TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Sexagésimo quarto limiar – Navegar é preciso)

Era uma linda e pequena cidade nos Alpes. O fim da Guerra do Vietnam e a disparada do preço do petróleo estampavam as manchetes dos jornais. Um homem de corpo franzino, cabelos brancos e fisionomia serena atravessou a rua sem nenhuma pressa, se sentou em uma padaria e pediu uma xícara de chá. Ao meu lado, um casal o observava. Conversavam que ele tinha recusado o papel de líder espiritual feito por uma importante organização filosófica e religiosa. Se a verdade é o destino da viagem do autodescobrimento, aquele indivíduo não se considerava capaz de guiar ninguém por um caminho desconhecido, a partir do princípio de que cada pessoa é um mundo singular e misterioso. Havia honestidade intelectual e moral naquela ideia, embora ao avesso do que procuram as multidões. Diferente do casal que foi embora, entrei na padaria e me aproximei do homem de aspecto frágil e olhar tranquilo. Ele me sorriu quando nossos olhares se cruzaram. Sem que eu nada falasse, me convidou para o acompanhar no chá. Aceitei de imediato. Pediu à garçonete que acrescentasse uma xícara à mesa. Quando a moça se afastou, perguntei a razão dele repudiar a atraente oportunidade de possuir seguidores e se tornar um guru. O ancião ponderou: “Conhecer-se é o passo anterior e indispensável ao encontro com a verdade. Um jornada personalíssima, que ninguém pode fazer por ninguém. Não há como disponibilizar o mapa de mares nunca navegados. O indivíduo não a alcançará por intermédio de nenhuma instituição ou credo, porém, apenas através do espelho dos relacionamentos, da compreensão de cada conteúdo que transita em sua mente, da observação sem interferência de conceitos preestabelecidos e livre de julgamentos para que possa encontrar o bem e o mal, o certo e errado, sem qualquer cartilha escrita por mãos que também desconhecem o destino da viagem. A ideia da liberdade humana não se coaduna com o balizamento, a limitação ou a preordenação do pensar e do sentir. Somente a consciência servirá como guia”. Falei que o conhecimento é uma importante ferramenta ao autoconhecimento, pressuposto necessário à verdade. O homem concordou: “Sem dúvida, é de enorme importância. Contudo, serve somente como bússola ao viajante. Nada mais. Não existe mapa de lugares desconhecidos. Ainda que pese o inegável valor da leitura, os livros descrevem universos já percorridos, trazem informações sobre territórios já fotografados. Nenhum deles conseguirá dizer quem você é. Logo, nada falarão sobre a verdade. Ao menos os bons livros. Somente os impostores prometem o que não podem entregar”.

Indaguei como fazer para realizar essa busca. O ancião explicou: “É preciso paz para sorrir. É preciso liberdade para partir. A paz é um bem inexistente em um reino dominado pela incompreensão sobre os próprios sentimentos e reprimido pelos resultados prontos de experiências jamais elaboradas. Em suma, não existe paz onde há ignorância, fonte de todo sofrimento e medo. A liberdade é uma conquista interna que não se confunde com a necessidade de quaisquer permissões ou validações externas. Não me refiro a escapar das contrariedades, dificuldades e problemas, pois, estes, são fundamentais como método de crescimento. Falo de encontrar um caminho próprio na certeza de que a beleza de cada pessoa se manifesta à medida que a singularidade das suas aptidões, dons e talentos, que o faz único, desperta. Para tanto, o livre pensar, sem as amarras do condicionamentos, academicismos e modismos, além de uma profunda intimidade com os sentimentos que permeiam e transbordam o coração, são fundamentais a esse processo de descobertas, encontros e conquistas em si mesmo”. Esperou alguns instantes para eu concatenar o raciocínio e continuou: “Na ignorância sobre quem somos, alimentamos o manancial de onde brotam os medos e sofrimentos, oriundos na crença da incapacidade de lidar com reveses tão comuns à existência. O sujeito se afoga na ebulição de sentimentos e ideias que não compreende, solo fértil para as epidemias de desespero, agonia, revolta, tristeza, irritação, ansiedade e depressão”. Fez um gesto com a mão para ressaltar as palavras e disse: “É mais fácil manter o equilíbrio daquilo que está em repouso. A paz e a liberdade são como o lastro e o leme que mantém a dirigibilidade da embarcação durante as inevitáveis tempestades dos dias. Apesar da fúria do mar, quando há serenidade a bordo, a viagem segue em frente. O equilíbrio mental e emocional é essencial ao viajante. No tumulto e na desordem, até suaves brisas serão suficientes para lançar o barco ao encontro das pedras. A questão é saber como realizar essa conquista interior para que nenhuma intempérie seja capaz de interromper a viagem”.

Eu perguntei como fazer. O homem explicou: “Entenda aonde quer ir. Não é fácil nem simples como parece. Compreenda que os movimentos internos são indispensáveis para dar sentido e direção aos deslocamentos externos. Refiro-me a princípios e valores, verdade e virtude, à ética e à luz. Comece por perceber onde não quer mais ficar, aquilo que não deseja mais em si, para depois, pouco a pouco, entender quem quer se tornar e como cada movimento o aproximará ou afastará do destino traçado O conhecimento desperta a lucidez, o autoconhecimento concede intensidade e a exata aplicabilidade desta clareza conquistada no olhar. A lucidez mostra que é mais fácil resolver antes de iniciar. O cuidado para evitar a queda é mais simples e inteligente do que o esforço necessário para se levantar”. Perguntei do que ele falava. O ancião esclareceu: “Refiro-me a importância das elaborações intrínsecas como movimento anterior a cada deslocamento que faremos pelo mundo. Falo dos atos envolvidos em sensatez, coragem e responsabilidade, sem dar margem aos devaneios e inconsequências de acreditar que basta se lançar no abismo para que as asas apareçam. Não acontecerá. Há que se preparar para cada movimento, degrau a degrau, em uma escalada lenta e progressiva de crescimento, cuja direção será sempre de dentro para fora. Assim nascem as asas”. Quietou por um breve instante, como se fosse tomado por uma lembrança, e disse: “Haverá assédios de todo tipo e espécie. Sentimentos, pensamentos, convites, tentações, desejos e interesses obscuros tentarão alterar a rota e o afastar do rumo. Ao saber que os ataques acontecerão, ficará mais fácil se desviar ou defender deles, como o marinheiro que conhece as correntes marítimas e ventos contrários no oceano que navega. Assim como Ulisses colocou cera nos ouvidos para não se deixar seduzir pelo canto das sereias, causa de inúmeros naufrágios, se prepare para as incontáveis investidas que sofrerá. Seja firme em seus propósitos e valores. Sem importar em qual ponto a compreende, jamais negocie a verdade. Conheça os truques das sombras. Ninguém chega ao destino certo fazendo a travessia de maneira errada. Não desanime se algo não acontecer como esperado. Onde os tolos e apressados enxergam derrotas e se abalam com os erros, os indivíduos maduros e equilibrados encontram mestres, aprendem, se transformam e adquirem força para prosseguir. Use da verdade e das virtudes, no limite mais extremo que as compreender, como maneira de manter acesa a sua luz. Jamais esqueça que nenhuma conquista compensará o cativeiro de uma alma aprisionada na escuridão das próprias escolhas”.

Falei que precisava saber mais. Ele esclareceu: “O frágil é fácil de quebrar. O pequeno é fácil de dissolver. Digo isto porque todas as manifestações que ocorrem no intuito de nos desviar do propósito evolutivo planejado, no início são frágeis e pequenas, sem exigir maior dificuldade para serem resolvidas. No entanto, quando nos descuidamos, as negamos ou nos deixamos encantar por elas, se agigantam e se tornam autênticos vícios existenciais. Assim agem as sombras. Então, o desgaste de tempo e energia para se libertar será incomensurável. Cultive as verdades e as virtudes para que se tornem árvores robustas de raízes profundas; arranque de si hábitos perniciosos como a soberba, a ganância, o egoísmo, o desânimo, a agressividade, o vitimismo, a tristeza, o devaneio, o medo e outras manifestações afins quando ainda forem brotos pequenos e frágeis”. Fez uma pausa para esperar a garçonete servir o chá. Depois, prosseguiu no raciocínio: “Por tudo em ordem antes dos acontecimentos impede a instalação do caos. Muitas vezes, nos deparamos com situações caóticas oriundas de diversos setores da vida. Mostramo-nos surpreendidos, como se tais acontecimentos tivessem surgido sem nenhum aviso. Nenhum relacionamento termina sem enviar sinais de alerta, nenhuma empresa vai a falência de um momento a outro, não há conflito nem tristeza que ocorram sem que haja bagunça e desordem dentro da gente. Há muitas causas, os atalhos são os mais comuns. Atalhos são tentativas inúteis de ultrapassar etapas antes de estarmos pronto para o movimento seguinte. Só se retira as meias depois de descalçar os sapatos. Pular etapas é negar os fundamentos. É desprezar as sementes, os pilares e o Caminho; é menosprezar a verdade, as virtudes e a Luz. É como tentar se graduar sem frequentar a escola. Fazer sem saber; conquistar sem merecer”. Bebeu um gole de chá e disse: “Todo caos, em verdade, é previsível. Para tê-lo, basta que se tente alcançar o destino certo por intermédio da estrada errada. Quando acontece, o caos surge para destruir a mentira que insiste em se apresentar como verdade, o erro que teima em se declarar correto. Caos é como denominamos as correções e mudanças que nos negamos a entender, aceitar e realizar. Chega para destruir o que não serve nem cabe mais em nossas vidas por se mostrar contrário à evolução. Logo, é um ato de amor. Não há do que reclamar. Ao contrário, se for capaz, agradeça. Para uns o caos representa a ruína; para outros, um convite à regeneração”. Deu de ombros e sugeriu: “Entretanto, o caos somente atua quando se faz necessário. Fique atento à euforia – o entusiasmo desmedido sem as respectivas raízes internas – e ao desconforto – a voz de desagrado da alma. São sinais de que algo pede cuidado ou modificação; a vida dialoga conosco o tempo todo. Flua sem mágoas e conflitos. Mova-se virtuosamente. Isto será suficiente para manter o caos distante dos seus dias”.

Bebeu mais um gole de chá e acrescentou: “Todos querem ser grandes. Não há nada de errado nisto. O problema é que não suportam a ideia de começar pequeno. Não compreendem que a genuína grandeza é um processo de amadurecimento e crescimento. A evolução não dá saltos. Uma árvore robusta nasce de uma pequena semente e, se não tiver as raízes profundas, será derrubada por uma ventania um pouco mais severa. Uma torre de nove andares surge a partir de uma pedra. Sem os devidos alicerces não conseguirá suportar o crescimento dos andares seguintes. Uma viagem de mil léguas tem início com um passo. Ninguém chega ao destino sem enfrentar todas as etapas do processo. Ninguém se torna grande sem entender que a miudeza é indispensável ao desenvolvimento correto, seguro e proveitoso. Crescer exige amadurecimento, um movimento de equilíbrio e força oriundo da própria raiz, sem pressa nem medo. Amadurecer é apurar o gosto, aguçar o olhar e compreender a beleza de onde está, ainda que distante de onde planejou chegar. Amadurecer é se apaixonar pela jornada e fazer por merecer todo e qualquer avanço”. Mordiscou um biscoito amanteigado e lembrou: “Não à toa, sem humildade e simplicidade o viajante não consegue sair do lugar”.

Falei que tinha entendido, mas sentia necessidade de ele se mostrar mais objetivo. O homem sorriu e disse: “Quem age à espera de um resultado, fracassa”. Questionei se todos estávamos fadados ao insucesso. Ele explicou: “Não é esse o sentido da frase. A questão reside na intenção do movimento. Se o indivíduo age no intuito de realizar o bem ou oferecer o melhor que há em si, a conquista se realiza sem nenhuma dependência do resultado aparente. A ação se completa nela mesma; o resultado é instantâneo, embora nem sempre visível aos olhos das multidões desatentas. O verdadeiro resultado está oculto na bagagem, e não exposto na vitrine”. Interrompi para dizer que não tinha entendido. Ele explicou: “O que a maioria das pessoas entende como vitória são os resultados aparentes de ganho e sucesso, como fortuna, fama ou quando fazem valer os seus interesses e desejos sobre alguém. Muitas vezes sem questionar os meios utilizados para atingir os fins. Se os meios forem obscuros, os fins nunca serão luminosos. Não raro, o resultado aparente sempre depende de circunstâncias alheias ao mérito da pessoa. Então, esse resultado não serve como parâmetro de aferição de vitória. De outra face, o resultado de profundidade surge e se completa na ação virtuosa. Integralmente. O amor e a ética serão sempre a balança e a régua exatas do sucesso pessoal, independentemente de haver reconhecimento público ou ganhos materiais. Quem vive à espera dos resultados aparentes costuma desperdiçar o melhor da vida”.

Ele prosseguiu com a explicação: “Do mesmo modo, quem tem, perde”. Esperou que eu experimentasse o chá e disse: “As pessoas têm enorme apego aos bens materiais, pois os utilizam para medir as vitórias ou como garantia às incertezas futuras. No entanto, a instabilidade da existência, os seus altos e baixos, em todos os aspectos da vida, fazem parte do movimento planetário de deslocamento, aprendizado e transformação de todas as pessoas. Por mais cuidado que se tenha em preservar esses bens, e nada há de errado nisto se feito com sensatez e sem resquício de avareza e egoísmo, nenhuma garantia se mostrará absoluta. Tanto a possibilidade do caos como a certeza da morte colocam pontos finais aos bens materiais. Não se leva às Terras Altas títulos de propriedade, nobiliárquicos, contas bancárias ou privilégios mundanos de qualquer espécie. Tampouco poderemos preservar a juventude do corpo na estrada limitada pelo tempo. Na bagagem do viajante apenas cabe o bem e o mal praticados. Nada mais. Enfim, o que tenho, troca de mãos ou permanece no mundo. Apenas o que sou seguirá comigo. Entender as legítimas vitórias consiste em compreender o que se coloca e retira da bagagem a cada gesto praticado. Nada mais. Esta é a segurança e o passaporte do viajante. Tudo mais é material escolar”.

Deu de ombros e concluiu: “O sábio não age em função dos resultados aparentes, mas no aperfeiçoamento e valor das suas ações. Tem consciência que, quando bem aproveitados, os erros são professores por excelência. Assim não fracassa jamais”. Mordeu a outra metade do biscoito e acrescentou: “Como não tem apego aos bens materiais, tampouco os utiliza como elementos de garantia absoluta nem como troféus das suas conquistas; então, jamais os perde. Ele sabe que nada disso lhe pertence. Tem consciência de que os recebeu como ferramentas para a propagação do bem e ao impulso do próprio aprendizado. Fazer bom uso das ferramentas disponibilizadas agrega valor e conteúdo inestimáveis à bagagem”.

Pedi para ele expandir aquela ideia. O ancião pontuou: “A vida se compõe de vários ciclos evolutivos dentro de um ciclo maior, como etapas de crescimento, integralidade e plenitude. Cada ciclo se divide em quatro etapas. Aprendemos para afastar a ignorância, ou parte dela, origem de todas as agonias; transmutamos estas lições para que se tornem instrumentos do bem viver; compartilhamos no mundo as conquistas internas alcançadas, como o jardineiro que semeia o solo para quem vem atrás como agradecimento pelo fruto que o alimentou; e seguimos em frente em busca do próximo ciclo evolutivo. Fechar um ciclo não exime o viajante do compromisso de buscar novos e desconhecidos desafios existenciais. Assim é comigo, contigo e com todos. Como disse o alquimista lisboeta, navegar é preciso, na necessidade de se aventurar por mares intrínsecos desconhecidos. Ninguém consegue isto sem se permitir a elaboração de constantes e ininterruptas experiências vividas no mundo. Compreender as fases do processo é fundamental para que não fiquemos perdidos por acreditar ter chegado em um grande continente quando, em verdade, apenas aportamos em uma pequena ilha. Este equívoco faz com que o povo falhe perto do fim, próximoao fechamento de um ciclo. Ora porque se sente confiante em excesso, ora pela ilusão de ter chegado em um lugar que nunca colocou os pés. No mais, a viagem nunca termina. Todo porto é um destino temporário, como escala indispensável para abastecimento, reparos e descansos. Acreditar que as conquistas de determinados objetivos determinam o final da travessia é um erro comum. O fim de um trecho será sempre o início de outro. A jornada intrínseca é progressiva e infinita. O fim está presente no início, o início se faz fundamental ao fim. Então, se tratar o fim como o início não falhará. A estagnação leva à corrosão da vida; é o avesso do movimento”.

Brinquei ao dizer que é muito difícil navegar pelos mares da vida. Ele arqueou os lábios em singelo sorriso e disse: “De volta ao verso do poema do alquimista lisboeta, navegar é preciso. Agora, não no sentido necessidade, mas quanto à precisão. Entender os fundamentos corretos permite os movimentos adequados para superar os mares bravios da existência quando os ventos mudam de direção sem qualquer aviso aparente”. Questionei se estava sugerindo o uso de um mapa, o que contrariava a ideia inicial daquela conversa. O homem negou: “Já lhe disse, não existe fotografia de territórios desconhecidos. Colombo não possuía qualquer mapa ao se aventurar pelo Atlântico, o Mar Tenebroso, como se referiam àquelas águas por causa dos inúmeros e famosos naufrágios. Porém, o corajoso genovês se valeu de um precioso e preciso instrumento criado pelos povos orientais, a bússola, que o permitia saber se navegava para Leste ou Oeste, de escolher se direcionava as caravelas para o Norte ou o Sul. Então, conseguiu a façanha considerada impossível pelas multidões afeitas e limitadas por condicionamentos, regras e medos. Assim são os territórios da mente e do coração de cada pessoa. Não existem mapas confiáveis e honestos. Porém, existe uma valiosa bússola usadas por sábios desde a Antiguidade para navegar por mares desconhecidos, ora tranquilos, ora tempestuosos, dentro e fora da gente. A consciência clara e serena”. Falei que ainda me restavam dúvidas sobre a aplicabilidade daquela ideia na prática. O ancião esclareceu: “O sábio deseja não ter desejo. Não me refiro a dias de apatia sem gosto e sabor. Há desejos que elevam e constroem, existem os que derrubam e destroem. Desejar não ter desejo é um conceito milenar cujo sentido alerta para o cuidado de não se deixar dominar por nenhum desejo. Qualquer que seja. O desejo deve ser o motor, jamais o condutor. Do contrário, desparecerá a sensatez, os limites e o respeito. Um convite aos conflitos, à desordem e ao caos. Situações ruins podem nascer de bons desejos fora de controle. Na esteira dessa ideia, o sábio não dá valor aos objetos raros ou caros se não tiverem uma utilidade produtiva. Valor é diferente de preço. Um remo de madeira, embora mais barato, tem valor superior a uma coroa de rubis para o barqueiro que precisa alcançar a outra margem do rio. Requinte e luxo motivam a cobiça e a vaidade, sem nenhuma utilidade à travessia”.

Observou-me por instantes para saber se eu me mantinha interessado em suas palavras e continuou: “Os livros são mananciais de conhecimento. Sabedoria é o conhecimento em movimento. Eu não sou o que digo. Ninguém é. Conhecimento sem ação é mera erudição. Nossas atitudes nos descrevem e escrevem os próximos acontecimentos que irão nos permear os dias. Tiram e colocam algo na bagagem. O inestimável valor do conhecimento precisa dos relacionamentos para compreender camadas para mais profundas de um mesmo sentimento. A ideia inicial se rompe por não caber mais em si, numa consciência que se expande para mostrar algo que sempre esteve ali, mas nunca foi olhado daquela maneira ou ângulo. Ou sequer foi vista. O sábio aprende quando desaprende ao avançar com o conhecimento que o levou até ali. O inusitado serve de via para desfazer o padrão e, então, ir além. O conhecimento é o cânone; na sabedoria reside a diferença e a margem. O conhecimento é terra firme limitada pelo mar; a sabedoria precisa da travessia”.

A bússola continha alguns outros pontos cardeais: “A navegação nos mares intrínsecos são livres de fronteiras; nos oceanos do mundo precisamos de limites. Os conceitos estoicos são de extrema valia para não nos perdermos na imensidão dos desejos desvairados que nada acrescentam à bagagem. Os sábios evitam os excessos que desviam a rota e os faz perder o rumo. Nada bastará para aplacar a insensatez de buscar nas ruas aquilo que somente existe no coração. Aquele que ama o dinheiro e as coisas nunca se sentirá saciado. Ter o suficiente é bastante à felicidade da alma que, em verdade, busca por iluminação, não por brilho e ostentação”. Esvaziou a xícara de chá e finalizou: “Os tolos se perdem na tentativa de convencer as pessoas sobre as suas verdades, desejos e interesses. Um desejo inconsciente e inconsistente por domínio e controle sobre outras pessoas. Possuem a inconfessável dificuldade em lidar com as contrariedades. Não entendem a causa de tantos conflitos porque não compreendem que navegam sem bússola. Seguem na direção de mares bravios e se surpreendem com as águas revoltas que encontram. Culpam os ventos pelos naufrágios. Os sábios se colocam com firmeza e doçura, porém, nada impõem aos outros. Oferecem o melhor que possuem e nada exigem em troca. Amor e sabedoria não são mercadorias. São bagagem. Assim, ninguém os impede de prosseguir. Não há como”.

Existia um força incomensurável naquele homem de corpo franzino. Não havia músculos hipertrofiados, empáfia intimidadora ou rosto com beleza estonteante. Ele possuía a autoridade de alguém livre e em paz. Um poder encantador e sublime. Antes que eu pudesse lhe dizer isto, o ancião rasgou o recipiente que continha o chá colocado em infusão e o espalhou no prato. Disse que algumas mulheres na Índia, onde havia nascido, usavam a borra do chá como oráculo. Falei que mais parecia uma mandala. Ele apenas sorriu em resposta. Entendi o recado, agradeci a conversa e parti.   

Poema Sessenta e Quatro

É fácil manter o que está em repouso,

É fácil resolver antes de iniciar,

O frágil é fácil de quebrar,

O pequeno é frágil de dissolver.

Por tudo em ordem antes dos acontecimentos

Impede a instalação do caos.

Uma árvore robusta nasce de uma minúscula semente,

Uma torre de nove andares surge a partir de uma pedra,

Uma viagem de mil léguas tem início com um passo.

Quem age, fracassa.

Quem tem, perde.

O sábio não age, assim não fracassa;

Como não tem, jamais perde.

O povo falha perto do fim.

Se tratar o fim como o início,

Nunca falhará.

O sábio deseja não ter desejos,

Não dá valor aos objetos raros,

Aprende quando desaprende,

Evita os excessos,

Nada impõe,

Ninguém o impede.

1 comment

HEITOR CANDIDO DE SOUZA JUNIOR maio 5, 2024 at 2:33 pm

Mais um texto simples, claro e com muito conteúdo.

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