MANUSCRITOS IV

O Primeiro Portal – Os Oito Portais do Caminho

Eu já integrava a Ordem há algum tempo. Sempre ouvira falar dos Oito Portais do Caminho, mas nunca tivera a oportunidade de saber exatamente do que se tratava. Disposto a entender sobre o assunto, naquele dia procurei pelo Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, por todo o mosteiro. Fui encontrá-lo sentado no fundo da cantina, entretido com um pedaço de bolo de aveia e uma caneca de café, em animada conversa com o cozinheiro. Quando ele me viu fez sinal para eu me aproximar. Enchi uma xícara de café e me sentei ao seu lado. O alegre cozinheiro pediu licença, pois estava atrasado com o jantar. A sós, questionei o Velho acerca dos Oito Portais; sobre o que seriam e quando eu aprenderia sobre eles. O bom monge arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “O Caminho é a estrada para a Luz. Iluminar-se é encontrar consigo mesmo para se conhecer e se libertar dos sofrimentos que aprisionam; burilar as crostas que ocultam o verdadeiro diamante: o ser pleno. A plenitude se revela e se completa na conquista dos cinco estados fundamentais do espírito: a liberdade, a paz, a dignidade, o amor e a felicidade. Assim se constrói uma alma forte, capaz de se manter serena mesmo diante das tempestades do mundo”.

“O que não significa estar alheio aos problemas do mundo, atitude egoísta e desprovida de misericórdia. Esta, uma das mais bonitas expressões do amor. Ao contrário, é não ‘lavar as mãos’; é se envolver, em profundidade, com as dores da humanidade, no exercício de oferecer o melhor que se tem a cada dia, todos os dias. Como aquele jardineiro obstinado que olha para o enorme deserto com o firme propósito de transformá-lo em um jardim. Ainda que somente seja capaz de plantar flores em um pequeno cantinho, jamais desistirá da parte que lhe cabe na execução do seu trabalho. O jardineiro trabalha sereno, sem se abalar com as enormes dificuldades inerentes à empreitada; ele caminha sem negociar com a escuridão, pois sabe que a luz brota em seu coração. É a jornada para as Terra Altas, como se ensina no Oriente; é aproximar-se de Deus, como aprendemos no Ocidente”.

Falei que era tudo muito poético, mas pouco prático. Acrescentei que, na realidade, não sabia como fazer para me iluminar, conquistar a plenitude, viajar para esferas mais elevadas do espírito ou ficar próximo a Deus. O Velho balançou a cabeça como quem entendia os meus dilemas e explicou: “A ferramenta mais importante que temos, disponível a qualquer pessoa, são as escolhas. Todos têm esse poder e a possibilidade de exercitá-lo diversas vezes em um único dia, todos os dias. A todo instante nos deparamos na bifurcação entre a estrada larga da perdição e a porta estreita das virtudes”. Fez uma pequena pausa, como uma pausa dramática para ressaltar a cena e murmurou como quem fala consigo mesmo: “As virtudes…”.

Bebeu um gole de café e prosseguiu: “O entendimento e o aprimoramento de cada uma das virtudes, quando aplicadas às escolhas do dia a dia, se tornam os instrumentos para a construção da plenitude. A luz é uma flor de muitas pétalas; cada pétala é uma das virtudes do ser”.

Olhou-me como quem conduz pela mão uma criança perdida e disse: “Você tem estudado sobre as virtudes desde que pisou no mosteiro pela primeira vez. De como utilizá-las para iluminar as sombras que existem em si mesmo, harmonizar as emoções reinantes no coração e ir além das fronteiras do pensamento dominante. As virtudes são como a espada do guerreiro que o ajudará a enfrentar as dificuldades que tentarão impedir de que alcance o cálice sagrado, a iluminação. Esse é o Caminho; nele existem oito portais. Em cada um deles haverá um guardião que o defenderá. Você somente conseguirá atravessar se mostrar ao guardião que já possui as virtudes inerentes ao portal da vez. A cada portal será necessário ao guerreiro um grupo de diferentes virtudes, que aumentam de dificuldade à medida em que se avança. Cada portal representa uma oitava do Caminho; oito portais perfazem toda a jornada. O Caminho da Luz”. Tornou a fazer uma pausa para concluir: “Com sabedoria perceberá que, no fundo, os guardiões não querem te impedir de prosseguir, mas estão ali para aprimorar as tuas virtudes e te transformar em um guerreiro melhor a cada dia. Até o momento em que o guerreiro se tornará um mestre”.

“O Caminho é vivido no mundo, mas percorrido dentro de si mesmo. Os guardiões se manifestam através das sombras do próprio guerreiro. Apenas elas podem impedi-lo de prosseguir”.

Maravilhado e desconcertado com as palavras do Velho, falei que desejava conhecer cada um dos Portais. O monge me surpreendeu: “Você já os vem estudando desde que entrou na Ordem”. Falei que ele estava enganado, pois nunca ninguém havia me mostrado nada nesse sentido. Cogitei que talvez tivesse faltado às palestras e cursos referentes ao assunto. O Velho me conduziu ao raciocínio: “Por que somos a Ordem Esotérica dos Monges da Montanha?”. Respondi que o nome era em razão de o texto do Sermão da Montanha, contido no Livro de Mateus, ser o eixo central dos nossos estudos no mosteiro. Acrescentei que a leitura desse valioso texto nunca seria feita com os olhos da literalidade, mas sempre através de um viés esotérico. Todos os escritos, oriundos das mais diversas e belas tradições filosóficas, sempre úteis e preciosos, estarão pautados pelos ensinamentos do Sermão e lhe serão complementares. Contudo, insisti, eu desconhecia os Portais. Indaguei onde tomaria conhecimento deles.

O Velho, que possuía o infinito poder de surpreender, deu de ombros e disse como quem fala o óbvio: “No Sermão da Montanha”. Diante do meu espanto, ele deu uma divertida gargalhada e disse: “O tesouro sempre está escondido no quintal da nossa casa”. Sério, explicou: “Mas é sempre assim, precisamos conhecer o mundo para, então, reconhecermos o valor da nossa casa e, então, voltarmos. Somos os filhos pródigos.” Ainda não convencido, balancei a cabeça em negação e argumentei que já tinha lido o Sermão da Montanha dezenas de vezes. Afirmei com segurança que nele não constava nenhum trecho sobre os Oito Portais. O monge me fez um simples questionamento: “Como se inicia o Sermão?” De pronto, respondi que começava com as Bem-aventuranças. Então, com um sorriso travesso no rosto, ele me fez uma pergunta muito fácil, porém desconcertante: “E quantas são?”. 

Eu não acreditei. Também não respondi tamanha era a minha surpresa. Cada uma das oito bem-aventuranças era um dos Portais do Caminho? Não era possível. Tudo debaixo do meu nariz e eu não tinha sido capaz de ver. Ficamos um tempo sem dizer palavra até que me dei conta que, na verdade, não era tão simples assim. Falei ao Velho que não conseguia associar as ideias, ou seja, como interpretar e entender cada bem-aventurança como um portal. O Velho franziu as sobrancelhas e explicou: “Não foi à toa que a Bíblia foi o primeiro livro impresso no planeta após a invenção da gráfica. Gutemberg era um iniciado. A Bíblia, ainda hoje, é o livro mais publicado no mundo. Nenhum livro é mais metafísico, alquímico e esotérico. As Escrituras estão adormecidas no inconsciente coletivo, apenas a espera de quem tiver olhos capazes para despertar o seu sentido mais profundo. Ler com os óculos do ego não fará qualquer sentido; é preciso que se leia com as lentes da alma. Esta é a leitura esotérica que ilumina e transmuta o ser”.

Sacudi a cabeça em contestação como quem diz que tudo aquilo era bobagem. Argumentei que eu conhecia o trecho das bem-aventuranças de cor e podia garantir que nada havia ali capaz de indicar um portal. Para comprovar, citei a primeira: “Bem-aventurados os que têm coração de pobre, porque deles é o Reino do Céus”. Em seguida, olhei para o Velho de um modo desafiador, como quem coloca o outro em xeque-mate. 

O Velho me ofereceu um doce sorriso como quem está em frente a uma criança teimosa e disse com a sua voz serena: “Um pobre, principalmente naquela época, se vestia com quase nenhuma roupa. Ao contrário dos ricos, que se enfeitavam com tecidos caros, armas vistosas e aparatos reluzentes. Ter um coração de pobre significava uma pessoa desprovida de máscaras, enfeites e truques no seu jeito de ser. Dispostos a viver sem orgulho nem vaidade. São indivíduos que já entendem que a essência é mais preciosa do que a aparência e não usam esta para esconder aquela. É o indivíduo disposto a deixar de nadar na superfície do lago da existência para mergulhar fundo no oceano da vida. Por essas razões, o Primeiro Portal é conhecido como o Portal da Lucidez. A lucidez permitida para quem já conseguiu descortinar o véu das ilusões mundanas e está disposto a vivenciar a realidade imaterial do sagrado. O sagrado é tudo aquilo que transforma e aperfeiçoa o ser”. 

Eram conceitos repetidos constantemente no mosteiro, mas que naquele momento ganharam outra relevância e mostraram a devida grandeza. Eu quis saber quais as virtudes necessárias para atravessar o Primeiro Portal. O Velho não se fez de rogado: “A humildade, a simplicidade, a compaixão, a leveza, o respeito, o equilíbrio e a alegria”.

Em seguida, ele falou, de modo resumido, sobre cada uma delas: “A humildade é a virtude primordial ao andarilho. Ela ensina a ser pequeno para que um dia possa ser grande; ensina que orgulho nada tem a ver com autoestima. Uma nobreza verdadeira capaz de defender e libertar o andarilho das ofensas, todas vulgares, que apenas revelam as sombras daqueles que as proferem. É a virtude da ‘ânfora vazia’, daqueles que sempre estão esvaziados de si mesmo para que haja lugar para o novo e para as diferenças. São os eternos aprendizes, conscientes da longa jornada que têm pela frente e maduros quanto às suas capacidades e dons. É a lucidez daqueles que sabem quem ainda não são”.

“A simplicidade é a virtude dos que vivem sem complicações, sem máscaras, sem subterfúgios. Sim é sim; não é não. É a lucidez de viver com transparência, de ser você mesmo, com todas as dificuldades e sombras que lhe são inerentes. A simplicidade é típica daqueles que sabem quem são e não se envergonham disto. Apenas com simplicidade podemos nos sentir parte do todo. A simplicidade faz com que o Caminho acolha o andarilho. Humildade e simplicidade são siamesas”.

“Sempre haverá quem saiba mais e menos do que você. A compaixão é a virtude daqueles que, por conhecerem o próprio estágio evolutivo, entendem o momento evolutivo alheio. É a lucidez de não exigir dos outros a perfeição que não se tem para oferecer. Sabem que não se pode esperar flores de quem tem um deserto dentro de si. Sabem que, por sua vez, dentro dele mesmo nem todos os recantos são jardins floridos. A compaixão é a companheira inseparável da humildade e da simplicidade; juntas despem o individuo das armaduras do orgulho e das pompas da vaidade.”

“A leveza é a virtude do desapego. É aquela na qual se valoriza mais as necessidades de luz pela alma do que os desejos do ego por brilho. Daqueles que sabem diferenciar riqueza de prosperidade. A leveza afasta a influência da inveja em nossas escolhas, o nefasto vício das comparações. É a lucidez daqueles que já entendem o que poderão levar para as Terras Altas, daquilo que cabe na sua bagagem sagrada, o coração. É aprender a viajar sem as pesadas malas das desnecessidades que tanto atrapalham a caminhada. A leveza me ensina que de quanto menos eu precisar, maior será a minha liberdade”.

“O respeito é a virtude do andarilho que já não permite interferência em suas escolhas, pois sabe que elas o traduzem e definem a sua viagem. Escuta a todos, pois todos têm algo a ensinar. Porém a decisão é somente sua; ela tem a importância de representar os valores da sua alma. Em contrapartida, abdica de interferir nas escolhas alheias. Esta é a lucidez de entender a fronteira entre a liberdade e a prisão do ser. O ciúme diminui à medida que o respeito aumenta”.

“O equilíbrio é a virtude de não se permitir ser dominado pelo descontrole emocional, veículo comum utilizado pelas sombras no intuito de manipular as nossas vontades. Quando deixamos de ser senhores das nossas melhores escolhas, situação comum quando arrebatados por emoções movidas pelo ódio, mágoa, frustração, medo ou egoísmo, enfraquecemos a luz que nos anima e orienta. Não raro, perdemos a rota. O equilíbrio oferece a lucidez para nos manter no eixo da luz e seguir escolhendo por amor. Ou escolheremos errado”. 

“Por fim, a alegria. Assim como o bom-humor, a alegria é uma característica dos espíritos iluminados. Não existem razinzas nas Terras Altas. A alegria é a virtude daqueles que caminham de bem e em paz com a vida, apesar das dificuldades inerentes à existência de todas as pessoas. Uma alegria pura e simples, apenas pelo fato de ser um andarilho. São aqueles que semeiam o sorriso por onde passam, levando um pouco de luz aos becos sombrios do mundo. Sabem que sarcasmo e ironia são formas disfarçadas de violência e nada tem a ver com o bom-humor. É a lucidez daqueles que conseguem ver o lado bom existente em todas as coisas; a sabedoria, a justiça e o amor do Todo em qualquer parte”.

“Essas são as virtudes que o andarilho precisa para ultrapassar o Primeiro Portal”. Comentei que não era fácil. Ele franziu as sobrancelhas e disse: “Ninguém falou que era fácil, apenas que esse é o Caminho. As ‘portas são estreitas’, avançar é uma escolha”. Bebeu um gole de café e finalizou: “Tem outro detalhe. Na medida que o guerreiro aprimora as suas habilidades mais lhe será exigido pelos guardiões nos próximos portais. Infinitas transformações serão indispensáveis”. 

Antes que eu pedisse para que ele falasse acerca dos demais portais, o monge esvaziou a sua caneca de café e pediu licença, pois estava na hora da palestra que faria no mosteiro. Perguntou se eu não iria assistir. Agradeci, mas respondi que não. Eu precisava de silêncio e quietude para alocar cada uma daquelas ideias em mim. O Velho sorriu, se levantou, me deu um beijo na testa como faz um pai carinhoso, e se foi com seu passo lento, porém firme. 

17 comments

Bruno fevereiro 28, 2018 at 10:20 am

Gratidão…

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Claudia Pires fevereiro 28, 2018 at 10:29 am

Espetacular esse texto. Grata sempre pelos seus ensinamentos.

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Jefferson fevereiro 28, 2018 at 12:09 pm

UAU!!
Minha compreensão se dará no silêncio das palavras…
GRATIDÃO!

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Karen Regina fevereiro 28, 2018 at 2:09 pm

Lindo * Gratidão

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Adélia Maria Milani fevereiro 28, 2018 at 10:39 pm

Gratidão sempre! VC é um iluminado!

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ANDREA APARECIDA RIBEIRO março 2, 2018 at 6:18 pm

Sem palavras… Me sentindo iluminada após dias sombrios.

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Douglas março 3, 2018 at 3:06 pm

Seus textos vao iluminar o mundo tanto quanto o sol que ilumina o dia e tanto quanto todos os sols que iluminam a noite.

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Viviane Carneiro março 8, 2018 at 2:52 pm

Olá, há mais de dois anos tenho lido esses textos e creio que este é quase um lindo resumo de tudo que já li aqui. Fantástico, Maravilhoso, Divino, Sagrado … Sempre gratidão infinita. 🙏💜🇧🇷

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Michelle março 8, 2018 at 8:26 pm

🌹

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Joane março 21, 2018 at 4:26 am

Gratidão 💗🌹

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Roberto Pires março 26, 2018 at 9:50 am

“Antes que eu pedisse para que ele falasse acerca dos demais portais, o monge esvaziou a sua caneca de café e pediu licença, pois estava na hora da palestra que faria no mosteiro”.

A propósito, quando virá o próximo portal ????? Compartilho a ansiedade….

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Romario Sales abril 11, 2018 at 11:18 pm

Obrigado por compartilhar!

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Marise dos Santos Gonçalves abril 14, 2018 at 9:36 am

Gratidão sempre!!!

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Márcia Campos maio 13, 2018 at 9:29 pm

Quanto mais leio mais evoluo
Abraço Mestre

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Brunão maio 31, 2018 at 11:41 pm

“O tesouro sempre está escondido no quintal da nossa casa.”
Impossível não lembrar do final do livro: “O Alquimista” do Paulo Coelho.
Gratidão!

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Célia vieira novembro 12, 2020 at 9:59 am

Só sei que nada sei
Caminho em pequenos passos tentando cada dia ser um pouco melhor, identificando onde falho, vivendo a tentar não falhar.
Só por hoje confio
Gratidão

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Cristiane Fróes Simões outubro 30, 2021 at 8:26 am

SIM

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