TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo terceiro limiar – Barcos navegam no ar)

O sol da primavera trazia cor e encanto à paisagem. No meio de árvores frondosas e flores selvagens, uma bela casa erguida com paredes de pedras se destacava no cenário. Ao som de pássaros que celebravam a chegada da manhã, um homem com longos cabelos e barbas loiros deixava o olhar vagar ao longe. Aproximei-me. Apesar da inegável beleza bucólica do lugar, eu não conseguia compreender o que ele observava com tanto interesse. “Não consegue perceber?”, devolveu-me a pergunta que não fiz. Como quem se fascina diante das maravilhas da vida, ou do óbvio invisível a olhos imaturos, adiantou a resposta: “O ar”. Em seguida, acrescentou: “Os ventos são os rios do céu. Através deles navegam as aves, insetos, pólen, aromas, palavras e, um dia, também as pessoas por ali se deslocarão de um lugar a outro. Temos as bençãos da brisa que alivia o calor do verão, assim como as ventanias de inverno que esmagam as plantações; os ventos trazem tanto a chuva que irriga o solo quanto a tempestade que alaga as estradas”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Pode-se prender animais ferozes e aprisionar homens poderosos; porém jamais se conseguirá reter o vento em uma jaula, caixa ou algema. É possível fechar a janela para não o deixar entrar em casa, mas é impossível impedir que ele siga adiante. No plano físico, nada se assemelha mais às ideias e aos sentimentos – elementos construtores de todos os indivíduos –, do que o vento”. Alisou a barba e continuou: “Entender o poder do vento é compreender as características da verdadeira riqueza; nada o detém ou retém, tampouco será objeto de furto ou apodrecerá. O vento é o símbolo do sábio”.

Pedi que explicasse melhor. Ele estava entusiasmado: “Os barcos não são do mar, porém, do ar”. Falei que não fazia sentido aquela afirmação. Sem virar os olhos para mim, ainda embevecido com as próprias observações, explicou: “Os ventos são imprescindíveis às embarcações. As naus e caravelas não trariam as especiarias da Índia ou as sedas e porcelanas da China se não fosse pelos ventos. Barcos não navegam no mar, mas através dos ventos”. Antes que eu contestasse, o homem esclareceu: “A queda de Constantinopla fechou as principais rotas de comércio entre o oriente e o ocidente por terra. O mar será a solução, se apressam em dizer os distraídos. Temos de controlar os oceanos, bradam os afoitos. Não! São os ventos que movem as embarcações; o legítimo caminho e o autêntico poder são invisíveis como os ventos”. Argumentei de que nada serve um barco fora d`água. O homem meneou a cabeça e explicou: “Qualquer tolo sabe disso. Preocupam-se com o que veem, esquecem que o genuíno poder da vida está naquilo que as mãos não conseguem tocar, ladrões não podem roubar, reis são incapazes de confiscar, exércitos jamais conseguirão exterminar. Assim como acontece com as embarcações, ideias e sentimentos são os ventos a impulsionarem ou naufragarem os viajantes pelos mares da vida. Pensamentos e emoções se alimentam de luz ou sombras, na exata medida da percepção e sensibilidade pessoal, ou seja, da própria consciência, determinando erros e acertos de cada escolha. Assim navegamos. Tudo mais é menos”.

Em seguida, acrescentou: “Não importa onde você esteja nem quem seja, a leveza traz beleza à pobreza; a suavidade atravessa muros de pedras. Os ventos movem ou interrompem todas as viagens”. Interrompi para dizer que eu não conseguia enxergar nada de belo na pobreza; atravessar muros de pedra apenas me parecia possível com o auxílio de uma escada ou marreta. O homem era bondoso: “Um coração pobre em mágoas, vazio de ressentimentos e rancores liberta o viajante das experiências desastrosas e frustrantes. Torna-se leve por não mais carregar o peso que esmaga a alma; filtra o veneno das emoções que estreitam o pensar. Então, irrigado por ideias claras e simples, o solo da consciência se torna fértil ao florescimento da verdade e das virtudes que trazem encanto e transformação”. Passou a mão sobre os cabelos longos e disse: “Existe uma virtude chamada compaixão; ela ensina que não podemos exigir de ninguém a perfeição que não temos para oferecer. Todos estamos em aprendizado; alguns estão mais adiante e, por isto, ainda não os entendemos; outros, um pouco atrás de onde estamos, mas em lugares que um dia também frequentamos, portanto, há que se ter respeito e paciência. A compaixão é degrau primordial para alcançarmos a liberdade que somente o perdão pode oferecer. Mágoas, ressentimentos e rancores são cargas pesadas que trazem lentidão, ou mesmo estagnação, à viagem. Entender que não se pode navegar longas distâncias levando sentimentos densos nos porões do coração, equivale a trocar os movimentos cansativos dos remos pelo impulso dos ventos em velas estufadas por ideias luminosas e sentimentos sutis. A alma flui pela leveza”.

O homem prosseguiu com a explicação: “Atravessar muros de pedras é entender a desnecessidade dos conflitos. Em verdade, ainda reagimos mal todas as vezes que o mundo nos diz não. Ora explodimos em irritação, ora implodimos em desânimo. Por vezes, saímos às ruas para brigar e discutir com outras pessoas que nos trazem contrariedade ou desconforto; noutras, as trazemos para dentro de nós, onde travamos uma batalha longa e insensata. Nada disso é necessário; ainda mais grave, completamente inútil. Se prestar atenção, nunca haverá vencedores; mesmo que esmague os opositores e a sua vontade prevaleça, sofrerá pelas feridas abertas no próprio coração”. Virou-se para mim e disse: “Desejar que as pessoas se adequem às minhas verdades e vontades equivale ao desejo de dominar as multidões; não acontecerá, tampouco será um combate legítimo e produtivo. Metamorfosear as próprias sombras em luz já é uma guerra e tanto; concentre-se integralmente nela; todas as demais são vãs e nada acrescentam à sua luz, o seu verdadeiro e único tesouro”.

Comentei sobre a dificuldade de lidar com pessoas ásperas e insinceras. Ele ponderou: “As ofensas falam sobre a bagunça interna do agressor, não deixe que a confusão alheia desarrume o seu coração. Muitas vezes será impossível impedir que lhe roubem o dinheiro, no entanto, a paz, a felicidade e a honra serão sempre inexpugnáveis se você assim as mantiver e cuidar. O traidor é uma vítima de si mesmo, pois, promulga uma sentença de exilio e autolesão à alma; todo mal pertence a quem o pratica. Nada termina aqui ou ali para quem faz uso de qualquer espécie de maldade; não se trata de castigo, mas de inevitável aprendizado. Há que se ter compaixão; cada qual é herdeiro das escolhas que faz. Jamais cultive em seu coração os erros e as incompreensões alheias; do contrário, adoecerá por se alimentar de frutos venenosos. Perdoe, desconsidere os rugidos e ruídos do mundo, confie em si; tenha cuidado para não embaçar as lentes da verdade, para que mapa não se mostre confuso e a bússola fique imprecisa; atrele as virtudes à alma para navegar entre os obstáculos e as contrariedades do mundo com suavidade e leveza”.

Encantou-se por alguns instantes com a destreza de um beija-flor ao aterrissar no ar para se alimentar do néctar de uma flor e disse: “Em verdade, só existe uma única batalha, aquela que cada pessoa trava no próprio âmago; tudo ao entorno fornece o conteúdo necessários aos desafios internos de superação. Vencer a si mesmo significa reconstruir as imperfeições para desconstruir agonias e medos. Para tanto, se faz indispensável decodificar todas as incompreensões para as transformar em sabedoria e amor; não há fonte mais produtiva. Quando há entendimento e aceitação, obstáculos deixam de ser impedimentos para adquirirem função pedagógica; os lamentos, até então corriqueiros diante das dificuldades, darão lugar a sinceros agradecimentos; onde antes havia um problema, agora se enxerga a oportunidade de descobrir uma solução inusitada a partir de uma transformação intrínseca. Uma após outra. Assim muros se transformam em pontes para atravessarmos os abismos dos sofrimentos”.

Voltou-se para o cenário bucólico e disse: “Descortinar a luz da alma para que haja clareza e firmeza nos movimento seguintes permite o aprimoramento do gosto e do sabor pela vida, substituindo a aspereza dos relacionamentos e a amargura dos dias pela serenidade de quem navega no ar para além dos alcances dos estilingues. Quando conflitos e mágoas se desmancham, as velas se aprumam ao vento; nada nem ninguém poderá reter a embarcação”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “Assim, o não-agir mostra o seu alcance e poder”. Antes que eu pedisse a explicação necessária, ele se adiantou: “A expressão não-agir foi trazida do oriente pelos mercadores das Rotas da Seda. Refere-se a um aspecto de extrema importância. As ações intrínsecas são as causadoras dos autênticos avanços; tudo mais são os efeitos decorrentes da transformação do indivíduo. Os resultados verdadeiramente significativos ocorrem quando nos movemos ao encontro da nossa alma; uma ação que, embora se expresse na mudança do jeito de ser e viver, em nada depende ou atinge outras pessoas. Trata-se de cada um consigo mesmo. Diante de um problema, as multidões se esgotam na tentativa de mover o mundo, quando a solução consiste em uma simples mudança de olhar. Um movimento de transformação interna sem participação ou deslocamento das coisas do mundo. O não-agir é uma jornada através da própria consciência; uma autêntica revolução, invisível a olhos imaturos, afoitos e apressados”.

Olhou para mim e prosseguiu a explicação: “A consequência natural será um fazer sem esforço ou exigência para que o melhor aconteça e o bem se realize. Quando os fundamentos da luz se tornam devidamente consolidados no âmago do indivíduo, as mesmas ações e reações, antes instintivas e selvagens, fundadas em orgulho e soberba, vaidade e estardalhaço, ciúme e mágoa, inveja e destruição, comuns há tempos, se tornam luminosas por passarem a se basear em humildade e silêncio, simplicidade e mansidão, pureza e quietude, amor e sabedoria, sem a necessidade de qualquer espetáculo, hesitação ou desgaste. O agir passa a funcionar como uma força da natureza”, fez uma pausa para sublinhar as palavras: “Da natureza daquele indivíduo. Um poder pessoal e irrefreável; assim como o sol encerra com o reinado da noite sem pedir permissão, o viajante seguirá em frente sem que o mais impetuoso dos reis possa impedi-lo”. Arqueou os lábios em lindo sorriso e concluiu: “Acredite, tudo se resume a você consigo mesmo. Ou você com Deus, se preferir, afinal, Ele o habita. Tudo mais são interlocutores e paisagens indispensáveis para o devido usufruto dessa escola e oficina que chamamos de vida, pelas quais aprenderá e fará todo o bem que houver dentro de você. A cada dia um pouco mais”.

Pedi para que explicasse a didática utilizada nessa escola. O homem franziu as sobrancelhas e falou: “Assim como os grandes sábios, a vida tem por método ensinar sem usar palavras. Belos discursos, retóricas de efeito e frases impactantes impressionam, mas têm as suas eficiências limitadas quanto ao quesito transformação. Ensinam, mas muitas vezes falta a força necessária para despertar no indivíduo o interesse sobre o poder da verdade e das virtudes. Muitos sabem, repetem palavras eivadas em máximas universais; poucos as conseguem usar como ferramentas evolutivas. As multidões ainda se perdem em conflitos, naufragam em mágoas, se aprisionam em sofrimentos e medos criados pelas próprias incompreensões. Permanecem menos quando poderiam ser mais. Desperdiçam a si mesmos”. Pausou por instante para se deliciar com o voo rasante de um falcão antes de prosseguir: “As experiências nos levam a viver o que as palavras apenas conseguem narrar. Somente elas, as experiências, tornam o aprendizado definitivo. Claro, tudo irá depender de como iremos elaborar cada situação vivida. Quais lentes e filtros serão usados para observar e depurar o fato; se usaremos elementos de luz ou sombras para extrair do acontecimento processado as verdades ou enganos que servirão de mapa e bússola para o trecho seguinte da viagem. Ao elaborar mal uma experiência, não sairemos do lugar, seja por estagnação, seja por movimentos circulares repetitivos; então, por exercício didático, outra situação de igual conteúdo pedagógico ocorrerá; disfarçada em dificuldade, uma nova oportunidade será fornecida na tentativa de que uma solução diferente seja encontrada. Ao insistir na utilização dos elementos de sombras, como orgulho, vaidade, ciúme, medo ou inveja, apenas para citar alguns, a experiência resultará em resultado equivocado, mantendo o viajante aprisionado aos domínios do tempo até que compreenda o poder dos elementos da luz na obtenção de soluções libertadoras. O uso das virtudes – tais como a humildade, a simplicidade, o respeito, a compaixão, a sinceridade, entre mil outras maneiras de viver e amar com sabedoria – como instrumentos processadores da experiências vividas, concede equilíbrio e força, leveza e suavidade, indispensáveis para o viajante navegar para além das tempestades formadas por mágoas e conflitos. Ao descontruir as próprias incompreensões, arcabouço dos medos e sofrimentos, as amarras existenciais se desmancham, proporcionando um inesquecível encontro com a liberdade, a felicidade e a paz. Para tanto, se faz indispensável navegar em si mesmo. Um método eficiente, responsável pela graduação dos grandes mestres”.

Eu tinha adorado a explicação. Ao notar a satisfação em meus olhos, o homem acrescentou: “O autoridade do mundo reside em leis, decretos, tropas, espadas e cavalaria. A autoridade da vida floresce da verdade sem enganos e frutifica através das virtudes aplicadas às experiências do cotidiano; um vento manso, quieto, imperceptível às multidões, desprezado por mercadores e almirantes, porém, o único capaz de mover a embarcação através das estradas do ar. Uma viagem que não levará a Veneza, Pequim ou Bagdá; porém, a única que permitirá descobrir e conquistar a si mesmo. Do contrário, não conseguirá encontrar o ponto de mutação para se libertar dos domínios do tempo. Poucos no mundo entendem”.

Indaguei qual seria esse ponto de mutação a que se referiu. O homem deu de ombros e sussurrou: “Lagartas não voam”. Deu de ombros e acrescentou: “Elas ainda não conhecem o casulo”. Em seguida, piscou o olho como quem conta um segredo, e finalizou: “Borboletas são lagartas que navegam pelo ar”.

De repente, da brisa se fez ventania. Folhas e flores dançavam à frente dos meus olhos. Dei-me conta que desenhavam uma mandala. Bastaram dois passos para atravessar o portal.

Poema Quarenta e Três

Não importa onde,

A leveza traz beleza à pobreza,

A suavidade atravessa muros de pedra.

Assim, o não-agir mostra o seu alcance e poder.

Ensinar sem palavras,

Navegar em si mesmo.

Poucos no mundo entendem.

7 comments

Isabella junho 2, 2023 at 2:12 am

Obrigada!

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Isabella junho 2, 2023 at 2:13 am

🙏

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Alessandra junho 2, 2023 at 5:29 am

Que coisa mais linda! Obrigada, fes total sentido para o meu momento.

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Alessandra junho 2, 2023 at 5:30 am

Que coisa mais linda! Obrigada, fez total sentido para o meu momento.

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Rosires Lourença junho 3, 2023 at 10:00 pm

Gratidão 🙏🙏🙏❤️🌷

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Rhodolfo junho 30, 2023 at 2:35 pm

Gratidão! 🙏🙏

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Augusto agosto 9, 2023 at 12:41 pm

Grato pela reflexão meu amigo 🙏

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