MANUSCRITOS IV

O manto da invisibilidade

No sábado, cheguei em Sedona, cidade situada nas montanhas do Arizona, onde morava o Canção Estrelada, no sábado. Era o dia da semana em que ele reunia várias famílias no jardim da sua casa para contar histórias ancestrais que guardavam a filosofia do seu povo. Isto acontecia havia alguns anos, desde que foi impedido de dar aulas na escola local em razão de uma determinação judicial. O xamã não tinha um diploma; mas tinha sabedoria. Para que o conhecimento não se perdesse, abria os portões da sua casa a fim de compartilhar esse bem precioso; todos eram bem-vindos. Como tudo que traz valor ao coração, multiplicamos ao compartilhar. Tornou-se um cerimonial mágico muito concorrido. Até mesmo o diretor da escola o frequentava com a família. Sentado em sua cadeira de balanço, colocada debaixo do carvalho frondoso, no meio do gramado, o xamã esperava que as pessoas se acomodassem sobre as mantas estendidas pelo jardim para começar a narrar uma das inúmeras histórias que tinha ouvido de seus antepassados. Todos caprichavam nos lanches que levavam e os repartiam com todos; uma comum-união. Por isto era um cerimonial. As histórias tinham o poder de transformar o jeito de olhar e pensar daqueles que a ouviam. Por isto era mágico.

Quando desci do carro, Canção Estrelada estava fazendo uma prece breve e sincera, pedindo aos guardiões das esferas invisíveis que protegessem a todos durante o pequeno, porém, significativo ritual sagrado, para manter a harmonia do ambiente e o equilíbrio das pessoas, não permitindo a influência de energias densas e intrusas no local. Também solicitou que os espíritos iluminados, ali presentes, o intuíssem com boas palavras, com objetivo de que todos pudessem sair dali melhor do que chegaram. Deixei a mochila na sala da casa e me acomodei na varanda. Antes que o xamã iniciasse a história daquele dia, um garoto, com cerca de oito anos de idade, levantou a mão. Canção Estrelada sorriu para ele e pediu que falasse. O menino perguntou porque aquele encontro era um ritual sagrado. O xamã explicou: “Ritualé toda cerimônia na qual exista um modo próprio para se alcançar um objetivo específico. Todos os sábados me sento debaixo dessa árvore para contar histórias para quem quiser ouvir. As pessoas se espalham pelo quintal. Compartilhamos não apenas as histórias e os lanches, mas também a alegria pelas experiências irmanadas”. Fez uma pequena pausa antes de prosseguir: “Sagradoé tudo aquilo que nos torna melhor. Penso que todos se sentem assim ao retornarem às suas casas”. O intrépido garoto voltou a levantar o braço. Todos riram. Autorizado a prosseguir, o menino mostrou um livro, As aventuras de Tom Sawyer, um clássico da literatura escrito pelo escritor Mark Twain. Quis saber se aquele livro era sagrado, pois se sentia uma pessoa melhor à medida que acompanhava a saga do jovem protagonista. Canção Estrelada tornou a sorrir com sinceridade, balançou a cabeça e disse: “Sem dúvida nenhuma. O sagrado habita nas coisas comuns. Isto ocorre para que seja de fácil acesso e esteja ao alcance de todas as pessoas”.

O xamã iniciou a narrativa: “Há muito tempo, numa época em que não existiam carros nem telefones, havia uma tribo próspera e pacífica, governada por um líder muito generoso e sábio. Ele tinha o respeito e o carinho de todos na aldeia pela maneira justa com a qual decidia as questões e encerrava os entreveros. Esse chefe tinha adquirido a capacidade de entregar a cada um a medida exata: o que pertencia a uma pessoa por merecimento, não permitia que lhe tomassem; de outro lado, não a entregava coisa nenhuma caso não merecesse. Isto gerava tranquilidade e bem-estar entre todos”. 

“No entanto, ele sabia que os dias de continuar a andar sobre a terra estavam chegando ao fim. Aproximava-se rapidamente a hora de viajar ao encontro do Grande Mistério”. O irrequieto menino tornou a levantar o braço. Canção Estrelada sorriu e fez um gesto com a cabeça para que ele falasse. O garoto quis saber a razão de as pessoas boas morrerem. O xamã explicou: “Todos morremos porque precisamos renascer. Renovados e em melhores condições para prosseguirmos de onde paramos. Acredite, até os bons têm muito a aprender. Entender o processo permite perceber que a morte é um ato de amor do Grande Espírito para conosco”.

O menino agradeceu e disse ter compreendido. Canção Estrelada prosseguiu a narrativa: “O chefe entendia mais acertado que o seu substituto fosse escolhido enquanto ele ainda podia ajudar no processo para evitar conflitos e dissabores na tribo após a sua partida. Foi perguntado a todos quem gostaria de se tornar o próximo líder da aldeia. Três pessoas se candidataram. O mais bravo dos guerreiros foi o primeiro a se apresentar. Ele era um homem que trazia muitas conquistas e vitórias em sua história. Depois, veio um jovem agricultor que tinha perdido os filhos e a esposa, ainda muito cedo, sem que ninguém soubesse a causa dos óbitos. O terceiro era o ferreiro da tribo. Além de excelente artesão, era homem muito cordato. Tão pacato que as pessoas somente lembravam dele quando precisavam dos artefatos que confeccionava”.

“Logo a aldeia ficou bastante movimentada. As pessoas manifestavam as suas opiniões e grupos de apoio se formaram. Aqueles que entendiam que, entre os três, o guerreiro seria o melhor chefe, alegavam que ele era temido pelas tribos vizinhas, pois todos conheciam a sua coragem nos campos de batalha. Diziam também que ele estava acostumado a comandar. Com ele à frente, continuariam a ser um povo ordeiro. Sem dúvida, era o favorito da tribo”. 

“Bem próximo, vinha o ferreiro na preferência da aldeia. Os seus apoiadores queriam como líder uma pessoa afeita à paz e não um contumaz da guerra. Sustentavam que a paz tem atributos valiosos sem os quais é impossível a felicidade; a guerra é inteiramente ocasional e, sempre que possível, dispensável. Graças ao ferreiro a tribo tinha à disposição importantes utensílios que auxiliavam no progresso e prosperidade da aldeia. Não precisavam de um chefe temido. Queriam alguém que fosse admirado”. 

“Por fim, com pouquíssimas chances, e bem atrás, vinha o agricultor. Tinha o apoio de apenas alguns poucos anciões. Estes ponderavam que as desventuras do passado tinham lhe ensinado sobre a misericórdia e a compaixão. Todavia, as situações obscuras pelas quais passara, além da má sorte que parecia lhe fazer companhia, o tornara um pária, quase um maldito para o resto da tribo. Temiam que a sua energia de sofrimentofosse contagiosa. Ele não tinha a menor chance na disputa”.

“Com o passar dos dias, os debates se acirraram e algumas discussões aconteceram. Por entender ter chegado a hora de encerrar com o processo de escolha para que, por divergências de olhar, amigos não se tornassem inimigos. Estava também disposto a oferecer uma sábia lição a todos. O bom chefe chamou o feiticeiro em sua tenda. Quando o bruxo entrou havia três mantos expostos. Pediu para ele lançar sobre os mantos o feitiço da invisibilidade. Quem estivesse agasalhado por qualquer deles não seria visto por ninguém. Salvo por quem estivesse com o Anel do Trono, aquele usado pelo líder da tribo. Assim foi feito”. 

“Em seguida, pediu ao feiticeiro que ofertasse um manto para cada candidato, dizendo a eles, em separado, sobre a magia do presente. Explicaria, também, que o poder se desmancharia se o segredo fosse revelado. Alertou ao bruxo que um não poderia saber sobre o manto do outro. E, mais importante, o feiticeiro teria que manter absoluto sigilo sobre a capacidade do Anel do Tronoem revelar quem estava oculto por debaixo do manto”.

“De início, os três homens se mostraram surpresos com o presente, depois se sentiram envolvidos por desejos enraizados e nunca revelados. Na mesma noite, se ocultaram sob os seus mantos e saíram pela aldeia. Como um não via o outro também agasalhado pelo mesmo encanto, por pouco não se esbarraram em seus passeios invisíveis”. 

“Na manhã seguinte a aldeia parecia virada ao avesso. Muitas pessoas reclamavam do sumiço de seus artefatos e utensílios. Os mais exaltados prometiam encontrar o ladrão e exigir uma punição exemplar. Outros, atribuíam o sumiço ao fato de a tribo restar amaldiçoada por causa da participação do agricultor na sucessão ao cargo mais importante da aldeia”. 

“A jovem esposa do trovador comentou com o marido sobre um estranho pesadelo que tivera naquela noite. Sonhara que o irmão dele, o guerreiro, jurava para ela que logo se casariam. A moça chorou muito. Disse que amava o marido e não desejava se separar dele, tampouco enviuvar tão moça. O trovador disse para a mulher não se assustar. Ele estava bem de saúde. No mais, o seu irmão era um guerreiro honrado e lhe protegeria. Mais tarde, comentou o fato com alguns amigos. Logo surgiu a versão de que o pesadelo era o prenúncio da má sorte do agricultor, um homem sem família e sem amor. Deveriam tomar cuidado com ele”.

“Na contramão do assombro que se abatera sobre a tribo, a mãe de um bebe adoentado comemorava a cura do seu filho ocorrida naquela noite, como que por milagre. Um ancião, também enfraquecido, pois não sentia mais vontade de se alimentar, falava do mistério de ver as suas frutas prediletas na cabeceira da cama ao acordar. Sentiu vontade de comer pela primeira vez, depois de muito tempo. Disse se sentir bem melhor depois de se alimentar. Todos atribuíram os fatos à generosidade do Grande Espírito. Ainda mais, interpretaram como um aviso para que a aldeia se definisse entre o bem e o mal. O mal estava personificado na intenção do agricultor em se tornar o chefe da tribo. Isto, se acontecesse, seria como entregar a aldeia aos domínios das trevas e iniciar um ciclo de sofrimentos”. 

“No final da tarde, um enorme grupo de aldeões exaltados foi à tenda do bom e sábio líder. Exigiam que a agricultor fosse alijado da disputa pela sucessão, assim como queriam o julgamento e a consequente condenação daquele homem a pena de banimento. Temiam a sua influência nociva”.

“O chefe, com serenidade e sem se permitir envolver nas paixões descontroladas da aldeia, os aconselhou a pensar sem medo. Explicou que o medo nunca será um bom mestre. Pediu para que todos retornassem as suas tendas e descansassem. No dia seguinte comunicaria a todos a sua decisão. Embora contrariados pelo afã de não verem os seus pedidos imediatamente satisfeitos, atenderam à ordem. Não sem cochichar entre eles que o chefe estava velho e fraco. Era mesmo chegado a hora de substitui-lo. Alguns diziam sentir falta da mão enérgica do guerreiro para arrumar a tribo; com ele haveria ordem. Outros, alegaram que entendiam o valor imprescindível de um homem trabalhador, pacato e habilidoso como o ferreiro, ao proporcionar melhores condições de vida à aldeia com os artefatos que produzia; com ele existiria prosperidade”.

“No meio da noite soou alto a trombeta feita com chifre de carneiro. Era um alarme. Todos se levantaram assustados e correram para fora de suas tendas, onde o chefe os aguardava ao lado do feiticeiro na praça central. Pais carregavam os seus filhos ainda bebes; filhos ajudavam aos seus pais já com idade avançada. Todos falavam ao mesmo tempo em busca de uma explicação para o que estava acontecendo. O chefe levantou a mão pedindo por silêncio. Entre muitas coisas boas que o sábio chefe deixaria como legado era ter ensinado a tribo a ouvir. Ouvir antes, falar depois. Fez-se um absoluto silêncio. Até mesmo os sons típicos da noite pareciam ter obedecido por perceberem a importância do momento”.

“O velho chefe começou a falar: ‘Ontem eu ouvi vossas razões e vontades. Hoje lhes entrego a minha decisão, não sem antes ter o respeito em detalhar as minhas motivações’. As pessoas se entreolharam, mas não pronunciaram palavra. Ele prosseguiu: ‘A tribo está toda reunida aqui, na praça central, certo?’ Os aldeões balançaram a cabeça em concordância, menos a esposa do trovador. Nervosa, disse que o seu marido tinha desaparecido”.

“O chefe, balançou a cabeça como se já soubesse e continuou: ‘Faltam quatro homens. O trovador, o guerreiro, o ferreiro e o agricultor. Alguém sabe onde eles estão?’. Atônitas, naquele instante as pessoas se deram conta das ausências. Ninguém sabia deles. O sábio chefe apontou para o portão da aldeia e disse: ‘O primeiro acaba de entrar’.No entanto, ninguém o viu”. 

“O homem, protegido pela invisibilidade do manto, se manteve quieto ao chegar e encontrar a aldeia reunida. Pretendia entender o que estava acontecendo. O chefe ordenou com a voz serena, porém firme: ‘Dispa-se do manto!’. Intrigado por se acreditar oculto a todos, mas sem ousar desobedecer a ordem, ele retirou o manto para se revelar. Era o guerreiro”.

“Perguntado o que fora fazer à noite na floresta, alegou ter ido refletir sobre as graves questões que envolviam a aldeia. Disse que precisava pensar para entender a situação, assim como as decisões que tomaria. Parte da aldeia o aplaudiu satisfeita na certeza de que era o homem adequado ao comando da tribo”.

“Olhem agora, disse novamente o chefe apontando para o portão. Como o segredo restara revelado, não mais surtia efeito a magia da invisibilidade. Todos viram quando o ferreiro entrou na aldeia. Perguntado de onde vinha, o homem disse que fora na floresta à procura dos artefatos desparecidos. Comentou que talvez o ladrão tivesse escondido na mata o produto dos furtos. Outra parte da tribo aplaudiu na convicção de que a aldeia não seria guiada por melhores mãos do que a de uma pessoa que perde a noite de descanso preocupada com o bem-estar alheio”.

“O terceiro a chegar foi o agricultor. Nada lhe foi perguntado. Quando viram que trazia um saco com os utensílios furtados, lhe cercaram e prenderam. Era a prova insofismável do crime. Diante de muitos gritos de revolta e brados de justiça, a mulher do trovador reconheceu no corpo do agricultor a camisa do marido. Estava rasgada e ensanguentada. Além de amaldiçoado, era ladrão e assassino. O sonho que a moça tivera foi uma premonição, comentavam todos”.

“Amarrado, o agricultor foi levado diante do velho chefe sob os gritos histéricos de ‘justiça!’”.

“O sábio chefe tornou a levantar o braço. Desta vez os ânimos demoraram um pouco para se acalmar. Quando o silêncio tornou a reinar, ele falou: ‘Eu lhes prometi a uma decisão. Apenas esperei um pouco para ter todos os elementos necessários a melhor compreensão de vocês’. Fez uma pausa breve pausa para inquirir: ‘Existe da parte de vocês alguma dúvida na interpretação do ocorrido nas duas últimas noites?’. A enorme maioria se declarou ungida de convicção sobre os crimes. O bom chefe alertou: ‘Há por trás das evidências, alguns fatos e verdades que quase todos desconhecem’”.

“O sábio chefe falou: ‘Teremos bem mais do que um julgamento’. As pessoas se olharam sem entender. Ele prosseguiu: ‘Há dias, a meu pedido, o feiticeiro presenteou os três candidatos’. Em seguida, explicou como funcionava o encanto do manto da invisibilidade e doAnel do Trono.”

“O chefe prosseguiu: ‘Alguém se questionou a razão de o ladrão retornar à aldeia com as coisas que dali furtou? Ninguém se perguntou o motivo de um assassino usar a camisa suja da vítima ao invés de ficar com a sua roupa limpa?’”.

“Apontou para o agricultor o disparou: ‘Este homem foi condenado pela maioria de vocês. Não em virtude dos fatos, mas de meras circunstâncias. Não em virtude de um pensamento crítico e isento de emoções, interesses ou comodidade, mas na velocidade de ideias pré-concebidas. Aqueles que se arvoram como donos da razão e detentores da verdade, se acalmem e tenham a dignidade de ouvir a sua história”.

“O silêncio foi sepulcral, como se algo tivesse morrido. Naquele momento talvez tenha chegado ao fim a impaciência e a intolerância de muitos. Impaciência no pensar; intolerância em relação às diferenças que temos em relação às outras pessoas. Livre dos braços que o prendiam e da coação que o calava, o agricultor explicou que tinha ido na floresta em busca de algumas ervas medicinais para medicar os enfermos, quando viu o guerreiro aplicar uma surra no irmão e o levar para o fundo de uma caverna. Um lugar onde ninguém costumava ir e os gritos não eram ouvidos. O trovador morreria logo por causa dos ferimentos, do frio e por inanição. Escondido, esperou que o guerreiro fosse embora e auxiliou o jovem poeta. Aliviou as feridas com emplastos feitos com as ervas, trocou de camisa com ele para que se sentisse agasalhado e, como o trovador não tinha condições de andar, retornou a tribo em busca de ajuda. Na volta, porém, viu o ferreiro esconder os utensílios na mata. Isto explicava o desaparecimento da noite anterior. Recolheu os objetos do esconderijo e os trouxe de volta. Esta era a explicação que tinha; esta era a verdade, alegou. Pediu, no entanto, que alguém corresse à caverna para resgatar o trovador enquanto prosseguissem no julgamento. O velho chefe anuiu e ordenou que alguns homens partissem imediatamente em socorro”.

“Fez-se um enorme burburinho. A aldeia se dividiu. Atônitas, algumas pessoas acreditaram naquele depoimento. Outras, ainda céticas, questionavam se aquele discurso não passava de uma enorme mentira contada por um homem na tentativa de fugir da condenação”. 

“Para encerrar qualquer discussão, o velho chefe da aldeia mostrou o Anel do Tronopara lembrar que podia ver o aquilo que o manto da invisibilidade escondia. Em seguida, revelou a visita do guerreiro na tenda do irmão; falou também do furto perpetrado pelo ferreiro. Não satisfeito contou à tribo do auxílio que o agricultor prestou tanto ao bebê quanto ao ancião. Todos esses fatos tinham acontecido na noite anterior”.

“Em seguida, perguntou se o guerreiro e o ferreiro gostariam de explicar as motivações das suas ações. Esclareceu: “Retomar a verdade não isenta da responsabilidade. Porém, resgata a dignidade esquecida e aproxima da luz”.

“O guerreiro pediu para falar. Confessou que sempre foi apaixonado pela esposa do seu irmão mais jovem. Apesar de todas as façanhas e vitórias nas guerras que lutou, o fato de aquela mulher preferir a poesia das canções ao invés da proteção da espada tinha sido a sua maior derrota. Inconformado, jurou que um dia se casaria com ela. Para isto, a cunhada teria que enviuvar. Acreditou que a invisibilidade do manto lhe oferecia a tão desejada oportunidade”.

“Em seguida, o ferreiro contou que sempre teve um enorme ressentimento em relação à aldeia. Era um homem quieto e cordato, nunca arrumava brigas nem participava de discussões. No entanto, as pessoas apenas o procuravam quando tinham interesse pelos artefatos e utensílios que confeccionava. Fora isto, ninguém parecia preocupado com ele. Aproveitou a invisibilidade do manto para esconder o material que produzira, pois desejava que a tribo, na falta dos objetos, lhe atribuísse o valor que merecia”.

“Quando terminaram, o chefe concedeu a palavra ao agricultor. O homem revelou sentir um grande vazio dentro de si depois que a esposa e os filhos partiram ao encontro do Grande Espírito. Ele tinha dificuldade em se aproximar das pessoas em razão de enorme parte da tribo acreditar que fosse um indivíduo amaldiçoado. Até mesmo alguns anciões, que pensavam de maneira diferente dos demais aldeões, tinham dificuldade em se aproximar dele porque suas famílias impediam. Todos os dias, bem cedo, ele partia sozinho para as plantações de trigo e milho, apenas retornando ao entardecer, já muito cansado, para se entregar ao sono. Às vezes, entrava pela floresta para colher frutas e ervas, que as pessoas recusavam para não se contagiar com a sua má sorte. A sua colheita de milho e trigo apenas conseguia negociar com as aldeias vizinhas. Salvo no caso de escassez, quando sua própria tribo parecia esquecer o mau agouro relacionado a ele. Porém não se ressentia; ao contrário, ficava feliz por se sentir útil”. 

“Naquela noite, como era possível entrar nas tendas, deu preferência àquelas em que havia pessoas doentes. Pegou um bebe que ardia em febre e aninhou em seus braços. Macerou algumas ervas curativas e misturou ao leite na mamadeira. Embalou o neném por longo tempo até que a temperatura arrefecesse e um sono tranquilo envolvesse a criança. Depois foi na tenda de um ancião que estava muito enfraquecido por causa da idade. Quase não sentia fome. O agricultor sabia qual era a fruta preferida dele. Era uma fruta difícil de conseguir. Como tinha ido na floresta no dia anterior, não por acaso, tinha trazido algumas. As colocou ao lado da cama do homem enquanto ele dormia e saiu sem alarde. O ancião, depois de recuperado do susto de ver a fruta predileta em sua cabeceira ao acordar, se alimentou com vontade e logo se sentiu melhor”.

“Um dos aldeões questionou como a tribo pôde se enganar tanto. O velho chefe explicou: ‘De um lado, cada pessoa vê somente aquilo que consegue ver; de outro, enxerga apenas aquilo que deseja enxergar’.”

“‘Quando uma pessoa fala, sempre há mais conteúdo sobre ela no silêncio que se calou do que nas palavras ditas. Existe mais de um indivíduo dentro de cada pessoa: há o que todos conhecem e existe aquele que ninguém nunca viu. Isto serve para você e para mim’”.

“Depois, ensinou: ‘Todos receberam o mesmo poder. Cada um o usou conforme a sua consciência. Um sujeito pacato não significa um homem em paz; um indivíduo corajoso não cria, necessariamente, um ambiente seguro. Acreditamos conhecer as pessoas através do trato social, do modo como se portam, das glórias que alcançam. Tudo isto tem valor, mas ainda é muito pouco. Também costumamos pensar que nos reconhecemos por essas mesmas lentes, que embaçam, reduzem e enganam o olhar para falsear a verdade’”.

“Contudo, antes de julgar os outros, cada um deve se imaginar sob um manto da invisibilidade, com o qual pudesse fazer qualquer coisa sem que ninguém soubesse. Uma análise sincera ensinará muito sobre si mesmo, além de mostrar a necessidade de sermos mais gentis, pacientes e delicados com os outros”.

Canção Estrelada se calou e as pessoas aninhadas em seu jardim se aquietaram. O xamã pediu para que todos se imaginassem sob o manto da invisibilidade. Um exercício valioso e extremamente difícil se praticado com sinceridade. O silêncio foi quebrado mais uma vez pelo mesmo garoto. Ele queria saber como a história terminava. 

O xamã a concluiu: “Logo após o resgate do trovador, o velho chefe sentenciou o guerreiro e o ferreiro à pena de banimento. Eles teriam de ir embora da aldeia e nunca mais voltar. Perguntou se todos estavam de acordo. Não houve nenhuma voz dissonante, salvo do agricultor”. 

“Ele pediu que o chefe revisse o veredito. Alegou já ter havido muito sofrimento. Não era hora de punir, era um bom momento para perdoar ou, ao menos, atenuar a penar. Falou que eles se mostraram arrependidos. Pediu também que levasse em consideração as coisas boas que esses homens tinham feito para a tribo no passado. No mais, lembrou que os dois não foram os únicos a cometerem equívocos naquele caso. Nesse momento os aldeões abaixaram os olhos”. 

“Disse, também, que todos faziam parte da mesma aldeia e deveriam se ver como uma enorme família. Ressaltou que tudo aquilo que tinha acontecido trouxera muito aprendizado à tribo. Todos se tornariam melhores depois da lição. Afinal, a meta primordial da justiça era a educação”. 

“O chefe olhou para o feiticeiro. O bom bruxo arqueou os lábios em leve sorriso. Apesar do sofrimento, o agricultor não tinha perdido a capacidade de amar e de acreditar na beleza da vida. A última prova tinha sido vencida”.

“O chefe converteu a pena de banimento por trabalhos prestados ao bem comum da aldeia pelo período de doze luas. Em seguida, emocionado, declarou saber quem estava pronto para assumir o comando da tribo depois que ele partisse. Apontou para o agricultor. Seriam liderados por um homem sábio, justo e de bom coração. Toda a aldeia aprovou e se sentiu satisfeita. Como rezava a tradição, naquela noite haveria uma grande festa para comemorar a escolha”.

“Naquela mesma noite, enquanto todos comiam, dançavam e cantavam o futuro da aldeia sob um céu salpicado de estrelas, o velho chefe avisou apenas ao feiticeiro. Sem que ninguém mais percebesse, pegou um cobertor e partiu sozinho para o alto de uma montanha próxima. Foi ao encontro do Grande Mistério. Ele estava em paz consigo”. 

O silêncio tornou a imperar, dessa vez no jardim da casa de Canção Estrelada. As pessoas estavam emocionadas; algumas tinham lágrimas nos olhos. Em seguida, aplaudiram. O intrépido menino, pegou a manta na qual estava sentado, a colocou sobre a cabeça, como se estivesse invisível, foi até o xamã e lhe deu um beijo estalado na face. Palmas ainda mais emocionadas.

As pessoas conversaram, repartiram os lanches e, aos poucos, retornaram às suas casas. A sós com o Canção Estrelada, comentei que eu dera sorte, pois chegara no dia de conhecer uma das mais belas histórias que já ouvira. O xamã sorriu em agradecimento e tornou a lembrar: “Uma grande parte dos nosso equívocos e aproximação com a sombras pessoais ocorre por causa de nossas frustrações. Ficamos ressentidos quando não nos julgamos amados como gostaríamos; nos magoamos quando achamos que o mundo não reconhece o valor que acreditamos ter. Uma enorme bobagem. Nada disso tem qualquer importância para a conquista das plenitudes. Então, a vida nos concede um manto de invisibilidade disfarçado em uma situação qualquer para que possamos nos revelar. Não para os outros, mas para nós mesmos. Assim, entender quem somos. Se soubermos aproveitar, será o passo inicial para a transformação e a cura”.

Sim, parte de mim se revela quando estou invisível: todas as vezes quando faço algo que ninguém está me vendo. Falei que era um bom exercício se imaginar portador de um manto da invisibilidade. O xamã concordou, mas fez uma ressalva: “A prática do manto é excelente, porém ela se completa com o exercício do anel. A história de hoje não fala apenas do poder do manto, mas, também, do encanto do anel. Se esforce para ver nos outros aquilo que ninguém vê. Não falo somente sobre o mal; mas, principalmente, a respeito do bem”. 

À tarde, esfriou. Canção Estrelada pegou um manto para se agasalhar. Mostrei o meu anel. Rimos. Ele se sentou à minha frente, acendeu o cachimbo com fornilho de pedra vermelha, baforou algumas vezes e finalizou: “Livre é o indivíduo que não precisa esconder as vontades nem se envergonhar das suas escolhas. Ele consegue manifestar a verdade em si. Isto é pura luz”.

Imagem: Cenk Enver – Dreamstime.com

8 comments

Adélia Maria Milani março 13, 2019 at 11:21 pm

Gratidão! ♡ ♡ ☆ ♡ ☆ ♡ ♡ ♥ ☆

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JEFFERSON março 14, 2019 at 12:05 am

Gratidão Yoskhaz!

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Fernando Machado março 14, 2019 at 7:00 am

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz, sempre me tirando as melhores lagrimas…Namastê

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Leandro Moller março 14, 2019 at 8:32 pm

Excelente Yoskhaz! Mais um contro sensacional! 🙂

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Joane Faustino março 16, 2019 at 8:24 pm

Gratidão ❤️🌹 é
O

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Rafael março 17, 2019 at 3:24 pm

Felicidades amigo del gran espíritu.. a cuánto más muerte(mentira), más vida(verdad)… !!!

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Raul Reis março 19, 2019 at 6:57 am

Incrível! Grato.

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karllus abril 1, 2019 at 11:19 pm

O amigo Fernando Machado comentou sobre “melhores lagrimas” e me acordou para fazer meu primeiro comentário no site! Gratidão Fernando, gratidão yoskhaz, sempre em todos os contos nos extraindo lagrimas e revelando ensinos que ja existindo ou não em nós faltava-nos tomar posse deles!

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