A travessia se aproximava do fim. À medida que os dias se passavam eu me sentia mais à vontade no deserto. Eu o entendia, ele me acolhia. De um lado, o desejo pela chegada; de outro, uma saudade que já se anunciava. Um relacionamento de início tormentoso, mas que, aos poucos, se tornava apaixonante, como tudo o que é valioso, mas que causa estranhamento até o momento do exato entendimento. Não à toa a travessia se alongara por quarenta dias. Era preciso haver tempo para que valores e conceitos arraigados em mim, já sem nenhuma serventia, pudessem ficar pelas areias. Aos poucos, trocados por outros, mais adequados à pessoa que eu me transformava, impossível sem a ajuda do deserto. Mesmo que o sábio dervixe se recusasse a me receber a travessia já teria valido a pena. Ainda era madrugada quando despertei. As noites no deserto são encantadoras. Um manto de estrelas se estende por todo céu. De tão brilhantes temos a maravilhosa sensação de que ao subir nas dunas tocaremos nas estrelas mais próximas. Sentei na areia e peguei algumas tâmaras secas no alforje. Planejava meditar e rezar até a hora de a caravana acordar. Tomaria algumas canecas de café e iria para segunda aula de falcoaria com o caravaneiro. Eu estava bastante animado. Foi quando percebi que a Ingrid, a bela astrônoma nórdica de cabelos ruivos, estava ao longe com um dos seus telescópios montados sob o tripé observando alguma constelação. Ela parecia alegre ao dar explicações ao Paolo, o bonito namorado italiano que conhecera na caravana. Formavam um belo e interessante casal. Embora o ciúme inicial que eu sentira tivesse ficado para trás, confesso que tornei a pensar que poderia ser eu a estar ouvindo as explicações sobre a Via Láctea. Dominei a emoção selvagem e a pacifiquei em mim. Fiquei bem; me senti leve. Eles me viram e acenaram para eu me aproximar.
Fui recebido com os melhores sorrisos. Eles estavam felizes. Ingrid contou que a posição era ótima para avistar Órion, uma constelação típica do equador celeste. Pude ver com enorme clareza Rígel e Betelgeuse, estrelas gigantes das cores azul e vermelha, respectivamente, que junto com as estrelas Bellatrix e Saiph compõem o quadrilátero principal. Era impossível não ficar maravilhado. Ingrid disse que algumas constelações eram austrais, outras boreais, acessíveis apenas dos hemisférios sul ou norte. Brincou dizendo que por isto os telescópios faziam parte da bagagem de todo astrônomo: “Não é mania, é necessidade.” Ela tornou a falar algo que já tinha me chamado atenção antes: “As constelações são criações humanas. Não passam de ilusões de ótica. As mesmas estrelas avistadas de diferentes pontos do planeta formam outros conjuntos.” Entre diversas lições, as estrelas nos ensinavam a ver, a separar a ilusão da realidade. Conversamos mais um pouco e a aproximação da manhã encerrou as observações. A caravana acordava. Agradeci os momentos agradáveis e me despedi. Eu estava sedento por uma caneca de café.
Ainda bebia a primeira caneca de café quando avistei o caravaneiro se afastar com o falcão para o treinamento matinal. Fui atrás. Ele me entregou uma grossa luva de couro. Disse que aquela era minha. A coloquei em meu braço esquerdo. Conforme tinha aprendido na aula do dia anterior, me aproximei da ave, disse em pensamento para que ela visse além dos olhos para encontrar o inimaginável, retirei a toca sobre a sua cabeça e a impulsionei com o movimento do braço. O falcão alçou voo. Ficou alguns minutos planando em círculos em grande altitude. Enquanto aguardávamos, comentei o fato de as constelações não passarem de meras ilusões, segundo a Ingrid me ensinara. Ele disse: “Há os olhos de ver o mundo; existe o olho de ver a vida.” Eu pedi para ele falar mais sobre o assunto. O caravaneiro explicou: “Os iniciados nas tradições orientais, desde sempre, alertam quanto à terceira-visão. Como se referia o mestre galileu: ‘Quando o seu olho é simples todo o universo é luz’.”
Falei que conhecia o ensinamento do Sermão da Montanha, texto muito utilizado na irmandade esotérica da qual eu era membro. Muito embora, observei, as traduções que eu havia lido falavam em “se os seus olhos forem bons todo o seu corpo resplandecerá em luz”, com algumas insignificantes diferenças a depender do tradutor e da editora. Pedi para ele aprofundar o seu entendimento. O caravaneiro foi humilde: “Sei pouco.” Fez uma pausa, olhou para o falcão no céu azul e disse: “Buda denominava de samadhia conquista desse olhar despertado no interior do próprio ser. É um estado de êxtase, como a sensação permitida a um cego diante da visão desconhecida. É a saída da escuridão da caverna no encontro com o sol na famosa alegoria narrada por Platão, o filósofo grego.”
Perguntei se ele achava possível alcançar essa visão extraordinária. O caravaneiro me lembrou: “No treinamento de ontem, através da linguagem da vida, o falcão conseguiu ver a caça enterrada na areia, invisível aos olhos do mundo”. Considerei a possibilidade do apurado instinto predador de uma ave de rapina. Lembrei a ele que animais não têm intuição nem consciência. O caravaneiro balançou a cabeça em concordância, porém não disse mais qualquer palavra. O falcão se alongou em sua busca e quando retornou o seu voo tinha se mostrado infrutífero. O caravaneiro me alertou que tínhamos que arrumar as nossas coisas. A travessia não tardaria a começar naquele dia.
Alinhei ao lado de uma mulher alegre e falante. Assim como eu, Beatriz era latino-americana. Ela também seguia rumo ao oásis para conhecer o sábio dervixe. Engrenamos uma animada conversa sobre espiritualidade e mística. Beatriz se declarou estudiosa em magia. Acreditava que o dervixe teria muitos conhecimentos para transmitir a ela. Confessou que aguardava o encontro com ansiedade. A Beatriz quis saber o que eu esperava da conversa com o sábio. Confessei que os meus interesses se modificaram no decorrer da travessia. Eu já não me reconhecia o mesmo da partida. Ela disse que eu não poderia ser tão volúvel e deveria ficar mais atento à minha essência. Ponderei que talvez a essência tenha permanecido imutável, em verdade, apenas mais desnudada. Isto tornava diferente o mundo que eu percebia à minha volta. Falei que naquele momento eu estava intrigado com as possibilidades permitidas pela terceira-visão. Beatriz sorriu e me revelou que era mais fácil do que eu acreditava. Falou que a magia tinha a chave daquele acesso. Contou que povos ancestrais das Américas usavam a mescalina, um fungo extraído de uma espécie de cactos, o peyote, para ativar o terceiro olho, localizado etereamente no centro da testa, entre as sobrancelhas.
Falei que tinha tomado conhecimento dessa prática através da leitura dos livros de Castanheda, além das experiências narradas por algumas pessoas próximas. Tão e somente. Beatriz contou que trazia alguma quantidade de mescalina em seu alforje e, se eu estivesse disposto, naquela noite ela me iniciaria à terceira-visão. Não neguei toda a minha dúvida. Não apenas quanto à eficácia, mas também à insegurança em vivenciar tal experiência. Eu soube que algumas histórias não tiveram finais felizes, com os experimentadores marcados por traumas. Beatriz explicou que cada um tem tanto o céu quanto o inferno dentro de si. Eu concordei, acrescentando que eu não tinha nenhuma dúvida quanto a isto; luz ou trevas será sempre uma questão pessoal. Beatriz disse que tudo dependeria de quem conduzisse a experiência; o facilitador, como ela designou. Falou, ainda, que era uma prática conhecida por ela desde a adolescência e que, portanto, poderia me conduzir a um universo inimaginável. Claro, se eu assim a permitisse.
Não respondi. Emendei uma pergunta em outras até para evitar qualquer compromisso. Todavia, ela se mostrou bastante animada em me mostrar os seus conhecimentos. Mais uma vez a caravana não fez a habitual parada no meio do dia para um breve descanso e uma refeição ligeira. O caravaneiro se mostrava determinado a cumprir o prazo dos quarenta dias de travessia. Ao final da tarde, quando veio a ordem para cessar a marcha e montarmos o acampamento para a noite, eu estava cansado e com fome. Beatriz me orientou a não comer nada, pois eu poderia vomitar. Disse, também, que o cansaço logo passaria e eu me sentiria revigorado assim que experimentasse o peyote. Esclareceu que eu viveria uma enorme sensação de introspecção e as cores se tornariam mais brilhantes. Também seria tomado por incrível sinestesia. Eu quis saber o que significava. Beatriz explicou que se trata de uma incrível experiência de inversão e mistura dos sentidos sensoriais, como sentir o cheiro de uma cor ou ouvir o som de um gosto. As portas da percepção se abririam para mim; o tempo e a realidade se revelariam em inacreditáveis dimensões.
Eu não disse palavra. De um lado, tinha a Beatriz com um discurso empolgante e se mostrando segura em suas promessas. De outro, uma voz silenciosa fortalecia em mim a ideia de recusar o convite. Beatriz disse para eu a esperar em um ponto distante da caravana enquanto ela pegava no alforje a mescalina e os demais apetrechos ritualísticos. Afastei-me e me permiti ouvir melhor o silêncio dessa voz interna que me orientava. Aos poucos a convicção se sedimentou em meu âmago. Quando a Beatriz retornou, eu não tinha qualquer dúvida. Agradeci a oportunidade, mas declinei a oferta.
Ela era uma pessoa educada e culta. Não se mostrou zangada, apenas se revelou decepcionada com a minha recusa. Deu a entender que eu era um fraco. Falou que eu não deveria deixar que o medo me conduzisse pelo Caminho. Acrescentou que o medo faz prevalecer o poder das sombras sobre a luz.
Beatriz se despediu e saiu. Afastei-me um pouco mais da caravana. As noites do deserto são sempre lindas e iluminadas pelas infinitas estrelas. Sozinho, andei até me deparar com uma pequena duna, do tamanho de uma casa. Sentada sobre ela, como se tivéssemos um encontro marcado, estava a bela mulher com os olhos da cor de lápis-lazúli. Como ela não fez qualquer objeção, subi a duna e me sentei ao seu lado. Contei o ocorrido. Embora não estivesse me sentindo mal, pois estava firme quanto a escolha feita, falei que ninguém gosta da acusação de covardia. A mulher ponderou: “Este é um olhar. O olhar pelo qual a Beatriz enxerga o mundo. Tudo e todos têm a forma e a substância possíveis ao olhar do observador. Circunstâncias que não representam necessariamente a verdade. Trata-se, neste caso, apenas dos limites da realidade da Beatriz. Não da sua, da minha, do caravaneiro ou de qualquer outro integrante da caravana. Cada qual vive na fronteira da própria consciência. Daí a importância de expandi-la.”
Perguntei se ela me considerava um covarde por me negar as experiências com a mescalina. Ela respondeu sem hesitar: “De jeito nenhum. Muitas vezes é mais fácil se deixar levar pelas correntezas do mundo para evitar a reprovação alheia. Isto, sim, é medo. Sem dúvida que o medo é o mestre das sombras. No entanto, outro mestre das sombras, ainda mais graduado, é a ignorância. Fazer-se surdo à voz da alma é se permitir a manipulação pelas sombras. A intuição sempre trabalha à favor da luz.” Eu questionei como eu saberia se voz ouvida era proveniente da intuição ou do medo. Pois, isto sempre esclarece se a decisão tomada tem as suas raízes nas sombras ou na luz. Ela dirimiu a questão: “A voz virtuosa, repleta de prudência e sabedoria, é calma e bem diferente dos gritos do medo. A prova disto consiste no simples fato de você estar sereno e se sentir bem mesmo diante da acusação de covardia feita pela Beatriz.”
A mulher de olhos azuis se aquietou por um breve tempo, como se lembrasse de uma ideia profunda. Depois sorriu e disse com sapiência: “Em verdade, me sinto mais tranquila quando me acusam injustamente”. Eu só fui entender o teor deste raciocínio muito tempo depois.
Em seguida, disse com convicção: “Não há atalhos no Caminho.” Questionei se realmente não existiam atalhos. Como eu saberia não ter desperdiçado uma oportunidade de expansão de consciência, perguntei. A mulher respondeu: “Nenhum artificialismo funciona para a alma. Acreditar que possamos alcançar a luz através de mecanismos forçados por substâncias químicas, psicotrópicas ou não, seria o mesmo em crer em uma pílula do amor verdadeiro.”
“É a obsoleta lei do menor esforço. Não se cura o medo com chás, não se evita o ciúme com comprimidos, não afastamos a inveja, o orgulho e o egoísmo pela receita de laboratórios farmacêuticos. A ferida da alma é a escuridão na qual o ego se encontra. Para isto, apenas a luz cura. Luz em forma de virtudes; virtudes apenas possíveis através fantástica viagem ao centro do ser.”
“Conhecer a si mesmo revela a verdade. A verdade leva à plenitude. A plenitude concede a terceira-visão; o olhar além da ilusão que esconde a realidade. Pois o ego, quando desequilibrado, ofusca a alma. A alma fica opaca quando precisa estar cristalina. Perde-se o poder do todo contido na parte.”
Imediatamente lembrei da conversa com o caravaneiro pela manhã. Sobre os iniciados nas tradições orientais, de Buda, dos filósofos gregos e de mestre Jesus. A necessidade dos meus olhos bons para que meu corpo resplandecesse em luz. A mulher comentou sobre as alterações do texto sofridas por sucessivas traduções através dos séculos. Alegou que a versão original dizia que “se o seu olho for simples todo universo será luz”. Argumentei que não percebia diferença significativa. Ela explicou: “Ele não falou olhos, mas olho. O mestre se referia ao olho cósmico; ao olhar da alma, não aos olhos físicos. ‘Corpo em luz’ dá ideia de sobrevivência no plano material; ‘universo em luz’ transmite o conceito de transcendência através do espírito.” Fez uma pausa e concluiu: “Esta é uma jornada possível apenas quando se faz consciência adentro para expandir os limites existência afora.”
Foi inevitável eu lembrar dos dizeres contidos no emblema da OEMM: “Aprender, Transmutar, Compartilhar e Seguir”. Sim, ali estava o mapa da evolução que não permite qualquer alternativa que não seja o aprimoramento através do autoconhecimento refletido nos relacionamentos pessoais. Isto exige muito esforço. Somente assim despertamos o olhar cósmico.
Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para comentar sobre o conceito de “olho simples”. Não me parecia tão simples assim. Pedi para ela explicar melhor. A mulher de olhos azuis ficou quieta por alguns instantes como se procurasse por uma metáfora. Depois, explicou: “Michelangelo, o gênio da Renascença, quando questionado pelo seu extraordinário talento em esculpir no mármore, dizia que tudo para ele era muito simples: ‘Olho para pedra e vejo a estátua que está escondida dentro dela. Então, retiro as aparas que escondem a obra. A arte se revela’.”
Em seguida, finalizou: “Ter um olho simples é tirar o excesso que oculta a essência. Então, estaremos diante da beleza da vida; a imensidão da luz. Eis a verdade revelada.”
A mulher de olhos da cor de lápis-lazúli se despediu com um aceno de cabeça e saiu. Eu a vi caminhar pelo deserto até os limites permitidos aos meus olhos para se misturar com as estrelas e desparecer na noite. Pensei se a Ingrid, a astrônoma nórdica, a encontraria mais tarde, através das lentes do seu telescópio, bailando em uma das infinitas constelações.
11 comments
Gratidão 🌹♥️
Gratidão!!
Gratidão! ♡ ☆ ♡
Bom conto 🙂 Gostei 🙂
Muita sabedoria nestas palavras. Estou encantada. Gratidão.
❤️🌹”…Cada qual vive na fronteira da própria consciência. Daí a importância de expandi-la…”
Gratidão irmão…gratidão
Lindo texto. Gratidão. Mais luz na minha jornada para valorizar a beleza da vida que está oculta em minha alma.
O olho simples.
Ter um olho simples…tudo se torna Luz.
SIMPLES, ASSIM!.
A simplicidade é muito importante para mim grata pelo texto tão maravilhoso