falou: “Sempre. Para tanto, volte ao ponto no qual você se perdeu de si mesmo e entenda o movimento que o tirou do fluxo cósmico. Realinhe-se sob o próprio eixo, torne a se encontrar com os seus princípios norteadores e valores criadores; seja sempre coerente com a sua verdade no exato limite que a alcança. Jamais negocie com a verdade, mas nunca deixe de ser amável consigo e com os outros. Lembre das virtudes, são indispensáveis instrumentos de navegação. São movimentos ordenadores para se retomar o fluxo e a travessia”.

Mais à frente fui entender que ele também abordava, de modo subliminar, algumas das várias leis cósmicas. Como as correntes marítimas, elas têm o poder de intensificar ou restringir os fluxos da vida. Lei da Afinidade, das Infinitas Possibilidades e do Retorno tinham sido abordadas naquela conversa. A Lei da Afinidade é um inexorável fluxo cósmico que aproximam os afins e, em decorrência disto, os afastam quando os pontos em comum esmorecem. A das Infinitas Possibilidades ensinam que sempre haverá uma chance de recomeçar, nunca de acordo com os desejos, sempre afinada com as necessidades de aprendizado. A do Retorno é um fluxo de educação e justiça, com o objetivo de ensinar que os movimentos do navegante estabelecem a forças das marés e o sentido dos ventos da sua própria navegação, determinando países longínquos ou um naufrágio iminente. As dificuldades podem também estar ligadas a outra Lei, a da Impermanência, cuja finalidade é nos ensinar a navegar sob todas as condições, quaisquer ventos e marés. Esta última tem o valor inestimável de aprimorar uma virtude primordial, a confiança. A falta de confiança é um dos motivos de haver tanta gente amontoada no cais desdenhando do mar. 

Eu ainda não tinha entendido a correlação que ele fazia com a minha crise matrimonial. Ragnar esclareceu: “É preciso sinceridade e coragem para responder se os pilares do relacionamento ainda são as afinidades que mantêm acesa a chama do amor a dois ou se são os interesses de comodidade, conveniência e conforto. Transformar costuma dar muito trabalho e, mais grave, a transição pode gerar insegurança. O medo de viver dias inusitados, completamente fora da rotina que acreditamos dominar, sem saber se serão melhores ou piores, se fará presente. Surgirão pensamentos do tipo: ruim com ele, pior sem ele. Virão questionamentos precoces estimulados pelo medo: E se eu me arrepender? E se eu nunca mais encontrar alguém que queira viver ao meu lado?Sim, o medo é um carcereiro cruel e constrói os grandes cárceres da humanidade. Não raro, preferimos deixar a vida do jeito que está, mesmo vivendo dias sem alegria, pois receamos perder o pouco que temos”.

“Apesar de trazer tão poucas alegrias, os dias modorrentos nos dão a sensação estarmos no controle da situação. Acreditamos que dessa maneira continuamos donos das nossas existências e somos senhores das nossas escolhas. Apenas esquecemos que ao nos afastar do fluxo da vida, já nem mesmo nos pertencemos. Somos como barcos que apodrecem atolados em bancos de areia. De outro lado, se as afinidades que aproximou o casal no passado ainda existem, basta a correção de rota em movimentos convergentes para que os dois barcos, perdidos após breve nevoeiro, voltem a navegar em esquadra”.

Questionei caso não houvesse um consenso. Ele foi claro: “Ninguém é obrigado a ficar no cais só porque o outro não quer navegar. No mesmo diapasão, ninguém é obrigado a fazer a viagem que não deseja”. 

Perguntei em qual situação o meu caso se enquadraria. O nórdico franziu as sobrancelhas e avisou: “Apenas você é capaz de responder essa questão. Ninguém mais. Dentro de cada pessoa existe um universo desconhecido e mal explorado. Esta é a aventura de todos nós, uma viagem para descobrir as maravilhas universo adentro para que possamos nos encantar com as belezas mundo afora. Ao conhecer a si mesmo ganhará o verdadeiro poder sobre as suas escolhas. Elas são os movimentos que ampliam ou restringem os fluxos cósmicos. Estabelecem se você permanecerá no cais, seguirá em navegação costeira ou se já é capaz de navegar por mares inimagináveis e de conhecer mundos fantásticos por conseguir se alinhar as mais poderosas correntes marítimas que existem”.

“Os efeitos oriundos dos seus movimentos é outra das razões para que ninguém decida por você. Todas as consequências, sejam os bons ventos, sejam as borrascas, atingirão ao seu barco. Erre ou acerte, mas faça cada escolha no limite do seu entendimento e verdade. Não tema as tempestades, são elas que geram confiança no marinheiro, fazem despertar a sua força e concede a ele o poder sobre o próprio barco. Tanto a carta de navegação quanto o leme devem estar sob seu absoluto comando, pois alcançam a sua vida em avanços ou retrocessos, além de estabelecer quem você já consegue ser. Não se desperta a própria força nem se entende o poder de alinhamento com a vida sem plena confiança em si mesmo”. 

Comentei que era uma decisão muito difícil por ser angular. Traria mudanças bastante significativas para os meus dias, caso decidisse encerrar o casamento. Questionei-me se não seria caso de tentar reencontrar a mulher que eu havia perdido durante o nevoeiro de um dia qualquer. Ragnar alertou: “Conversar é sempre importante, porém esteja preparado para ouvir o que não deseja ou acredita não ser justo. É o olhar dela; certo ou errado ajudará você a entender melhor o seu coração, algo de valor inestimável. Coloque a sua verdade de maneira serena e clara. Jamais discuta; nenhuma razão sobrevive à irritação, assim como nenhuma decisão deve ser tomada sob essa nefasta influência”. Fez uma pausa e um aviso: “Não faça nenhuma escolha antes que esteja completamente madura. De outro lado, não se demore além do tempo para que a escolha não apodreça. A ausência de decisão se equivale a uma escolha. É como perder o leme e navegar a deriva, causa comum dos mais tristes naufrágios”. 

Olhou-me com seriedade e disparou: “O atributo principal de um navegador é a confiança em si mesmo. Haverá falta de vento, borrascas, neblinas, problemas no barco, mares tempestuosos e motins a bordo. Contudo, nenhuma dificuldade será capaz de deter aquele que confia em sua própria força e poder; nisto reside a arte da navegação. Aqueles que não conseguem se libertar do medo nunca conseguirão zarpar ou serão meros passageiros em barcos alheios”.

No dia seguinte quase não trocamos palavras. O comandante sabia que eu precisava de silêncio e quietude para pensar. Estávamos próximos a costa da Patagônia. Eu ouvira muitas histórias de naufrágios no temível cabo Horn, na confluência dos oceanos Atlântico com o Pacífico. Uma região de ventos caprichosos e correntes marítimas temperamentais. Ragnar percebeu o medo em meus olhos e disse: “Confie na sua força e poder, do contrário, qualquer brisa terá a fúria de uma tempestade. O que mais, além da confiança em mim mesmo me permite atravessar a imensidão sem fim dos oceanos dentro de uma embarcação de dimensões e recursos mínimos?”. Fez uma pausa e ensinou uma inesquecível lição: “Eu posso porque eu sou!”. Fechei-me em pensamentos.

Estávamos no convés, sentados na popa do veleiro. Como sempre, Ragnar estava no leme. Tinha os olhos no horizonte infinito, como se conversasse com o mar e o vento. Próximo ao arquipélago da Terra do Fogo, a minha tensão aumentou. De maneira recorrente, voltavam à minha mente as histórias dos inúmeros naufrágios naquela região. O vento aumentou de intensidade e o mar encapelou. As ondas agitadas sacudiam o valente veleiro que seguia firme em sua rota. A cada segundo o oceano parecia se enfurecer como se o Asbru não tivesse permissão para ultrapassar aquele limiar. Ragnar tinha as feições serenas; não sorria, mas também não demonstrava nenhum temor. Foi quando ele me surpreendeu. Disse precisar ir ao banheiro. Pedi para que esperasse um pouco. O comandante explicou que se sentia mal. Eu teria de assumir o comando naquele instante e me passou uma orientação singela: “Contorne as ilhas e siga a noroeste”. Sem esperar pela minha resposta, levantou-se e desceu à cabine. Fiquei sozinho no convés com a responsabilidade de conduzir o Asbru.

De fato, era um limiar. Não para o Asbru, mas para mim. O guardião me observava.

A princípio não era nada muito complicado, salvo o fato de eu nunca ter pilotado um barco e estarmos naquela região tão perigosa. Após alguns instantes o mar se mostrou enfurecido como se dissesse não passarás. Eu senti muito medo. Em um primeiro momento desejei que o veleiro se chocasse logo contra as pedras para que aquele sofrimento se encerrasse. No segundo seguinte, reconheci a estupidez daquela ideia e me dei conta que o adversário a ser vencido não era o mar nem o cabo Horn, mas o meu medo. Aprumei o Asbru em direção às ondas para que não fosse atingido de lado. Se fugíssemos delas, o barco viraria. Ao enfrentar as ondas de frente, passamos a galopar nelas, como em uma deliciosa montanha-russa. Naquele instante, entendi que assim devemos fazer com o medo. O movimento certo traz o fluxo da vida. Não é diferente com o medo. Quando me dei conta, estava me divertindo com as ondas como bons companheiros. Compreendi que as ondas e os ventos não estavam ali para me derrubar, mas para me fortalecer por me fazerem acreditar em mim. Também me concediam o poder de navegar em plena sintonia com o mar. O medo também nos permite a mesma transição, do temor à plenitude da vida, a depender das escolhas que eu realizar diante dele. O movimento primordial é a confiança na minha força, então, me unifico ao incomensurável poder do fluxo da vida.

O medo se esfumaçou por completo. Sorri pela sensação maravilhosa que me envolvia e agradeci ao mar por aquela inestimável lição. Então, o guardião autorizou a minha passagem pelo limiar.

O mar serenou quando navegávamos ao largo da costa chilena havia quase uma hora. Com um sorriso gaiato e sem dizer palavra, Ragnar voltou ao convés com duas canecas de café e se sentou ao meu lado. A viagem seguiu tranquila até São Francisco sem que falássemos mais sobre o assunto. Não se fazia necessário. Ali me despedi do amigo e reconheci o privilégio de ter navegado ao lado de um sábio. Encontrei com a minha esposa. Conversamos muito. As várias divergências que havia eram em decorrência de olhares que passaram a observar a vida por ângulos distintos. Nem melhor nem pior, apenas diferentes. As divergências não precisam gerar conflitos. Quando bem aproveitadas, servem para muitos avanços. Sejam para entender impensados equívocos, sejam para novas resoluções. Assim, se tornam motivo de convergências. Em comum, chegamos à conclusão que dividíamos a mesma casa, mas habitávamos mundos distintos. Nada que nos impedisse de cuidar da nossa filha da melhor maneira e aceitarmos que o casamento tinha se transformado em uma amizade que, a depender de nós, poderia se tornar muito bonita. Era a hora de desfazer a esquadra. Entender novas maneiras de ser e viver é um atributo da evolução. Conviver não se caracteriza em convencer a outra pessoa a realizar os seus desejos, mas se trata da arte de dar um passo além de si mesmo para encontrar essa pessoa em um ponto onde ela também nunca esteve. Todos avançam.

Muitos anos se passaram. Casei-me e descasei algumas vezes. Nesse período, mudei o curso da minha navegação para navegar mares inimagináveis. Estive em São Francisco por duas oportunidades. Em ambas, Ragnar viajava em oceanos distantes. Recentemente, enfim, voltei àquela cidade ao lado da Denise. Asbru estava no estaleiro para indispensáveis atualizações. Então, reencontrei o nórdico. Foi a alegria decorrente de todas as vezes que amigos se reencontram. O tempo jamais deteriora as verdadeiras amizades. Fomos almoçar. Fiz questão de demonstrar a minha gratidão por todas as transformações oriundas da famosa viagem através do temível cabo Horn. Comentei que fora um gesto de loucura deixar o veleiro sob o meu comando em um momento tão crítico. Poderíamos ter naufragado como tantos outros. Ragnar confessou: “Eu não estava passando mal, apenas quis que você despertasse a confiança em si mesmo, sem a qual nada mais seria capaz de realizar na vida”. Confessei que desconfiava daquela hipótese, contudo, os riscos foram enormes. O nórdico me surpreendeu: “Quando desci à cabine, fui para a mesa de navegação e fiquei observando se os seus movimentos estavam alinhados tanto às correntes marítimas quanto ao fluxo cósmico. De lá, eu poderia desativar o comando do convés e assumir o controle do veleiro”. Fiquei chateado, tudo não passara de mera ilusão. 

Ragnar discordou e me desconcertou com outra lição: “A melhor maneira de ensinar uma criança a andar é estimular a sua confiança aos primeiros passos. Ao se acreditar capaz, ela andará e, logo estará apta para percorrer o mundo. Foi isso que aconteceu naquele dia”. Fez uma pausa e concluiu: “O medo, o desespero e o fracasso têm como berço a crença na incapacidade de uma pessoa quanto as suas próprias forças. Sem confiança a vida se apequena, o mundo nos assusta e ninguém consegue ser tudo aquilo pode se tornar”. Arqueou os lábios em leve sorriso e finalizou: “Todos trazem em si a semente da confiança. Faz-se indispensável despertar essa força primordial. Do contrário, serão eternamente como crianças de colo, sem jamais conseguir andar. Ninguém caminha sem acreditar na sua própria força e poder”.

Abaixei a cabeça diante da grandeza do sábio. Por traz dos ensinamentos falados sobre movimentos e fluxos havia uma lição silenciosa e igualmente preciosa. Sem que eu percebesse, ele me ensinara sobre a força da confiança e o poder de quando esse movimento é usado em sintonia com o fluxo da vida. Isto se chama fé. Eu nunca me dera conta do exato tamanho da ajuda recebida. Agora sabia.

No dia seguinte, Ragnar voltou ao mar. Ele nunca mais atracou em São Francisco. Ninguém teve qualquer outra notícia do comandante nórdico. Em transição justa e merecida, eu não tenho dúvida que hoje o Asbru navega os oceanos das Terras Altas.  

11 comments

Viviane Barbosa outubro 29, 2020 at 4:34 pm

Incrivelmente maravilhoso esse texto.

Gratidão pela reflexão sobre escolhas conscientes!!!

Sou grata por sua dedicação em publicar e nos encher de luz.

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Fernando Cesar Machado outubro 29, 2020 at 5:11 pm

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz,
sem fim…

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Erikson outubro 30, 2020 at 8:50 am

Gratidão marujo!

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Terumi outubro 30, 2020 at 4:34 pm

Gratidão!! 🙏

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Rosana outubro 31, 2020 at 7:21 am

Yoskhaz, muito obrigada por sua companhia durante a caminhada!
Quando eu quis tentar, lutar, quando eu quis fazer o que o meu coração dizia para ser feito… você estava lá.
Obrigado por seu silêncio amoroso, oportuno e necessário.
Obrigada por ajudar no encerramento do ciclo no momento em que ele foi possível e principalmente por partilhar a esperança, por semear dignidade, liberdade, paz e amor, sempre! Muito obrigada amigo!

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Bruno Balthazar Macedo Barboza outubro 31, 2020 at 11:34 am

é engraçado como seus textos se encaixam perfeitamente com os desafios que preciso enfrentar kkkk Obrigado por mais uma pílula de sabedoria, Yoskhaz. Você, por meio do conhecimento passado, salva vidas (ou nos dá coragem para que nós mesmo o façamos). Gratidão

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Adriana Dinoá outubro 31, 2020 at 6:08 pm

Gratidão mestre!
Quantos ensinamentos..
✨🙏🏻

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Joane Faustino novembro 11, 2020 at 2:18 pm

✨✨✨❤️

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SCHWEITZER dezembro 9, 2020 at 10:36 am

Otima travessia.

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Adélia Maria Milani janeiro 4, 2021 at 2:28 pm

Gratidão!!!!

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Denis Dalben março 24, 2021 at 5:58 am

Quem é yoskhaz? Preciso saber! Sou super fã, parece que todos os textos são direcionados a mim, incrível, Deus ilumine o criador de Yoskhaz!

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