MANUSCRITOS I

A fuga do mundo.

Era um típico dia de inverno. O céu azul, completamente sem nuvens, permitia que o sol nos acariciasse a pele sobre o casaco de lã, em gostosa sensação de aconchego. O dia ainda amanhecia quando fui chamado ao portão para encaminhar um senhorzinho que desejava conversar com o Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem. Como era cedo, o monge sugeriu que a conversa fosse no refeitório ao imaginar que o visitante partira ainda no escuro para alcançar o mosteiro, na montanha, àquela hora. Como a meditação era a primeira atividade do dia, ainda em jejum, e já realizada, todos nos sentamos à enorme mesa. Quando os demais monges se retiraram para os seus afazeres, o Velho perguntou ao visitante como poderia ajudá-lo. O homem manifestou a vontade de fugir do mundo, vez que a solidão o corroía por se sentir abandonado por filhos e netos, cujas visitas eram cada vez mais raras. Tinha a forte resolução de abraçar a vida monástica, aderindo às fileiras da Ordem. Com o olhar suave e voz repleta de bondade, o monge começou a explicar: “Solidão não significa desistência, tampouco fugir do mundo lhe trará a desejada paz. É necessário entender a busca para direcionar o leme do destino”. O homem declarou que estava cansado das ingratidões da vida em sociedade, que tinha se dedicado ao trabalho e à família por toda sua existência para receber apenas esquecimento como moeda de troca. Amargurado, confessou que, se não tinha mais importância para os seus, era melhor se afastar.

“Tudo errado”, disse o velho depois de ouvir com paciência todo o rosário de lamentações. “Para começar é bom lembrar que cada qual tem seus afazeres, compromissos e interesses que tomam tempo. Todos têm uma vida pessoal para cuidar. Aceitar que não somos o centro da vida alheia é um bom início para afastar as lamentações indevidas”.

“Em seguida, é necessário entender que entre membros de um mesmo grupo familiar ou social sempre haverá alguns acenando com dívidas emocionais ancestrais. Justo com estes estão guardadas as nossas lições evolutivas; através desta via nos será oferecida as preciosas lições de amor através do exercício da paciência, tolerância, compaixão e, principalmente, do perdão”.

“Depois, é importante perceber que a solidão não significa abandono. Porém, encontro. É a oportunidade de iniciar o relacionamento mais importante da sua vida: consigo mesmo. É a sinuosa estrada para o autoconhecimento, primeiro estágio para a indispensável e posterior plenitude. É fundamental que façamos um mapa detalhado de quem realmente somos para, somente então, aparar as arestas que rasgam os relacionamentos e ferem a paz. Somente assim iluminaremos as ideias e emoções que tanto nos atrapalham, por obsoletas e nocivas. Ao contrário de como é tratada pejorativamente, a solidão é maravilhosa, se bem aproveitada. Para tanto, precisamos da quietude e do silêncio que a solidão oferece. Uma boa maneira de ficarmos frente a frente com a própria essência, identificando o sagrado que há em nós. Assim, o que é sombra se torna luz”.

O homem observava com interesse e o Velho continuou a falar: “A grande lição desse momento é o rompimento da dependência emocional em relação aos outros. É medonha, equivocada e triste a ideia de mendigar ou cobrar afeto e atenção para sustentarmos a felicidade. Um total absurdo nascido da incompreensão das próprias capacidades. Por outro lado, seria enorme crueldade a obrigação de carregar o pesado fardo da felicidade alheia. Apesar de todas as dificuldades e conflitos, o Universo oferece a cada qual as perfeitas condições para conquista da felicidade. Por si e em si”. Mirou o visitante nos olhos e confessou: “Este momento é mágico”!

“Então, é chegada a hora do passo seguinte: compartilhar com o mundo o que floresceu em seu coração. Do que adianta um belo pomar se ninguém tem acesso para se deliciar com o mel de suas frutas? É o momento de retornar e intensificar o convívio social. Somente os encontros permitem que possamos oferecer o que temos de melhor, além de mostrar as dificuldades ainda não vencidas na busca pelo aperfeiçoamento. É como semeamos e colhemos nos campos da humanidade”.

O senhorzinho baixou a cabeça, lamentou que ninguém estava interessado nele e que acreditava que, por sua idade avançada, já não tinha qualquer serventia para aqueles que o cercavam. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso e disse: “É preciso tirar a fantasia da vítima, trocar os óculos do drama. Seria bom uma reflexão sincera para que você entenda exatamente o que está entregando a sua família. Você está disposto a oferecer o seu melhor ou apenas se acomodar no desejo de que tudo e todos girem ao seu redor? Exigir ser a pessoa mais importante na vida do outro é uma das maiores causas de conflitos existentes. Flor do egoísmo, raiz do ego. Um equívoco por desnecessário”.

O homem retrucou dizendo que tinha lutado por toda uma vida para construir uma família e, agora, as pessoas pareciam ter esquecido dele. O monge pediu para que eu colocasse mais um pouco de café em sua xícara e falou: “Tenha a generosidade de aceitar que cada qual se move de acordo com os seus interesses, doa apenas na medida da sua capacidade, e enfrenta as próprias dificuldades na exata necessidade das lições, por ora, cabíveis”.

“O amor, para existir de verdade, tem de ser incondicional. Ele exige renúncia ou não é amor. Um dos alicerces da plenitude sustenta que devemos nos aprimorar para sempre entregar ao outro o que de mais valioso nos habita; em troca, aceitamos de bom grado, o que nos é oferecido, ainda que muito pouco ou mesmo nada. Entender isto é unir o mais puro amor com a mais fina sabedoria. Na viagem evolutiva aprendemos que cada qual apenas pode oferecer o que tem em sua carteira sagrada, o coração. Como exigir cem de quem só tem dez para dar? Como esperar flores de quem está soterrado em pedras? Impossível. Cada qual pensa e reage de acordo com seu estágio de consciência no Caminho”.

O senhorzinho retrucou de que estava cansado e não tinha mais forças para seguir no difícil propósito da lapidação do ser. Melhor seria se juntar aos monges na Ordem, insistiu. O Velho mirou o homem nos olhos e disse: “Sair do mundo para encontrar consigo, tudo bem; fugir do mundo para sair da vida; tudo errado. O mosteiro não é um esconderijo ou lugar para quem se abandonou. Aqui é um local de estudo e trabalho, onde todos entendem a alegria do burilamento. Buscamos a solidão para meditar e refletir, como trilha para o autoconhecimento; o trabalho comunitário como instrumento para promovermos a festa da vida, que é a troca com o outro, cada qual, parte a parte, oferecendo os seus melhores e mais sinceros sentimentos”. Com os olhos mareados disse com emoção: “Na caridade ganha mais quem dá do que quem recebe. Creia nisto”.

Deu uma pequena pausa antes de prosseguir: “No entanto e para tanto, não é necessária uma vida monástica. Cada qual é um centro individual de poder, um precioso templo e qualquer canto silencioso tem a quietude necessária para acalmar os tambores do mundo e lhe permitir ouvir a voz do silêncio que a alma sopra. Transformar em jardim o deserto do ser é a alquimia da vida. Começamos conosco, depois espalhamos a magia e as flores para o mundo”.

O homem confessou que tinha medo de não ser amado e que estava ali para chamar a atenção da família. Tinha o desejo secreto que fossem resgatá-lo no mosteiro. O Velho riu com vontade, depois acrescentou: “Imagine se em profundo respeito às suas escolhas, o que seria correto, eles apoiassem o seu ingresso na Ordem? O seu sofrimento seria incomensurável. Não raro, somos vítimas de nós mesmos”. Deu uma breve pausa e falou: “Procuramos a escuridão da caverna na ilusão de nos proteger da dor. Quando, na verdade, precisamos da luz da vida para ver as feridas que precisamos curar”.

Contrariado, o visitante lamentou não conseguir ajuda ali. Girou nos calcanhares e partiu.

O Velho franziu as sobrancelhas como dizendo que tinha feito o possível e se as sementes das suas palavras fossem boas, haveria, algum dia, de germinar. Em seguida, falou com seu jeito manso: “Ofereça sempre o seu melhor e não espere nada em troca; no dia seguinte ofereça um pouco mais e espere menos ainda” e piscou um olho como quem conta um segredo.

 

 

 

7 comments

andreanunes janeiro 24, 2016 at 12:34 am

cada vez que leio um texto seu fico tentando imaginar quem você é, que histórias são essas, se são reais, se são da sua mente, se você realmente vive em um mosteiro… só sei que é um sábio que muito me auxilia nesta vida. grata.

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Gorete Leite fevereiro 6, 2016 at 4:46 pm

Eu também fico imaginando se você é real, e eu espero sinceramente que sim!!!!! Você nem imagina como você é importante pra mim é como eu gostaria de te visitar no mosteiro e conhecer o velho❤️

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Sayra Oliveira março 26, 2016 at 8:48 am

Eu sou muito edificada com cada texto. Também tenho vontade de ir ao mosteiro e conversar com você e com o Velho. .. Onde é isso? Faz parte da igreja católica? Bom Dia!

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Miquelyna abril 27, 2016 at 9:21 pm

Faço dos comentários acima minhas palavras . Eu venho e olho se tem um texto novo, se não tem eu releio um antigo. 😉

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Roberto Pires. agosto 30, 2016 at 8:42 am

Excelente, um dos melhores que li. Pegou na veia !!! Obrigado pelos belos ensinamentos.

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edmilson santo novembro 2, 2016 at 11:33 am

Grato por doar o que há de melhor em você !!

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Jacira Garcia Goulart janeiro 15, 2020 at 12:33 am

Textos que me fazem lembrar dos livros que li de Lubsang Rampa. Nos elevam espiritualmente, nos mostram um lado da realidade para reflexão. Adoro esse tipo de leitura.

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