A viagem para Sedona, nas montanhas do Arizona, estava organizada. Malas quase arrumadas. Em alguns dias eu viajaria para encontrar Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de semear a filosofia ancestral do seu povo através das histórias que contava. Foi quando o Heitor, o monge argentino que também fazia parte da OEMM, me ligou dizendo estar muito chateado. Tivera uma séria discussão com os seus irmãos, com os quais o relacionamento, desde sempre, nunca fora bom. Piorara com o tempo. Como herdaram dos pais uma empresa de porte médio, como únicos sócios, administravam-na em conjunto. A animosidade chegara a um ponto crítico, pois os irmãos estavam unidos na tentativa de acuar Heitor, fazendo críticas diretas ao seu trabalho na firma e lançando farpas sobre as escolhas pertinentes à sua vida pessoal. Uma atmosfera insuportável, me confessara o monge. Sugeri que se afastasse da direção da empresa. A distância física talvez fosse necessária. Heitor disse que poderia fazer isso a título de férias, nunca de maneira definitiva. Embora fosse um conhecido escritor de romances espiritualistas, os rendimentos auferidos na tarefa empresarial eram importantes para complementar a renda proveniente dos livros. Antes que eu pudesse fazer outro comentário, ele me disse que chegaria ao Rio de Janeiro em alguns dias. A passagem estava comprada e o hotel reservado no Posto 6, em Copacabana, bairro de sua predileção na cidade. Como éramos grandes amigos, contava comigo como interlocutor das questões que ainda o afetava, no esforço de desfazer o mal-estar que sentia.
Eu queria acolher o Heitor, que muito precisava de mim naquele momento, ao mesmo tempo em que queria estar com Canção Estrelada para usufruir dos seus maravilhosos ensinamentos. Compromissos profissionais não me permitiriam adiar a viagem a Sedona para qualquer outra data próxima. Fui buscar o monge no aeroporto. Lá mesmo revelei o dilema e, como solução, o convidei a me acompanhar às montanhas do Arizona. Sem dúvida, o xamã teria condições de orientá-lo através de um olhar que eu ainda não possuía. Inicialmente surpreso, instante seguinte, como são os espíritos livres, disse para comprarmos logo a sua passagem. Ele sempre se encantara com a magia da vida e o inesperado dos acontecimentos como convite ao inimaginável. Embarcamos dois dias depois.
Amável e generoso, como de costume, Canção Estrelada nos recepcionou com um sorriso sincero e as feições serenas. Após deixarmos as malas nos quartos, fomos à varanda conversar enquanto a noite se avizinhava. Sem qualquer pressa, sentado em sua cadeira de balanço, o xamã acendeu o tabaco em seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha. Baforou algumas vezes, enquanto parecia se divertir com a dança da fumaça ao sabor da brisa leve do fim da tarde. Sem que nada tivéssemos adiantado sobre os problemas de Heitor, Canção Estrelada o olhou, como se pudesse ver a alma desnuda do monge, e disse: “Você é um grande guerreiro, mas perderá a batalha se não entender as armas que possui”.
Refeito do susto, pois não esperava que a conversa se iniciasse de maneira tão abrupta, confessou que sofria constantes ataques por parte dos irmãos. Provocação e desprezo aconteciam a cada encontro. Para piorar, sonegavam informações sobre a firma, com o intuito de segregá-lo de modo indireto; ao negarem as condições corretas para conhecer os problemas, ele ficava impossibilitado de participar mais intensamente, assim como de apresentar soluções. Tinha de brigar para conseguir algo que deveria ser entregue por obrigação e direito. Nas reuniões chegavam fechados em muitas questões, tornando decorativa a participação de Heitor. Na última reunião, tiveram uma discussão bastante ríspida, sendo que foi necessário uma ameaça de intervenção judicial para que a opinião do monge argentino, contrária a demissão de antigos funcionários para a contratação de novos com salários mais baixos, fosse considerada. Isolado, teve de ouvir comentários de que se mantinha avesso às modernas tendências empresariais por causa do que denominavam culpa cristã, ou ainda, que se posicionava daquela maneira apenas para se exibir perante os funcionários. Canção Estrelada o questionou: “O quanto há de verdade nisso?”. Heitor explicou que era um cristão de raiz; ou seja, utilizava os fundamentos básicos dessa preciosa filosofia, como as narradas no Sermão da Montanha, para orientar as suas escolhas. Valia-se das virtudes e dos compromissos que assumira com a própria verdade, na fronteira mais longínqua alcançada pela sua consciência até o momento. Naquele caso, não se tratava de demitir por ineficiência, qualquer falta grave ou inaptidão, mas somente para auferir lucros mais elevados. Portanto, jamais se permitiria levar dissabores a quem colaborara eficazmente por tantos anos na manutenção e crescimento da empresa. Não se tratava de vaidade ou culpa religiosa, mas de responsabilidade com todos e consigo mesmo, afirmou. Acrescentou que ninguém está obrigado a assumir qualquer compromisso. Contudo, entendia que compromissos são escolhas pessoais e definem a beleza e a grandeza de uma existência. Negava-se a viver dias rasos. Havia sinceridade em suas palavras. Com os olhos mareados, disse não suportar mais ouvir os comentários provocadores e jocosos. Trabalhar na empresa ao lado dos irmãos se tornara um martírio. Estava difícil lidar com tantos ataques, admitiu.
Canção Estrelada baforou o cachimbo e indagou: “Entendeu?”. Heitor abriu os braços como quem diz entendeu o que?Nada havia ainda para ser entendido. O xamã explicou: “O mundo é um lugar de encontros e desencontros. No ponto da escala evolutiva planetária onde estamos, ainda se faz importante que seja assim. Amigos nos ensinam o valor do amor, do acolhimento, da amizade e da solidariedade. Adversários nos ensinam sobre quem somos ao mostrar as nossas deficiências e incompletudes, oferecendo oportunidades para valiosos aperfeiçoamentos; por isto são tão importantes. Embora a intenção deles quase nunca seja essa, não importa. Jamais esqueça de agradecer por tamanha e inestimável colaboração”.
O monge argentino disse saber do que o xamã falava. Esse era um dos sentidos da célebre lição sobre amai os vossos inimigos. Entretanto, ainda não tinha compreendido aonde aquela conversa o conduziria. Canção Estrelada pontuou: “Ao seu desequilíbrio e fragilidade. Se preferir, à instabilidade das emoções oriunda por falta de confiança nas ideias que o erguem e sustentam. Você tem o conhecimento, mas parece não acreditar no poder e magia do seu conteúdo”. E prosseguiu: “Haverá ataques por todo tempo, de muitos lados e diversas intensidades. Não os desejamos, mas ainda precisamos deles para o aprimoramento necessário ao espírito que somos. Portanto, jamais se irrite ou se entristeça para que possa usufruir das benesses que oferece”.
Heitor expressou a sua dificuldade em não se chatear com as críticas e provocações. Salientou que tinham o refinamento de serem apresentadas de jeito indireto e até mesmo gentil, se vistas sem a devida atenção. Canção Estrelada fez um movimento com a mão, como quem diz que entendia a estratégia dos ataques, e ponderou: “Dê atenção apenas ao que merece a sua atenção. Dê-me um único bom motivo para que uma ofensa mereça tratamento privilegiado em seu coração. Por qual razão enchê-lo de porcaria?”. Fez uma pequena pausa antes de fazer outra pergunta de simples retórica: “Por acaso você pega o lixo da rua para decorar a sua casa?”.
O monge de Buenos Aires disse não com a cabeça. Depois, acrescentou que o problema residia no fato de a ofensa ficava martelando incessantemente em sua mente. Por mais que tentasse afastá-la, não conseguia. Era como se visse uma mesma fotografia em todos os lugares por onde passava. Parecia impossível esquecer. Canção Estrelada o corrigiu: “Esse é um dos erros comuns que nos impedem de avançar. Não há como esquecer. Apagar a memória não é permitido. Podemos reprimir ou sufocar uma lembrança desagradável, mas isto é péssimo; seria como esconder um animal selvagem dentro do coração. Em algum momento, irá nos devorar”. Olhou para estrelas, por instantes, antes de continuar: “Entenda que a ofensa pertence a quem a envia. Ao chegar na porta do seu coração, você terá a escolha de a convidar para entrar ou impedir a sua entrada. Quando coloca lixo para dentro coração, o mal cheiro impregna a mente, fazendo com que a recordação se torne recorrente. Assim nascem os demônios que nos aterrorizam. Não há razão para lamentar. São frutos das nossas permissões indevidas”.
Tornou a baforar e disse: “Se não reagir a tempo, os demônios crescerão até o dia que tomarão posse da casa. O seu coração”. Heitor admitiu não saber como fazer. O xamã esclareceu: “Todo poder está na mente; a magia reside no coração”.
Depois, prosseguiu: “Você é o substrato da mistura dos seus pensamentos com os seus sentimentos. Virtudes e sombras duelam para dominar a sua mente. O vencedor definirá quem você é, as delícias e amarguras dos seus dias, assim como o destino próximo. Trata-se de uma luta minuto a minuto, de um instante para outro, por um pequeno descuido, entregamos uma batalha que vencíamos. Uma provocação, uma cara feia, uma ofensa, uma desconfiança podem abrir os flancos das nossas defesas e deixar que, através de uma delas, as sombras se instalem. Um azedume no coração, se não for logo corrigido com a doçura de ideias corretas e adequadas, como a necessária faxina que toda casa precisa, irá contaminar a mente com maus pensamentos em espiral crescente de angustia, tristeza e revolta. A luta restará perdida, na qual se somarão dias desperdiçados, sonhos interrompidos, projetos inacabados e alegrias decepadas”. Deu de ombros antes de concluir: “Essas são as consequências. As causas se proliferam em razão de você ainda não ser dono de si mesmo”.
Heitor discordou. Afirmou que estava no controle da própria vida. Era livre e fazia suas escolhas conscientemente. O xamã franziu as sobrancelhas e corrigiu: “Há graus de liberdade, pois existem níveis de consciência. Você é livre até o último limite já alcançado na conjunção do seu pensar e sentir. Consciência é a percepção e a sensibilidade que se tem sobre si e sobre o mundo ao redor. Assim estabelecemos as fronteiras das liberdades individuais, que se completa através de cada movimento, gesto e atitude”. Depois, concluiu: “Se você não tem capacidade de escolher os pensamentos e sentimentos que o direcionam, significa que ainda não se pertence por inteiro. Não há como ser livre enquanto estiver dominado por ideias e emoções que o aprisionam em sofrimento e angústia”.
Aos poucos, o raciocínio de Canção Estrelada clareava o nosso olhar: “Ao permitir que uma ofensa ou provocação atinja o coração, emoções insalubres contaminarão a mente, como uma bomba de gás paralisante, estreitando o raciocínio em uma ideia viciada e recorrente. A todo instante aquele fato nocivo retornará à memória, impedindo que se viva intensamente mil outras situações oferecidas pela vida, desenvolva novas ideias e se encante com a magia dos dias. Ao permitir que a atitude de alguém desperte emoções densas, sem perceber, na sequência, terá a sua consciência encarcerada. Sim, ficará preso ao sofrimento que foi morar dentro de você. Esse é o efeito limitador a restringir a liberdade de muita gente. Poucos se dão conta”.
Como uma roupa feita sob medida, aquelas palavras cabiam em mim perfeitamente. Eu queria saber como descontruir aquela prisão. Canção Estrelada explicou: “Dá trabalho, mas sempre é possível quando se tem vontade de caminhar, coragem para enfrentar verdades desagradáveis e, acima de tudo, amor-próprio. Entenda por qual motivo você permitiu que a ofensa entrasse na sua casa. Não raro, existe dependência emocional pela aprovação alheia, como se a aceitação por si mesmo estivesse à espera da confirmação de mais e mais pessoas. Não são apenas as drogas que viciam; necessidades de aprovação, pertencimento e aplauso possuem uma enorme legião de viciados. Nada disso é necessário. A sua consciência, quando em vias de expansão, será o único juízo a lhe conduzir pelo Caminho, corrigir as rotas necessárias, se refazer das quedas, reparar erros, evitar o mal e semear o bem por onde passar. A viagem é sua e de mais ninguém. Portanto, perdoe, confie em si e siga em frente”.
Canção Estrelada continuou: “Passo seguinte, pegue pela mão aquela provocação que está sentada no sofá do seu coração e a retire de casa. Sem qualquer raiva nem ressentimento, explique com doçura, mas também com a firmeza necessária, que não existe mais lugar para ela dentro de você. Que fique bem claro, é um diálogo sincero de você consigo mesmo. Ninguém mais. Não há mais motivo para aguardar pela permissão de qualquer outra pessoa. Você agora é o dono da sua casa”. Baforou o cachimbo e acrescentou: “Esse comando vem da mente. Após a retirada daquilo que contaminava o coração, as emoções deletérias darão espaço para os sentimentos sutis. Você será envolvido por uma agradável e inesquecível sensação. Acredite, ela é real. Quando se retira as larvas, as flores germinam para perfumar e colorir o jardim. A casa se transforma. Somos a nossa mente, mas moramos em nossos corações”.
Perguntei se, em caso de provocação, devíamos apenas tratar o ofensor com desprezo. O xamã discordou: “Trata-se de um erro comum que termina por permitir que ele se hospede em você. O desprezo é uma triste, porém socialmente aceita forma de agressão. Um revide por intermédio de uma atitude sem palavra com um suposto e absurdo caráter de superioridade. O prazer de virar o rosto na primeira oportunidade denota o gosto amargo instalado no coração. Nada mais do que a odiosa vingança; a barbárie vestida de civilidade. A batalha seguirá perdida”.
Olhou a dança da fumaça diante dos olhos, após baforar, e falou: “É tudo tão mais simples…”. Arqueou os lábios em sorriso quase imperceptível e esclareceu: “Faz-se necessário compreender que a ofensa fala sobre quem a proferiu, o mal revela a alma desorientada daquele que o praticou, a provocação é o grito desesperado de quem está perdido na escuridão. Nada tem a ver contigo. Portanto, só irá entrar na sua casa, caso você permita. Todas as vezes que bater à sua porta, basta dizer com doçura e firmeza, nessa casa só há lugar para a luz, apenas o amor pode se hospedar. Basta isso, nada mais”.
Assim como Heitor, eu fazia uma retrospectiva para identificar todos os momentos em que permiti a entrada de ofensas e provocações em meu coração; que coloquei lixo da rua para dentro de casa. Foram inúmeras vezes. Recordei como aquela prática, ou permissão indevida, me fez mal. Deixei-me invadir por emoções insalubres e, como consequência, as ideias ficaram retidas, aprisionadas por aqueles fatos. Por ignorância, a história se repetia. Momentos desagradáveis me reprimiam em mágoa e incompreensões, impedindo de eu estar por inteiro em tantas coisas importantes e preciosas que estavam a minha espera, tais como projetos, sonhos, estudos, trabalhos, passeios e outros relacionamentos. Apesar de viver as situações, uma parte de mim, talvez a melhor por conter a alegria indispensável, nunca estava presente. Eu perdia o mel da vida porque tinha entregado a chave da casa para demônios que um dia, ao baterem na porta, inadvertidamente, os deixei entrar. Pior, os meus que dormiam, foram acordados para se amotinarem junto a eles.
Falei que também precisava de uma faxina. Havia gente e situações morando em mim que não podiam continuar sentados do sofá, ainda mais grave, dando ordens e deixando a casa desarrumada. Heitor franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça como quem diz que não seria diferente com ele. A lua cheia estava alta em um céu sem nuvens, iluminando a paisagem como um segundo sol mais tênue. Canção Estrelada nos convidou para irmos a um lugar não muito distante dali. A sua surrada picape, em poucos minutos, nos deixou próximos às margens de um belíssimo lago de águas espelhadas. Estendemos mantas para nos sentar e, sem demora, o xamã rufou em seu tambor de duas faces uma melodia ancestral, rogando que os bons espíritos nos iluminassem e protegessem naquele singelo, porém poderoso, cerimonial mágico. Aproveitando que as palavras ditas, havia pouco na varanda, tinham despertado as nossas consciências, Canção Estrelada fez valer o seu dom de usar a filosofia nativa e a música para nos conduzir através de passagens desconhecidas que ligavam a mente ao coração. Somente quando esta conexão se completa em pureza e suavidade, depois de descartada toda aspereza e desnecessidade, o indivíduo inicia a jornada que irá unir as partes separadas em uma única peça. O ser integral.
Como a incompreensão e o sofrimento eram muito intensos no monge argentino, ele sentiu a necessidade de falar. Ouvir a própria voz facilitava o entendimento de tudo que tinha vivido, as concessões equivocadas, as mágoas endurecidas pelo tempo, as dores nunca reveladas e, algumas, jamais admitidas. Era preciso escutar tanto a mente quanto o coração, silenciados pela vergonha de confessar a dificuldade de lidar consigo mesmo. Uma enorme quantidade de entulho precisou sair até a casa restar sem sujeira. As lágrimas ajudaram no serviço de limpeza. Canção Estrelada o orientou na jornada: “Após a faxina profunda se faz necessário uma nova arrumação; alguns móveis precisam mudar de lugar; depois, não esqueça de perfumar a casa. Para tanto, não olhe para aqueles que o provocaram ou ofenderam como se fossem algozes. Alvo errado. Eles fizeram da maneira como sabiam ou conseguiam. Há de existir compaixão, uma linda maneira de compreender amorosamente a incapacidade alheia. De outra face, você se permitiu atingir por causa do seu desequilíbrio emocional, razão de não conseguir sustentar os conhecimentos que já adquiriu. Há de existir humildade, um jeito sábio de aprender sobre quem ainda não se tornou. Do contrário, não conseguirá compreender os motivos da fragilidade que ainda o acomete. Para ser livre se faz indispensável assumir o controle absoluto da mente e do coração, sem qualquer interferência nociva. A sabedoria traz muito poder, mas sem o amor, seguirá sendo uma fonte turva, apenas um pouco mais sofisticada, de conflitos e sofrimentos. A sabedoria contém a força, o amor oferece o equilíbrio. Quando juntos, concedem a direção. Então, alcançamos o poder e a magia sobre quem somos e tudo mais ao redor. As cortinas se abrem para o sol iluminar a casa. Definitivamente”.
À medida que as estrelas se movimentavam pelas estradas do céu, Heitor foi retirando de casa todos os moradores indesejados, assim como a enorme quantidade de entulho acumulado. Não queria mal a ninguém, somente não mais permitiria que bagunçassem o a sua paz. Em silêncio, fiz o mesmo.
Ficamos sem dizer palavra por um tempo que não sei precisar. O céu retomava o tom rosáceo e alaranjado quando Heitor questionou como agiria ao retornar à empresa e ao convívio com os irmãos. Entendera o mal que causava a si mesmo a ficar ruminando indefinidamente uma ofensa e provocação. Já limpara a casa, assim como não mais abriria a porta para que estas retornassem ou outras entrassem. Compreendera o poder que tinha nas mãos. No entanto, não havia como mudar o comportamento de outras pessoas que, se continuassem a agir da mesma maneira, seguiriam lhe causando desconforto. Canção Estrelada concordou com um movimento de cabeça e acrescentou: “Acreditar que os outros devem mudar para que os dias se tornem agradáveis é um dos equívocos mais vulgares. Tudo que nos incomoda em alguém indica algo que precisa de mudança em nós”.
Heitor argumentou que, se os irmãos estavam errados, deles deveria vir a mudança. Concordei. Canção Estrelada arqueou os lábios em leve sorriso e ponderou: “Sim, seria o ideal. Mas possivelmente não acontecerá, tampouco você pode ficar à espera de algo que pode demorar um tempo sem fim. Então, essa dependência trará desconforto e mal-estar. Quando se der conta, a casa voltará a ficar suja; se demorar, os pilares restarão corroídos tamanha a acidez. Então, tudo desaba. A teimosia em modificar alguém é exercício dos tolos, seja pela ilegitimidade da exigência, afinal, sem que cometam crimes, as pessoas têm o direito de ser do jeito que quiserem, gostemos ou não; seja pela ineficácia da ação, pois enquanto o outro não quiser mudar o seu jeito de se relacionar, nada surtirá efeito”.
“Entretanto, você também tem o direito de viver sem que as pessoas lhe tragam incômodos e desconfortos. Para tanto, dois requisitos são fundamentais. Respeito e atitude. O respeito estabelece os limites dos relacionamentos ao definir o ponto no qual o outro jamais estará autorizado a ultrapassar. Defina-o com clareza, educação e seriedade. Não se faz necessário agressividade; se houver briga significa que você ainda não conquistou a força e o equilíbrio necessários. Gritos são demonstrações de um poder inexistente. Basta um olhar decidido e a voz serena. Sua vida, suas regras; seja firme, porém, tranquilo, para que não reste dúvida, tanto para você quanto para qualquer outra pessoa”. Em seguida, concluiu: “Após estabelecer as fronteiras do relacionamento, aja. Aceite que uma ação é necessária para que você possa sair da dependência de ficar à espera do comportamento de alguém que não sabe quando, ou mesmo se, acontecerá. Sem fazer uso de qualquer maldade, tampouco se apoderar de algo que não lhe pertence, vá em busca daquilo que precisa sem ficar na dependência que lhe entreguem. Então, encontrará a paz e a liberdade que merece”.
O monge argentino sorriu encantado como quem vê algo que nunca conseguira enxergar. Falou que o desconforto residia no fato de os irmãos se reunirem para acuá-lo e limitarem as suas decisões na empresa. Como todas as movimentações constavam na contabilidade, fosse a financeira, fosse do estoque, se reservasse algumas horas semanais para buscar as informações que precisava para não se sentir alijado do comando da firma, encerraria com a dependência, fazendo com que o desconforto desaparecesse. Daria trabalho, mas resolveria a questão. Esta atitude, acrescida a uma postura equilibrada e serena, reestabeleceriam a sua força interior. O comportamento deles não mais o incomodaria. Tinha entendido o significado de ser dono de si mesmo e assumir o comando da própria vida.
O xamã nos lembrou: “Cada situação é única, pois envolve diferentes pessoas e condições. No entanto, sempre existirá uma postura adequada para estabelecer o respeito necessário, além de definir a atitude correta para desmontar a armadilha na qual está aprisionado. O poder e a magia se ocultam na arte de arrumar a casa. Essa é a estrada rumo à liberdade e à paz”.
O tambor de duas faces de Canção Estrelada rufou uma melodia de agradecimento para encerrarmos o cerimonial sagrado. Muitas foram as transformações permitidas. Então, os primeiros raios de sol da manhã acariciaram as nossas faces.
7 comments
A busca pela vingança na verdade é uma busca por aprovacao. As pessoas com a qual chamamos de adversarios e inimigos, sao na verdade aqueles q sem saber, estamos clamando por aprovacao.
Nao e na resposta ou na indiferença que vencemos, nos vencemos quando perdoamos e amamos sem esperar nada em troca, aqueles que em sua ignorância, se afogam no proprio mal.
Genial e libertadora essa ideia.
Gratidão 🙏
Gratidão pelos ensinamentos providenciando a organização e limpeza do meumaravilhosa lar. Namastê!
Que beleza de sentir. Gratidào
A muitos anos atrás eu acompanhava seus textos pelo Facebook, porém com o passar do tempo e as reviravoltas da vida acabei esquecendo seu nome, assim como o grande valor de seus ensinamentos.
Eu apresentei seus textos a um amigo anos atrás, que eu só reencontrei recentemente, e ele me recordou disso e me contou o quanto esses ensinamentos o ajudaram em sua vida.
Sinto como se eu tivesse entregado um presente a meu amigo, e anos depois ele tivesse me devolvido esse presente, no momento certo.
Obrigado pelos seus textos repletos de sabedoria e reflexão, obrigado por esse valioso presente.
Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟
Gratidão