MANUSCRITOS III

A fronteira entre a riqueza e a prosperidade

 

Um dos meus sócios na agência de publicidade conseguiu me localizar na única estalagem da pequena vila chinesa onde morava Li Tzu. Tanto o sinal do celular quanto a internet eram precários e intermitentes em razão da região, não raro, assolada por fortes ventanias. O recado deixado na recepção era claro: eu deveria retornar imediatamente das minhas férias e interromper os estudos do Tao Te Ching que fazia com o mestre taoista. Uma conhecida multinacional tinha nos procurado para fechar um vultoso contrato. Todavia, para atendê-la da melhor maneira, teríamos que rescindir os acordos com as pequenas e médias empresas que sempre foram uma base sólida para a agência. Toda a paz e a felicidade que eu estava sentindo nos estudos, na meditação e na prática da ioga, que iniciara naquela viagem, desapareceram por completo. Fiquei tenso e dividido entre ir e ficar; entre o risco de aceitar um negócio milionário que poderia despencar na variação dos interesses típicos de uma grande corporação, mas que, se mantido, me deixaria rico ou permanecer no atendimento às muitas firmas que nos acompanhavam desde o início da agência. Com os nervos exaltados, os sócios estavam divididos entre as opções. Acabei por discutir com um deles ao retornar a ligação.

Quando entrei na casa de Li Tzu, Meia-noite, um preguiçoso e desconfiado gato preto que morava lá, me olhou espantado, eriçou a pelugem e se escondeu. O mestre taoista, ao me ver, mesmo sem ainda saber dos fatos, não hesitou em afirmar: “Algum acontecimento não foi bem absorvido em seu interior e teve força para lhe tirar do eixo. A sua energia emana tensão e desajuste”. Confessei-me agoniado e contei tudo o que ocorria. Ele me convidou para um chá. Enquanto me acomodava à mesa, Li Tzu colocou algumas ervas em infusão, comentei que estava triste de ter que interromper abruptamente aquele retiro em razão da solicitação dos meus sócios, pois aquela convivência me fazia bem. O mestre taoista deu de ombros, como quem fala o óbvio, ao dizer: “A cada um os percalços a serem enfrentados no Caminho. O que fortalece o peregrino são as escolhas de direção todas as vezes que surge uma bifurcação. E elas são muitas; algumas simples, outras complexas. De um lado a estrada das paixões; de outro, a vereda do amor. A cada escolha escrevemos o diário da viagem, definimos a paisagem que encontraremos a seguir, o tempo e a dificuldade do percurso naquele trecho”.

Eu quis saber o motivo de algumas escolhas serem tão complicadas. Li Tzu respondeu com compaixão: “As escolhas são fáceis quando envolvem aspectos aparentemente superficiais de nossas vidas; sofisticadas quando trazem mudanças significativas. Todas têm importância. Complicadas, no entanto, apenas quando ainda desconhecemos quem somos. Isto nos impede de entender para onde seguiremos. Todas se tornam simples quando sabemos aonde queremos chegar”. Discordei sob o argumento de que qualquer pessoa no meu lugar também ficaria dividida e agoniada com a decisão que tomaria. A chance era boa, porém envolvia riscos consideráveis. Ele discordou: “Os riscos são inerentes à vida. A ousadia é necessária”. Perguntei se ele estava aconselhando a fechar negócio com a multinacional. O mestre taoista balançou a cabeça: “De jeito nenhum. A ousadia reside em fazer o que poucos fariam. Está em ir quando todos acham melhor ficar ou ficar quando todos gostariam de partir. A escolha tem que ser sua, pois, será você quem terá que lidar com as consequências e, mais, é parte essencial do aprendizado que lhe cabe. Cada escolha funciona como o leme da nau na viagem da existência. A viagem é pessoal e intransferível, pois traz consigo a magia da plenitude quando se trava a batalha do destino. Mas pode levar ao sofrimento quando se luta a guerra errada”. Falei que não estava entendendo e pedi que explicasse melhor, afinal, ele era um mestre. Li Tzu sorriu com sincera humildade e falou: “Vou ajudá-lo sempre que possível. No entanto, jamais esqueça que cada qual é o perfeito mestre de si mesmo e, também, o único guerreiro que poderá conduzi-lo a vitória”. Em seguida, abriu um surrado exemplar do milenar Tao Te Ching, no capítulo trinta e três:

“É inteligência conhecer os outros,

é iluminação conhecer a si mesmo.

Vencer os outros é dominação,

vencer a si mesmo é libertação.

Ter muitos bens é riqueza,

Viver com o suficiente traz a prosperidade.

Ser leal aos princípios é sabedoria

Viver por amor permeia o Infinito”.

Pediu para que, depois que eu soubesse o texto de cor, me dirigisse à sala de meditação e ficasse lá com as outras pessoas que também estudavam o Tao. Retornei no final do dia em busca de uma boa conversa e alguma orientação. Li Tzu pediu que eu fosse para a estalagem descansar e retornasse no dia seguinte. Isto se repetiu por três dias consecutivos, sem que eu conseguisse trocar ideias com o mestre taoista. Ansioso, procurei por Li Tzu para dizer que eu estava sendo pressionado pelos meus sócios que pediam a minha volta e exigiam uma decisão em relação à questão. A multinacional não esperaria por muito tempo. Ele disse: “O seu tempo é o tempo perfeito para você”. Falei que não tinha entendido. O mestre taoista foi didático: “Enquanto o tomate amadurece em meses, o abacateiro leva anos até a primeira floração. Assim são as pessoas. Cada qual tem um período único de gestação para que uma nova ideia esteja pronta para ser vivida. É o movimento interno de contração, o Yin, que deve se ampliar ao limite para restar completo e então possa, em constante processo de mutação, iniciar a fase de expansão para o mundo, o Yang. Ambos são igualmente importantes e imprescindíveis. Daí a importância da paciência para com toda a gente e, principalmente, para consigo mesmo”. Olhou-me com bondade e perguntou: “A sua escolha já está madura?” Respondi que não e por isto eu estava agoniado. Acrescentei que não achava justo fazer com que os outros esperassem indefinidamente pela minha escolha. Li Tzu concordou, em parte: “Claro que não podemos estender demasiadamente uma decisão quando terceiros dependem dela. Isto é ruim, é exercício de dominação. No entanto, também não a podemos apressá-la em demasia apenas no intuito de atender à ansiedade e aos desejos alheios. Isto também é ruim; é a permissão da dominação. Algo ou alguém apenas têm sobre nós o poder que concedemos a eles; não devemos permitir a interferência sobre as nossas escolhas. Precisamos nos respeitar, sempre com o cuidado de manter o orgulho, a vaidade e o egoísmo à distância. Esta é uma maneira elegante de atravessar a vida. Isto é libertador”.

Naquele dia, quando voltei para a hospedaria, liguei para a agência. Quem atendeu foi o sócio com quem eu havia discutido. Ele me atendeu nervoso, falando de maneira ríspida. Tratei-o de modo gentil e mantive a fala serena. Postei-me com humildade ao pedir ajuda no sentido de que eles esperassem por mais uma semana pela minha decisão. Deixei todos à vontade com a opção de me excluírem da sociedade, fato que eu entenderia pacificamente, embora tenha deixado claro que eu não desejasse isso. Expliquei que ainda estava indeciso. Aos poucos ele foi se acalmando e disse que aguardaria. A conversa me trouxe uma estranha tranquilidade em razão de ter enfrentado, de maneira sincera e calma, o medo que me atormentava. Segui por mais alguns dias com a meditação e a reflexão sobre as palavras do Tao. Aos poucos as ideias foram ficando claras como em uma manhã de inverno na qual precisamos esperar o sol ganhar força para dissipar a névoa que encobre a paisagem. Então disse a Li Tzu que já tinha tomado uma decisão. Ele tornou a me convidar para um chá. Assim que o mestre taoista encheu as nossas xícaras, falei que eu era feliz com a vida que eu tinha. Embora não fosse rico, não me faltava nada. Acrescentei que tinha um ótimo relacionamento com os clientes antigos, donos de pequenas empresas. Alguns tinham até virado amigos. Não desejava trocar isso por uma relação impessoal e de meros resultados numéricos. Esta era a minha escolha. Perguntei se eu estava errado. Li Tzu bebeu um gole do chá e disse: “Não existe certo ou errado. As escolhas devem estar alinhadas à vida que cada um deseja viver. Respeite as escolhas alheias como jeito honesto de fazer com que as suas escolhas sejam respeitadas, principalmente por você mesmo. O melhor para você não é, necessariamente, o melhor para o outro; a recíproca se aplica de modo exato. Isto o faz entender qual é a sua batalha para não travar a guerra errada”.

“O planeta segue em movimento yang, de expansão. Tudo parece se agigantar e grandes corporações ganham mais poder a cada dia. Mas não se preocupe, pois tudo segue como deve. Ao chegar ao limite desse crescimento o movimento entrará em mutação e passará a se mover em contração, em direção interna. É o yin. Assim nos regem as leis universais. Isto é a essência do Tao. Na verdade, algumas pessoas percebem isso e já andam nesse sentido. Entendem a beleza e a grandeza em ser pequeno. Então, tornam-se enormes por se tornarem plenas”.

“Entender a diferença entre riqueza e prosperidade é um passo decisivo para a paz. A paz interna e, por consequência, a paz no mundo. Muitos têm riqueza como sinônimo de prosperidade. A fronteira é imperceptível para os olhos distraídos. A riqueza está ligada ao acúmulo de bens, ao conceito de quanto mais eu tiver mais poder terei. O indivíduo passa por toda uma existência empenhado em amealhar posses; depois fica preocupado em proteger a riqueza para não perdê-la, pois, segundo raciocínio típico, seria considerado como uma derrota”. Olhou-me com doçura e fez uma pergunta retórica: “Qual a utilidade de ter mais do que se precisa?”

Sem esperar pela resposta, prosseguiu: “A prosperidade consiste em fazer bom uso com aquilo que se tem. Não existe nada de errado em trabalhar e ganhar muito dinheiro. Isto é maravilhoso desde que se faça algo de bom com ele. O dinheiro é uma ferramenta importantíssima; somente isto. Todavia, deve estar a serviço de uma boa obra. Sempre”.

“Mesmo que não tenha uma única moeda a oferecer, pode um indivíduo ser mais próspero do que outro que tenha cofres repletos de ouro. A prosperidade também reside na riqueza de conceder uma palavra de coragem para uma pessoa que esteja com medo ou um abraço para quem está triste. Ser doce e gentil é sinal de prosperidade. Ninguém é tão pobre que não possa fazer isso, mas é preciso ser próspero para viver assim”.

“Um operário que receba um salário digno, que mantenha a si e a sua família com o necessário para uma vida saudável, dedicado na sedimentação das virtudes, terá um lar amoroso e uma existência próspera. A fortuna se oculta nos estados de plenitude, nas riquezas existenciais da vida: a paz, a liberdade, a dignidade, o amor incondicional e a felicidade. O verdadeiro tesouro é imaterial e sutil, tal e qual o espírito. A plenitude traz consigo um poder incomensurável”.

Fez uma pequena pausa e continuou: “O rico dono da empresa em que esse operário trabalha pode até possuir uma gorda conta bancária, mas se ainda conecta a plenitude ao dinheiro, não passa de uma pessoa, em realidade, mais pobre do que o seu funcionário. Embora se esforce para demostrar poder e alegria em festas, mansões e iates luxuosos, trata-se de um indivíduo miserável, frágil e triste. Ele precisa desses enfeites e fantasias no exercício do orgulho e da vaidade, para se sentir forte e bonito”. Bebeu mais um gole de chá e ampliou o raciocínio: “Em contrapartida, um colega daquele feliz operário, com o mesmo salário e função, pode ser uma pessoa pobre, agoniada e revoltada com a sua situação, acreditando-se infeliz pelo fato de não possuir uma enorme fortuna material, quando, em verdade, lhe falta a riqueza imaterial, a prosperidade. De outro lado, nada impede de um empresário milionário em ser próspero. Basta utilizar os seus bens com sabedoria tanto no aparelhamento do bem-estar pessoal quanto às necessidades comuns a todos. Há inúmeras maneiras de fazer isto”.

“Em suma, a prosperidade passa ao largo da riqueza. Estará sempre ligada ao sentido que se aplica à existência pessoal e a todas as ferramentas inerentes à vida. O dinheiro é uma delas, sendo muito bom quando bem usado”.

“Cada pessoa sempre estará diante da perfeita batalha. Trata-se daquela travada dentro de si mesmo, com as armas disponibilizadas sempre na exata necessidade do aprendizado individual. Esta é a parte que cabe a cada qual na obra de arte da vida. Tenha cuidado para não esquecer da sua ao se distrair com a batalha dos outros. Senão, lutará a guerra errada. Enfrente a sua com determinação e se empenhe em ajudar os demais no que for capaz. Assim, a prosperidade sempre será uma aliada. Este é o bom combate”.

Arqueou os lábios em leve sorriso, esvaziou a xícara, e encerrou a conversa: “A prosperidade ensina que de quanto menos eu precisar, mais livre serei”.

Quando retornei da China tive uma reunião com os meus sócios. Éramos quatro. Como não houve consenso, decidimos por nos separar definitivamente. Eu e mais um manteríamos a nossa agência e ficaríamos com os clientes antigos. Os outros dois fundariam uma agência apenas para atender à multinacional com a exclusividade exigida. Os funcionários que trabalhavam conosco optaram com quem passariam a colaborar.

Passados quase dez anos, a multinacional decidiu por rescindir de maneira unilateral o contrato. A agência dos meus antigos sócios ainda tentou se manter no mercado, mas nem sempre é fácil conseguir novas contas, principalmente dentro dos patamares que eles se acostumaram e para manter a grande estrutura que tinham. Resolveram fechar as portas. Como tinham ganho muito dinheiro durante aquele período, puderam se aposentar sem qualquer dificuldade econômica em relação ao futuro. Tinham ficado ricos. Um deles foi morar em uma bela mansão nos arredores de Paris, cidade onde residia a filha. Mais tarde, eu soube que ele sofria de depressão pelo fato de encarar o fechamento da agência como uma derrota pessoal. Tornou-se uma pessoa de difícil trato. O outro separou uma boa parte do dinheiro adquirido para montar uma ONG junto a um subúrbio do Rio de Janeiro, com a finalidade de instruir jovens carentes nos vários softwares de design gráfico, indispensáveis para quem deseja ingressar na publicidade. Era um homem feliz por usar o que tinha, seja o dinheiro, seja a vasta experiência no setor, em prol da alegria de todos.

De outro lado, eu e o meu sócio continuamos com a agência em funcionamento, sempre com pequenos contratos. Longe de ficarmos ricos, vivemos com algum conforto. Eu sigo trabalhando muito e me sinto um pouco mais sereno e alegre a cada dia. Gosto de ver como consegui ajudar, de alguma maneira, com o meu dom, o desenvolvimento daquelas antigas empresas. A amizade com os proprietários dessas empresas se fortaleceu e, alguns, viraram membros da minha família. Uma comum-unidade. No entanto, o sócio que permaneceu comigo, vive se lamentando da oportunidade perdida de ficar milionário. Tornou-se amargo. Sempre que surgem as inevitáveis dificuldades, lamenta que poderia estar no lugar daquele que “está em Paris, bebendo champanhe na Champs-Élysées”. Esquece que os anéis de brilhante nem sempre revelam o verdadeiro poder das mãos de quem os usa.

Hoje, quando escuto as pessoas confundirem riqueza com prosperidade, é inevitável a lembrança das lições de Li Tzu. Recordo que naquela visita, quando, com a mochila nos ombros, fui me despedir dele, o mestre taoista perguntou se a minha escolha estava madura. Respondi que sim. Ele, então, sussurrou um dos segredos mais profundos do Tao: “O poder sobre si mesmo lhe concede a força do mundo e a beleza da vida”.

 

7 comments

Nazaré Dimaria agosto 26, 2017 at 12:13 am

M A R A V I L H O S O !!!

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Claudia Pires agosto 26, 2017 at 10:37 am

Maravilhoso texto.

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Joane Faustino agosto 28, 2017 at 8:13 am

Gratidão!!!

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André Dattoli setembro 5, 2017 at 12:43 pm

Parabéns, por mais um texto Maravilhoso!
Gratidão!

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Ed Fogaca setembro 10, 2017 at 11:37 am

Ótimo

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Julie outubro 17, 2017 at 11:10 pm

Amei! Muito Obrigada! 🙏🏻

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Maria Holanda Ferreira Briglia novembro 24, 2017 at 10:32 am

Parabéns por mais um lindo e maravilhoso texto… Amei😍

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