Acordei com a Ingrid, a bela astrônoma nórdica de cabelos ruivos, me entregando uma caneca de café fresco. Agradeci. Ela sorriu com os olhos para mim. Depois do ocorrido nos dois últimos dias, não era difícil perceber que os seus olhos tinham um brilho diferente. Uma luz típica daqueles que se alegram por ver o que antes não conseguiam. Ingrid disse que iria providenciar algumas coisas junto à caravana e saiu. Sentado na areia, fiz a minha prece diária e bebi o café sem pressa, enquanto observava o movimento da manhã. Com a caneca vazia, me dirigi à tenda que servia de refeitório para me servir de um pouco mais de café. Um grupo de homens conversava na entrada. Embora não fossem meus amigos, depois de tantos dias quase todos nos conhecíamos de vista. Cumprimentei-os. Um deles era alto e bem forte, apesar da idade avançada. A característica que mais chamava a atenção eram as feições que demonstravam desconfiança sobre tudo e todos. Ele sempre fazia comentários sarcásticos, como se o fato de ridicularizar os outros, de alguma maneira o alimentasse. Diziam que tinha servido no serviço de informações de um país da extinta Cortina de Ferro, do bloco soviético existente à época. Chamava-se Ivan. Havia algo nele que emanava perigo. Talvez fosse isto que me incomodasse na sua presença. Talvez fosse uma intuição. Não raro confundimos as intuições com os nossos desejos e receios. Saber discernir uma dos outros costuma evitar dissabores.
Os homens reunidos na entrada da tenda devolveram o meu cumprimento com polidez, menos Ivan. Ele fez um comentário de duplo sentido em relação à Ingrid. Por instinto, sem qualquer resquício sabedoria, respondi com acidez. Eu não permitiria que ele zombasse da minha relação com a astrônoma. Como a presença dele já me trazia desconforto, a sua ironia foi suficiente para me irritar. Respondi em tom de enfrentamento. Ivan se sentiu ultrajado, pois todos os viajantes pareciam sentir medo dele. Por sua vez, ele adorava esta atmosfera de temor que o envolvia. Para manter a aura sombria que cultivava, Ivan me ameaçou. Na estranheza comum ao seu comportamento, não fez uma ameaça direta. Aliás, nada nele era claro; todas as suas palavras pareciam trazer uma mensagem subliminar. A ameaça foi velada, bem ao seu estilo de ser. Falei que se ele tivesse algo contra mim, que resolvêssemos ali, naquele instante. Nada deveria ficar para depois. Os seus olhos me apunhalaram com fúria. Ele proferiu ofensas e deu um passo na minha direção. Mantive o olhar firme. Mais por orgulho, nem tanto por valentia.
Fui salvo pela chegada do caravaneiro. Ele se colocou entre nós dois, nos olhou e nada disse. Não precisava. No deserto o caravaneiro era a lei. Todos, sem exceção, o respeitavam. Nem mesmo Ivan ousava desafiá-lo. Diante de um silêncio repleto de mal-estar, enchi a caneca com café e saí. Antes, porém, olhei para o caravaneiro e vi uma postura de firmeza e serenidade. Quando olhei para o Ivan percebi o desdém em suas feições, como se enviasse um recado de que eu era muito frágil para ele. Senti, também, que as minhas atitudes foram dardos que lhe feriram o orgulho e a vaidade. Tive a certeza de que haveria troco.
Atos e fatos são fábricas vibracionais; ondas energéticas de sombras ou luz que atingem a todos os envolvidos. Ficar imune às sombras ou aproveitar a luz requer conhecimento e exercício. No entanto, somos bem menos do que sabemos. Temos por hábito apenas reagir diante de uma situação, impulsionados por nossos condicionamentos ancestrais e culturais. Então, reagimos pelos instintos que nos moveram até ali, guiados pelas sombras que ainda não educamos dentro de nós. Sombras geram aprisionamento. Se eu colocasse em prática o que sabia, teria permitido que as virtudes, aquelas que já possuía, se manifestassem em ação. Poderia, também, aproveitar a ocasião para germinar outras virtudes ainda em semente. Virtudes são fontes de luz. Eu sabia disso tudo, mas eu não conseguia ser isso tudo.
Como consequência justa, fiquei me sentindo mal. As minhas sombras estavam no domínio; medo, orgulho ou raiva se alternavam através de ideias e emoções. Tudo tão denso dentro de mim que não existia uma pequena brecha por onde entrar um mísero facho de luz. Quando o desequilíbrio se instala no ser; a nitidez dos pensamentos nobres e a clareza dos bons sentimentos desaparecem. Tudo passa a incomodar. Quando Ingrid se aproximou para comunicar que faria a travessia deste dia ao lado do bom homem do chá, a quem todos consideravam um sábio, pois ela tinha vários assuntos que gostaria de conversar com ele, enciumado, dei uma resposta atravessada à astrônoma, em total desrespeito à sua liberdade. Ela me olhou sem entender e se afastou. A razão desse meu comportamento era o desentendimento com o Ivan, na superfície. Em profundidade, era por não saber lidar com as minhas emoções quando alguém se mostrava hostil a mim. Montei em meu camelo; ninguém alinhou ao meu lado. Um pouco depois, após alguns minutos de travessia, o caravaneiro se aproximou, em seu cavalo branco, me olhou fundo por breves segundos, e disse: “O deserto te arrancou de ti.” Fez uma pausa antes de concluir: “Para não naufragares em tempestades de agonia, será preciso voltar para ti mesmo. Não há melhor abrigo.” Tocou com os calcanhares no ventre do cavalo, moveu as rédeas com destreza e sumiu de vista.
Como se o caravaneiro tivesse a capacidade de ler a minha alma, atravessei a primeira parte da marcha afogado em enorme agonia. Foi como se mais nada existisse ao redor. Pior, era como se eu não fosse mais senhor de mim. Eu não conseguia pensar em outra coisa que não fossem as possibilidades de desdobramento do conflito. Possibilidades desastrosas, por qualquer viés que eu conseguisse enxergar. As sombras – as minhas próprias sombras – tinham total poder sobre mim. Medo, raiva e orgulho formavam o triunvirato que me comandavam.
No meio do dia não paramos para descansar como de costume. Marchamos por mais duas horas até um pequeno poço para nos abastecer com água. Veio a ordem para acamparmos. Ficaríamos ali o resto do dia, onde também dormiríamos. Enchi os meus cantis. Em seguida me afastei do grupo. Sentei na areia e fechei os olhos. Eu precisava pensar, porém não conseguia. As ideias se mostravam confusas, como em colisão com as emoções. Tudo em mim parecia disperso. Sentia-me desanimado. Quando abri os olhos a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli estava sentada ao meu lado. Como se adivinhasse, ela explicou: “O desânimo surge quando deixamos secar as fontes internas de luz. Então, bebemos nos riachos das sensações turvas. Restamos envenenados e na escuridão.”
Confessei que aquela sensação era mais forte do que eu. Sentia-me incapaz de sair de onde estava. A mulher ponderou: “A nossa consciência molda a realidade. É preciso que você se acredite forte o suficiente para enfrentar qualquer situação na sua vida. Do contrário, não conseguirá.” Falei que o argumento era válido, no entanto, me parecia insuficiente. Ela concordou: “Trata-se apenas do primeiro degrau. No entanto, ele é essencial para que haja a escalada ao topo.” Perguntei qual era o topo. Ela respondeu de pronto: “A prevalência das virtudes em forma de ação ao invés dos instintos mecânicos de reação; o sábio sobre o selvagem, ambos habitam em todos nós; as sombras transformadas pela luz. A integralidade do ser; a conquista das plenitudes.”
Apesar de ter esse conhecimento, admiti a sua ineficácia, ao menos para mim, nas relações do cotidiano. A mulher se mostrou generosa: “Sem a devida prática, a teoria se desmancha nas noites do tempo.” Fez uma pausa e revelou: “Vou lhe ensinar um exercício. Foi como eu aprendi a me fortalecer, a reencontrar o meu eixo e não me perder das fontes de luz em momentos de conflitos, semelhantes ao qual você atravessa.” Perguntou se eu estava disposto. De imediato respondi que sim. Ela pediu para que eu deitasse na areia e fechasse os olhos. Tirou uma pequena flauta da bolsa que usava à tiracolo. Em seguida começou a tocar uma suave melodia. Pediu para que eu tentasse me desligar de tudo ao meu redor, inclusive dos fatos recentes e também dos pretéritos. Isto ajudaria a esvaziar as emoções e a ideias que me dominavam. Eu deveria me deixar conduzir pela música. Era preciso deixar que cada nota entrasse em meu corpo e, como se fosse uma vassoura ou esponja, limpar qualquer resquício de sujeira que me impedisse a clareza das ideias e a leveza dos sentimentos. A canção prosseguiu por algum tempo até que a mulher de olhos azuis cessou com a música e quis saber como eu me sentia. Falei que um pouco melhor, pois tinha conseguido, por breves minutos, me desligar dos fatos que me perturbavam. Mas apenas um pouco melhor, reiterei. Ela me situou com a sua voz suave: “Não permita que a ansiedade escureça a estrada. Começamos agora. A jornada é longa.”
A mulher de olhos azuis me perguntou em qual lugar eu me sentia melhor, acolhido e em segurança. Respondi que em casa. Ela pediu: “Imagine-se em casa em um encontro consigo mesmo. Sentem-se frente a frente. Busque por todo o conhecimento adquirido até hoje para transmitir a você mesmo as bases de sustentação das suas próximas atitudes daqui por diante. Um comportamento repleto de virtudes. O medo, o orgulho, a vaidade, a inveja, o egoísmo, os desejos insensatos e a desesperança darão lugar à coragem, à humildade, à compaixão, à mansidão, à misericórdia, à pureza e à fé. Uma troca que provocará uma inimaginável transformação no ser.”
“Antes de qualquer decisão, tenha em mente que você deve tratar os outros como gosta de ser tratado, levando em consideração que as dificuldades são comuns a todos, inclusive a você. Entenda que não apenas a força, mas também a clareza, estão na consciência, além de quaisquer circunstâncias externas e materiais. O bom combate começa dentro de si. Ele é travado por aquele que usa as virtudes como espada. As virtudes se manifestam através das escolhas sem as quais não existe avanço na travessia pelo deserto.” Fez uma pausa antes de encerrar a primeira etapa: “Firme um compromisso consigo mesmo e aceite a responsabilidade que acabou de firmar. Assim a luz consagra os seus guerreiros.”
Senti a minha casa como se fosse um templo sagrado. Foi como se todo o poder da luz ancorasse em mim. De alguma maneira, comecei a me sentir diferente e melhor.
Ela prosseguiu: “Agora, em sua tela mental, se encontre com alguém em quem você confie, cuja a presença traga conforto e a sabedoria seja admirada. Pode ser alguém que você conheça, um grande mestre da humanidade ou mesmo um personagem admirável da literatura, cuja saga e o enorme conhecimento tenham como viga principal o amor.” De imediato, pensei no Velho, o monge mais antigo do mosteiro, por sua serenidade e sabedoria. A mulher continuou: “Se imagine sentado ao lado dele, em uma conversa amigável na qual você expõe os seus problemas e ouve os conselhos desse mestre. Escute as palavras, compreenda os conceitos, descortine os véus da ilusão.”
“Após esse encontro, vá à procura da pessoa que o incomoda ou assusta. Olhe nos olhos dela. Veja-o sem raiva nem ressentimento. Caso sinta medo, não recue, o medo é normal; apenas permita que a sua coragem se manifeste e, aos poucos, ocupe o lugar do medo. Jamais seja agressivo; apenas os covardes são violentos. Seja manso, porém firme; a mansidão é uma virtude permitida aos melhores guerreiros. Dispa-se do seu orgulho e vaidade. Não leve o ciúme no bolso, tampouco a inveja escondida na manga. Esteja puro para estar inteiro. Ser puro não significa ser tolo; ser puro é estar livre de subterfúgios. Imagine todas as possibilidades de atitudes cabíveis por parte dessa pessoa. Recuse-se a reagir por impulso ou por instinto diante de cada possibilidade; isto você sempre fez e nada lhe trouxe de bom. Ao invés de apenas reagir ao movimento dessa pessoa, aja de maneira a não mais aceitar as regras de um jogo obsoleto. Não se permita mais jogar nas regras das sombras. A partir de agora serão as regras da luz. Lembre, ninguém consegue caminhar pelas noites do deserto. Nesse cenário, imagine como você agirá diante da provocação ou da ofensa proferida; considere todas as possibilidades que você consiga; seja criativo e pense em algo nunca antes imaginado. Sem esquecer que agora você agirá com as armas com a qual se compromissou, a luz.”
Essa etapa demorou um tempo que não sei precisar. A cada possibilidade eu tendia a reagir no mesmo tom, a “devolver na mesma moeda”. Era preciso refazer os conceitos e a devida ação futura; a fazer diferente e melhor; a me permitir a outra face. A tão incompreendida outra face, a face da luz. Não foi fácil, mas foi transformador. A mulher com os olhos azuis esperou com infinita paciência eu me declarar pronto.
Por fim, ela sugeriu: “Agora volte ao seu lugar sagrado para se encontrar de novo consigo mesmo. Analise toda a trajetória. Olhe para dentro sem esquecer de olhar para fora; seja bom para si, mas ofereça aos outros algo que eles não tenham ou não conheçam. O deserto será sempre um perfeito reflexo do andarilho. Entenda as próprias razões, mas lembre que o outro, assim como você, também vive na fronteira da própria consciência. Não raro, cada um traz uma parte da verdade. Analise se você foi digno em seu comportamento ao oferecer aquilo que gostaria de receber; se a sua atitude foi a de um indivíduo livre de preconceitos, condicionamentos e dependências; se houve esforço em semear uma ideia de amor; se você ficou feliz com as suas escolhas e, ao final, em paz consigo mesmo.” Fez uma pausa e concluiu: “Então, você estará pronto para o bom combate.” Ponderei sobre o imponderável; eu não saberia como agir diante de uma atitude imprevista. Ela me tranquilizou: “O maior perigo é o de você agir fora da luz. O poder que o ilumina é também aquele que o protege.”
A mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli se levantou e saiu.
Mais tarde, encontrei com a Ingrid e lhe pedi desculpas pelo comportamento que tive pela manhã. A astrônoma foi carinhosa e disse que todos têm os seus maus momentos. Disse que eu era uma pessoa muito importante para ela. A Ingrid tinha o dom de fazer do seu coração um bom lugar para estarmos. Todos se sentiam bem ao seu lado. Exigir a sua presença com exclusividade não era uma atitude digna de pessoas livres por ficar aprisionado à liberdade alheia. Nunca será um gesto de amor por impor condições ao amor. Afinal, nenhum privilégio é justo; sem sermos justos em todas as nossas relações não nos sentiremos felizes nem em paz. Sorri para mim mesmo. Eu nunca tinha me dado conta de como situações aparentemente banais do dia a dia podem nos ensinar tanto em relação às plenitudes.
À noite, na hora do jantar, me dirigi à tenda do refeitório. Enchi uma cuia com sopa de ervilha e, como de costume, fui me sentar afastado. No trajeto encontrei com o Ivan. Estávamos a sós. Ele me provocou fazendo novas insinuações em relação à Ingrid. Em seguida, tornou a me ofender. A primeira emoção foi a raiva; as sombras impressionam por sua enorme velocidade. No entanto, desta vez eu tinha me preparado. Eu dominei a raiva ao invés dela se apossar de mim. A raiva, assim como qualquer emoção sombria, gera energia. No entanto cabe a mim direcionar essa força em outra direção para aproveitá-la para o bem. Para tanto tenho que envolvê-la em alguma virtude para que se transforme em luz. Então, posso usar a energia, agora modificada, para melhores fins.
Usei a compaixão para alterar a frequência da minha raiva. Naquele instante, descobri um amor que eu mesmo não conhecia. Senti-me com entranha força a partir do momento em que eu me mantive irredutível no meu compromisso com a luz. Ali comecei a entender um pouquinho sobre a fé, em como movimentar a luz através de mim.
Eu não queria falhar logo no primeiro combate. Na verdade, percebi que batalha aconteceria primordialmente, não perante ao Ivan, mas dentro de mim. Eu somente poderia ajudar ao Ivan em relação às suas sombras se eu fosse capaz de superar as minhas. A compaixão utilizada para modificar a raiva apenas foi acessível quando admiti que as dificuldades de Ivan são familiares às dificuldades que tive ou tenho. Os graus e os tipos podem ser diferentes, mas o parentesco é inevitável.
Olhos nos olhos, eu sabia que não podia haver qualquer resquício de soberba ou superioridade. A humildade é a virtude primordial sem a qual nenhum avanço será possível. Falei com honestidade que havia algo nele, Ivan, que eu admirava. Ele me olhou surpreso. Eu disse que ele transmitia a todos à sua volta uma força incomensurável e muito importante pelo seu poder de construir e proteger. No entanto, em razão do seu jeito agressivo, aquela força gerava medo; logo, repulsa. Ponderei que se aquela força fosse melhor direcionada, passaria a gerar respeito e admiração; logo, aconchego. Uma impressionante força nata que precisava ser trabalhada de maneira diferente. Propus que eu o ajudasse; considerei que ele, sem nenhuma dúvida, também tinha muito a me ensinar.
Atônito, Ivan desviou o olhar. Manteve-o longe, muito além das dunas ou das estrelas do deserto. Quando tornou a me olhar, vi sofrimento em seus olhos. Por trás daquele homenzarrão existia um menino solitário pedindo ajuda. Disse que ninguém tinha conversado com ele daquela maneira. Afastados do burburinho da caravana, sentamos na areia.
Ivan contou a sua infância sofrida e as dificuldades de sobreviver em um país pobre sob regime totalitário, no qual os direitos e garantias pessoais eram quase inexistentes. O medo imperava; a força bruta era valorizada. Então, aprendera a utilizar o medo para se impor. Era a única ferramenta que ele conhecia e sabia usar. Acostumara-se assim, como se não existisse outra maneira de ser e viver.
Ivan se comportava como aprendera desde sempre. Agressividade era a maneira inconsciente de ele esconder dos outros, ou admitir para si mesmo, as suas fragilidades, as fraquezas morais e emocionais com as quais não conseguia lidar. Ele acuava as pessoas por temer questionamentos. A violência era como um escudo para se proteger de questões internas com as quais não sabia lidar. Tornara-se um homem temido, mas não era feliz. O medo não permitia o florescimento de amigos. Os homens se aproximavam por interesses escusos, nunca por sincera afeição. As mulheres se aproximavam quando desejavam proteção, nunca por admiração. Confessou que estava cansado. A sua força era também a sua fraqueza, ou seja, a sua agressividade era mera expressão da sua covardia. Covardia de enfrentar a si mesmo.
Ivan me perguntou como deixaria de provocar medo para causar respeito. Expliquei que força e violência são manifestações distintas; o amor e as virtudes as diferenciam. Usei o caravaneiro como exemplo. Era um homem que emanava uma inquestionável força, porém o aprimorado senso de justiça que o orientava fazia dele uma pessoa respeitada e agradável pelo clima de confiança proporcionado.
Ficamos um tempo em silêncio. Ivan, com os olhos mareados, confessou que sempre se sentiu fora de si, como se em algum momento da existência alguém o arrancara do seu eixo para viver um personagem inventado. Disse que era hora de voltar para dentro dele, encontrar quem era de verdade. Pois, apesar da idade avançada, ainda não sabia. Sincero, me agradeceu a ajuda. Falei que a conversa só ganhara aqueles contornos pelo fato de ele já estar pronto para a mudança que se anunciava. Eu apenas o tinha despertado de um sono demorado. Ele tornou a agradecer, disse que gostaria de me ter como amigo. Falou que tinha muito para pensar. Levantou-se e foi embora. Aos meus olhos, vi um menino se afastar.
Eu também tinha muita coisa para pensar. O deserto tinha me arrancado de mim, mas quando voltei a me encontrar algo havia se modificado. Percebi que, guardadas as devidas diferenças, o medo e a agressividade usados como ferramentas por Ivan tinham algo em comum comigo. Por toda a minha existência eu alimentei enorme vaidade e orgulho pela minha criatividade profissional. Usei-a ilimitadamente para acuar clientes, depreciar a concorrência e, com isso, conseguir vantajosos contratos. Uma ferramenta que, mal-usada, serviu às sombras por magoar muita gente, me permitir conquistas indevidas e, para piorar, me iludir maior do que os outros, além de me tornar um dependente em elogios e aplausos. Embora as sombras do Ivan pudessem estar mais visíveis para a maioria das pessoas, elas não eram mais inocentes do que as minhas, tampouco eu tinha sido um homem melhor do que ele. No fundo, entre nós, havia mais semelhanças do que diferenças.
Os iguais se atraem. As diferenças explicam aquilo que não entendemos em nós.
Uma bela lição do deserto restara agregada em meu ser. Fiz uma prece; agradeci pelo problemas e conflitos, valiosas alavancas de transformação. Era preciso agradecer também a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli pelos exercícios ministrados. Quando abri os olhos, a vi ao longe, no alto de uma duna. Ela dançava para as estrelas.
17 comments
Gratidão! ♡ ☆ ♡ Serviu como uma luva. Vou ler e reler.
Que o grande Mistério te abençoe.
Gratidao! 🙏
Sensacional Yoskhaz , agradeço quase que diariamente por ter seus textos na minha vida.
Grato pela sua dedicação e tempo utilizado para fazer a vida de outros melhor.
Gratidão Yoskhaz!!
Por permitir que essa luz vibre através de você!
“Os iguais se atraem”. As diferenças explicam aquilo que não entendemos em nós.
Tenho tentado assimilar isso a algum tempo na vida pessoal…
Obrigado Yoskhaz!
Em cada texto um banho de luz. Me identifico tanto, que me sinto presente nesse deserto mergulhando nas minhas sombras…rs Que presente! Gratidão!
Agradeço ao Universo por você servir tanto à luz!
Muito bom! Um dos melhores dessa saga do deserto! Gratidão.
Obrigado pelos textos de luz e sabedoria.
Gratidão 💗🌹
Lindo texto.👏👏👏👏
Você é leonino yoskhaz ?
Gratidão!!! Gratidão!!!Gratidão!!! Deus continue a te iluminar…
Essa travessia me desnuda. E me converge ao meu propósito. Gratidão por inspirar!
Belo texto para reflexão. Muita luz no interior para ajudar no exercício de combate às deficiências. Humildade, calma, respeito, coragem sempre.
As virtudes!
As diferenças nós atrai e explicam aquilo que não entendemos em nós uma reflexão na vida Gratidão 💓