MANUSCRITOS II

O ser inteiro

Tinha feito calor o dia inteiro. A brisa que descia das montanhas tornava o final da tarde bastante agradável no mosteiro. Encontrei o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sentado em uma confortável poltrona situada em uma das varandas que permite uma belíssima vista dos vales que se avizinham abaixo de nossa sede. Pedi para sentar ao seu lado e ele concordou com um movimento de cabeça. Por me conhecer há algum tempo, foi direto ao ponto: “O que lhe aflige”? Expliquei que muitas vezes, mesmo na certeza de tomar a decisão correta, algum desconforto se instalava em mim, o que era uma contradição. Ele pediu para que eu fosse mais específico e acrescentou: “Vamos ao caso concreto. Assim, ao entender a parte poderemos ter uma melhor ideia do todo”.

Expliquei que um grande amigo tinha me pedido dinheiro emprestado. Era um valor considerável. Embora eu tivesse a quantia, que estava guardada para outros fins, neguei o empréstimo. Isto furtara a minha paz nos últimos dias. Ponderei que estranhava os meus próprios sentimentos, uma vez que a convicção da minha escolha deveria pacificar o meu coração. Com os olhos vagando no horizonte, o Velho falou: “O espírito, a verdadeira identidade eterna de todos nós, em sua infância, nosso atual estágio, tem o ego distante da alma como se estivéssemos divididos em dois. Por um lado, o ego se empenha pelas conquistas materiais e os prazeres sensoriais, os aplausos e o brilho social. Pelo outro, a alma se alegra com as vitórias dos sentimentos sobre os instintos, com a superação das dificuldades, com a transmutação das próprias sombras em luz. O ego quer o reconhecimento do mundo; a alma quer que o melhor de si brote para o mundo. O ego está ligado às paixões; a alma ao amor. O ego está no âmbito do eu; a alma pensa em nós. Na viagem do aperfeiçoamento o Caminho nos impõe escolhas. Com o ser dividido em dois as decisões criam conflitos internos. Estes conflitos geram desequilíbrio em todos os níveis”. Deu uma pausa antes de acrescentar: “Temos que alinhar o ego à alma, no sentido de que os desejos daquele estejam em harmonia com as buscas desta.  Trabalhar o ‘eu’ sem esquecer o ‘nós’, sendo que a recíproca também se aplica. Ou seja, cuidar do mundo sem esquecer de si. São partes da mesma arte. Assim o ser se torna uno, se liberta das angústias mundanas, conhece a plenitude e a paz”.

Perguntei se o ego era inimigo da alma. O monge negou: “O ego é importantíssimo. Ele apresenta os exercícios para o fortalecimento da alma; são as exatas etapas de superação do ser. Precisamos do interesse do ego pelo mundano para que ali o sagrado que habita na alma se manifeste, nunca para suprimir um pelo outro, mas para harmonizar ambos. Para o bom andarilho todas as dificuldades materiais acabam por fortalecer as musculaturas emocional, mental e espiritual de que necessita para seguir em frente. As dúvidas, os conflitos, os problemas e as angústias acabam sendo importantes para desenterrar a percepção sobre si mesmo ainda adormecida no fundo do ser. Ao entender a si próprio o indivíduo ganha a sabedoria do mundo, potencializa o seu dom e descobre a magia das virtudes. O ego é muito suscetível às sombras da inveja, do orgulho, da mágoa, da ganância e do ciúme. São terríveis prisões sem grades. Somente ao reconhecer as sombras poderemos mais adiante transmutá-las em luz na jornada de libertação do ser. Assim a vida se mostra perfeita graças às suas imperfeições. Basta ter bons olhos para ver”.

Eu quis saber se toda vez que pensasse em mim em detrimento do outro estaria sendo egoísta. O Velho franziu as sobrancelhas e falou sério: “Claro que não. Cada qual é a fonte da sua própria vida e deve cuidar para que ela nunca seque. Saciar a sede alheia com a água que brota em si nos torna sagrados. Mas pensar que é obrigação do outro nos permitir beber em sua fonte ou vice-versa é a raiz e o alimento do egoísmo”. Virou o rosto para mim e perguntou: “Qual lição é o eixo do Sermão da Montanha”? Respondi que é ‘amar o próximo como a si mesmo’. O monge moveu as mãos como se as palavras não fossem suficientes para me explicar o óbvio e disse: “Então? Se você não ama a si mesmo não será capaz de amar ninguém”. Fez um breve silêncio para a minha reflexão e questionou de maneira retórica: “Como será possível alimentar o outro se não trazemos pão na bagagem? Como dar o que não se possui? Temos que colocar a alma para ensinar ao ego a semear os campos do mundo para abastecer o celeiro do coração; colher o trigo, transformar em pão; repartir o pão com toda a gente”. Sem esperar pela minha resposta, continuou: “Só conseguimos compartilhar o que temos. E o que temos, de verdade, é tão somente aquilo que já conseguimos compartilhar. Este é o único e verdadeiro patrimônio”. Franziu as sobrancelhas e falou: “No entanto, a real necessidade do outro, algumas vezes, pode não ser exatamente o que ele pede. Por isto existe o sim e há o não”.

Falei que a necessidade do meu amigo era o que ele tinha me pedido e eu tinha negado. O monge sugeriu: “Ofereça a outra face”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “Se coloque no lugar dele”. Pensei por alguns instantes e respondi envergonhado que errei em não atender ao pedido de socorro de uma pessoa querida.

“Talvez sim, talvez não”, o Velho me surpreendeu.

Aquelas palavras me trouxeram alguma irritação e falei que ele estava complicando. O monge deu uma gostosa gargalhada e seguiu tranquilo em sua didática: “Enfrentar o problema com os olhos do outro não significa entregar exatamente o que ele deseja. Há que se ter sensibilidade e sabedoria, virtudes poderosas. Elas te darão a exata medida se o outro, naquele momento, precisa ser carregado nas costas ou estimulado a andar por si mesmo. Existe hora de fazer uma coisa e há vezes de realizar a outra”.

“A bondade é uma virtude fundamental, pois sem ela não conseguimos alcançar a felicidade. Mas como qualquer virtude deixa de ser virtuosa ao andar desacompanhada, a bondade precisa vir atrelada a outra, bem mais complexa de compreensão, a justiça”. Olhou no fundo dos meus olhos e disse: “Ser justo é entregar a cada qual o que é merecido. Nem mais nem menos. Mas para tanto é preciso amor, muito amor, um amor incomensurável dentro de si. Um amor que poucos já têm ou conseguem entender”.

“Ser justo consigo é indispensável para ser justo com o outro. Isto não é fácil, pois sempre temos interesses, legítimos ou não, em jogo. Muitas vezes será necessário esquecer o mundo para cuidar do ‘eu’ e neste momento o ego se faz importante. É o tempo da semeadura e do cultivo para que a colheita se traduza em frutos doces ou não teremos nada de bom a oferecer. Noutras, será indispensável entregar uma parte de si ao mundo para construir o ‘nós’, quando a alma passa a ter um papel fundamental. Não estranhe se este pedaço que você ofereceu se tornar a melhor parte que existirá em você. Afinal, o poder se amplia na medida da sua capacidade de alimentar a humanidade em suas ceias espirituais”.

“É a força do ego que nos move às conquistas. Isto tem valor. Então descobrimos que o ego pode ser um vilão cruel ou um valioso aliado. O ego é um guerreiro poderoso, no entanto, quais sentimentos têm imperado em suas decisões? Quando as virtudes da alma passam a orientar os movimentos do ego as escolhas se unificam, as angústias se pacificam, as batalhas se tornam sagradas e as vitórias se consagram em pura luz”.

“Assim, pouco a pouco, aprendemos a alinhar o ego à alma para que trabalhem em harmonia e com os mesmos ideais. A unidade do ser é indispensável para a plenitude e a paz”.

Confessei que me arrependia de, no passado, ter ignorado mãos que me solicitavam ajuda. Não queria incorrer no mesmo erro. O monge me mostrou a virtude de um olhar generoso: “Você não deve sentir culpa por não ter atendido aos pedidos. Aceite que fez o seu melhor dentro do nível de consciência e capacidade amorosa que possuía na época. O importante é ter responsabilidade com a evolução. Para tanto, as transformações íntimas são essenciais. Ontem eu era aquele; hoje sou este. Lembre que as melhores histórias são as de superação. No mais, não se preocupe, o Caminho sempre oferecerá uma nova oportunidade para que você corrija a rota, faça diferente e melhor. Depois mais e mais, em infinitas possibilidades de aperfeiçoamento. Tente aproveitar cada uma delas, embora aceite que é normal que algumas sejam desperdiçadas. As oportunidades sempre tornarão a surgir, embora em graus distintos, de acordo com a necessidade de aprendizado do andarilho, tanto quando agimos errado ou como quando acertamos nas escolhas. ‘Sempre seremos levados a fazer diferente e melhor’. Isto é um mantra e uma prece”.

“A expansão do universo é constante e infinita. Como somos todos parte dele e ele está contido em nós, nossas chances vão além da imaginação. O conhecimento do todo através da parte, que somos, possibilita o entendimento de que nunca seremos abandonados em nosso processo evolutivo. Pois, cada um de nós, como parte, é indispensável para o crescimento do todo. Por sua vez, para avançar individualmente temos o inegável compromisso com a obra, que se apresenta, neste estágio de existência, através das pessoas próximas, com as dificuldades e problemas que elas nos oferecem. Aceite-as como um presente ou não haverá progresso. O todo e a parte precisam evoluir ou, por lógica, a expansão restará incompleta”.

“O Caminho é solitário e solidário. Independente e acompanhado. Em absoluta sincronia”.

“Somos ego e alma; a parte e o todo. Este é o poder, a grandeza e a beleza da unificação do ser consigo mesmo e com a mais longínqua das estrelas”. Tornou a olhar para as montanhas que nos abraçavam, aquietou o coração e a mente por segundos, para em seguida finalizar com uma pergunta: “Yoskhaz, se você traz toda a força do universo em si, já imaginou do que é capaz”?

 

 

 

 

10 comments

GUSTAVO HENRIQUE SOARES RAMOS dezembro 22, 2016 at 10:25 pm

Obrigado.

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Koishima dezembro 23, 2016 at 7:36 am

Bom dia meu caro amigo..O universo segue em constante sintonia, pois nesses dias eu estava mergulhado em minha mente, pensando no exato problema.. Um amigo me pedindo ombro amigo e eu nesse momento não estou podendo me encher de problemas tambem, eu não sei, ele é uma otima pessoa só que eu sinto algo estranho vindo dele e não consigo ficar por perto.. Quando o encontro nos lugares, é normal, mas quando é algo mais a sós, fica meio dificil.. Eu estava me sentindo pessimo por estar me sentindo assim e não entender, não poder ajuda-lo nesse momento que tambem sinto que é muito dificil pra ele.. Talvez agora, eu esteja esgoista, pra tentar me reestabilizar.. Um ano bem pesado, com energias bem densas e isso me fez crescer demais, porem um pouco abalado.. Agradeço pelas palavras meu irmão, é como se fosse uma bolha de oxigenio nesse oceano da vida! LUZ!

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Claudia Pires dezembro 24, 2016 at 5:58 pm

Li seu texto e ajudou- me muito . Obgdo sempre. Vc é demais!!!!!

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Marisa Oliveira dezembro 25, 2016 at 1:28 pm

Sempre trazendo a reflexão com base em possibilidades e escolhas! Muito bom, cada texto é um presente a ser apreciado e internalizado!

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Maria Risonete dezembro 27, 2016 at 8:51 pm

Sempre grata pelos seus textos que levam a profundas reflexões!

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Vanessa Lima dezembro 28, 2016 at 1:02 am

Lindo texto. Nos inspira a pensar sobre como está a nossa vida e como a almejamos no futuro… Amei, como sempre! Grata. ????

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Jane dezembro 31, 2016 at 11:17 am

Feliz!!!

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Christina Mariz de Lyra Caravello janeiro 6, 2017 at 10:24 pm

“A vida é igual a um moinho. Ora as pás estão em cima, ora em baixo”. O quadro bordado, mostrava um moinho.E os dizeres. Nenhuma obra de arte. Apenas um lembrete. Necessário. Todos os dias , quando se sentava em seu escritório, olhava o quadro, na parede em frente à sua mesa.

Havia sido muito prejudicado no passado. Era, vamos assim dizer, o primo pobre da família. Não porque passasse necessidades, não porque não tivesse onde morar . Mas , muitas vezes era lembrado de que, o que tinha, só tinha por favor, não por direito. Só tinha, porque não ficava bem para a família rica e poderosa ter alguém destoando completamente da imagem de riqueza e de sucesso de seus outros membros.

Ele tinha seus princípios rígidos e ensinava seus filhos a aproveitarem as boas oportunidades para estudarem e conseguirem seus objetivos na vida
sempre trilhando o caminho da honestidade e da gratidão.

Mas as pás do moinho nunca param. Com o tempo, a maneira como os membros da família haviam conseguido tanta riqueza foi descoberta por denúncia de um ex empregado e todo aquele castelo de cartas falsas foi desmoronando até terem que vender seus imóveis, terem que usar todo seu dinheiro com advogados, perderem suas empresas .

E a situação inverteu-se. Tanto ele como seus filhos eram profissionais brilhantes, e foram conseguindo, aos poucos, se estabelecer em suas profissões com sucesso e adquirir suas casas próprias, viajar, fazer cursos no exterior. Eram ricos, por meio do trabalho duro e do merecimento profissional.

E quando os parentes bateram às suas portas, cada qual dentro de suas possibilidades, foi ajudando ou com dinheiro, ou pagando algum Curso, ou pagando uma dívida, ou dando oportunidade de trabalho. Eram pessoas que haviam sentido no passado a dor da discriminação, mas que agradeciam a forma como haviam sido educados, agradeciam as oportunidades que, generosamente, a vida tinha ofertado e que eles tinham sabido aproveitar e, ajudando os parentes, estavam, de alguma forma retribuindo ao Universo.

“A expansão do universo é constante e infinita. Como somos todos parte dele e ele está contido em nós, nossas chances vão além da imaginação. O conhecimento do todo através da parte, que somos, possibilita o entendimento de que nunca seremos abandonados em nosso processo evolutivo.”
“O Caminho é solitário e solidário. Independente e acompanhado. Em absoluta sincronia”.

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Elizabete Oliveira fevereiro 4, 2017 at 4:59 pm

Que maravilha essa batalha entre ego e alma, um despertar da consciência em sua mais prefeita plenitude. É uma luta constante entre Divino e Profano, mas que se torna necessário para o despertar da evolução.

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wanderson dezembro 17, 2023 at 12:21 pm

Obrigado!

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