MANUSCRITOS VII

O que o incomoda?

No alto da Pedra Bonita, um maciço de granito debruçado à beira-mar no Rio de Janeiro, de onde é possível avistar vários bairros dessa cidade tão singular e encantadora, existe um vórtex energético propício às reflexões e meditações, importantes para resgatar a clareza da mente e o equilíbrio emocional indispensáveis para que situações cotidianas não sejam causas de aprisionamentos intrínsecos. Lentes e filtros precisam estar sempre limpos e purificados, respectivamente, para que possamos fazer a exata leitura da realidade, sem nos deixar contaminar com vibrações densas que terminam por nos impedir de seguir em frente. Por vezes, as tempestades da existência nos alcançará. Elas servem para mostrar como já conseguimos elaborar nossas experiências. Não há como as evitar; entretanto, o jeito de lidar com elas faz toda a diferença. Ideias e sentimentos, a depender de quais nos envolvemos, podem se tornar leme e velas enfunadas a nos levar adiante ou funcionarem como revolta e motim a nos manter à deriva nos mares das incompreensões pessoais. Somos embarcação e tripulação da nossa própria viagem.

Eu vivia um momento difícil. Intempéries sequenciais me levavam à beira do descontrole. Irritação, impaciência e intolerância eram características que se apresentavam de maneira crescente em minhas reações. Tudo e todos conspiravam contra paz que eu tanto desejava. O mundo parecia me provocar. Deixei o carro no pequeno estacionamento na entrada da rampa destinada aos praticantes de voo-livre e subi a pé o último trecho até o platô da montanha. Tenho por hábito procurar por lugares de poder, como me ensinou Canção Estrelada, todas as vezes que preciso reencontrar a essência que me habita e identifica. Um cantinho em minha casa onde faço as orações matinais, alguns templos e igrejas nos quais me sinto bem, além de locais na natureza onde as energias telúricas se fazem atuantes, são recursos que sempre utilizo. No topo da Pedra Bonita tenho a nítida sensação de estar diante de um portal entre dimensões. Cabendo a mim aproveitar o momento.  Acomodei-me. Abstrai-me da bela e difícil cidade que pulsava no entorno. O olhar se fixou no ponto entre os tons de azul onde o céu se funde ao mar. A melodia do vento e o grasnar das gaivotas compunham a perfeita trilha musical. Fechei os olhos para melhor ouvir todas as vozes da consciência. Educar algumas, seguir as orientações de outras. Todos trazem em si um sábio e um algoz; saber qual escutar costuma ser a diferença entre o bem e o mal. Ascenção e queda.

Não sei precisar quanto tempo se passou. “Conhecer a si mesmo é movimento primordial à evolução”, uma voz se sobrepôs as demais. Uma voz que, embora não me fosse estranha, não era minha. Abri os olhos. Era Cléo, a bruxa. Longilínea, de cabelos negros e vestido colorido esvoaçante ao vento, ela se sentou ao meu lado sem pedir permissão. Sorri. Comentei que nem sempre era simples descobrir o ponto que precisava ser conhecido para melhor elaboração e posterior transformação. Ela balançou a cabeça, como quem diz que entendia sobre o que eu falava, e disse: “Não é simples porque você cobre a verdade com mantos de ideias que tanto justificam a sua inércia e equívocos como o escondem de si mesmo. Longe da essência, distante da verdade. Enquanto fantasiar a realidade com as vestimentas da adequação das pessoas à sua comodidade ou vontade, ora a irritação, ora o desânimo serão as tônicas dos seus dias. Não reclame de nada nem de ninguém. Os fatos e as pessoas são como são; estão fora do seu domínio e controle. A você cabe as escolhas concernentes à sua vida. Nada mais. Os sábios se concentram em aperfeiçoar as próprias ações, os tolos se esgotam na tentativa de controlar os resultados. As suas ações são as únicas ferramentas ao seu alcance; os resultados pertencem a circunstâncias alheias ao seu poder. Aceite isto, então entenderá que a impaciência e a ansiedade são criações suas”. Deu de ombros, como se falasse o óbvio, e acrescentou: “O bom artista não chora aos pés da obra inacabada em si mesmo. Porém, segue em seu constante aprimoramento. Trata-se do trabalho sem fim de um sem número de ciclos existenciais. Uma genuína fonte de alegrias para os sábios; um fardo pesado demais aos tolos”.

Falei que aquelas palavras, embora sensatas, não me ajudavam a compreender os aspectos pessoais que necessitam de elaboração e transformação em minha personalidade e temperamento. Eu precisava os encontrar. A bruxa arqueou os lábios em leve sorriso, como se esperasse por aquele questionamento, e perguntou: “O que o incomoda?”. De pronto, respondi que muitas coisas. Era impossível eu não me aborrecer com vários acontecimentos e o comportamento de algumas pessoas. Cléo voltou a sorrir e disse: “Acabou de descobrir”.

Ao me ver atônito, ela foi generosa e ampliou o raciocínio: “Pessoas ou situações somente têm sobre nós o poder que concedemos a elas. Se possuem é porque elaboramos equivocadas ideias sobre quem são e os autênticos impactos que causam em nossas vidas”. Não concordei. Ponderei que existem pessoas insuportáveis e há fatos abomináveis. A bruxa disse sim com a cabeça e explicou: “Tudo e todos são como são. Os fatos são decorrentes dos movimentos das pessoas que se movem de acordo com as suas capacidades e entendimentos. Inclusive você e eu. Olhe para trás, e nem precisará ir muito longe para ver o quanto poderia ter feito escolhas diferentes e melhores em diversos momentos, mas não conseguiu. Assim é com todos. Não posso exigir de ninguém a perfeição que não tenho para oferecer”. Em seguida, tratou de ressaltar: “O que não pode significar conivência com o erro alheio. Tenha compaixão para entender amorosamente a dificuldade dos outros sem, no entanto, a incentivar. Mostre a possibilidade de diferentes vieses e estradas. Leve luz à escuridão; jamais a alimente as sombras com gestos de impaciência e intolerância”.

Fez uma pausa antes de prosseguir: “Se situações e indivíduos o incomodam, há uma clara sinalização de algo ainda incompreendido em si mesmo. Fatos e pessoas nunca serão sempre ao seu gosto. Não que você deva aprovar atitudes as quais não concorde, mas precisa as elaborar em si para que não tenham a capacidade de furtar a sua paz”. Fez um gesto com as mãos para ressaltar as palavras e disse: “Salvo se você permitir, nada nem ninguém o arrancará do seu eixo de luz. Aprenda a manejar esse poder. Isso o fará usar as tempestades ao seu favor”.

Argumentei que ninguém deseja pelas tempestades. A bruxa franziu as sobrancelhas e me corrigiu: “Não foi isso que falei. Disse que problemas, em diferentes níveis de dificuldades, são inerentes a todos. Contudo, podem funcionar como escolas ou prisões. Trata-se uma escolha pessoal. Eis o poder das escolhas ao lidar com tudo e com todos. Cabe a cada um encontrar o carcereiro ou o mestre por trás de cada incômodo, aborrecimento ou dificuldade”.

Na prática a teoria não é simples, repeti o discurso. Cléo abriu os braços como quem diz que eu insistia em não sair do lugar e explicou: “Só há dificuldade quando a consciência não se apresenta nua diante do espelho da verdade. Enquanto a vestir com ideias que adiam a reforma de algum canto ainda mal construído em si mesmo, viverá entre tristezas e irritações desnecessárias”. Apontou o dedo para a minha cabeça e disse: “Enquanto teimar em controlar os resultados e os acontecimentos, você sofrerá. Ao tentar interferir para que as pessoas escolham de acordo com o seu entendimento, você sofrerá. Viva pela alegria da sua melhor ação; apenas isto lhe pertence. Eis a raiz da leveza e da liberdade. Tudo mais, embora esteja ao seu redor e possa o afetar de alguma maneira, entenda que barcos que possuem lastro e leme, têm equilíbrio e direção para atravessar as piores borrascas. Mais ainda, saberão aproveitar os ventos impetuosos para alcançar distâncias e destinos até então inimagináveis”.

Questionei como ter lastro e leme, equilíbrio e direção. A bruxa respondeu de pronto: “Verdade e virtudes”. Sem que eu precisasse indagar, ela acrescentou: “A verdade é a última fronteira alcançada pela sua consciência até esse momento. Jamais abdique dela em troca de privilégios, comodidade ou por medo. Não se negocia o inegociável. Todavia, jamais esqueça que a verdade, como tudo mais no universo, está em constante expansão. Fique atento para não desperdiçar a oportunidade e impedir o seu crescimento por atos de mera teimosia, orgulho ou vaidade”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Autênticos instrumentos de amor e sabedoria, as virtudes são ferramentas de navegação indispensáveis aos destinos de luz. Sem humildade, simplicidade, compaixão, sinceridade, mansidão, firmeza, delicadeza, coragem, entre outras mais, o viajante será tragado pelas intempéries da existência. Inexoravelmente”.

Argumentei que aquele raciocínio tinha uma falha. Falei que a felicidade me parecia impossível ao ver tanta miséria e desgraça por todos os lados. Cléo tornou a arquear os lábios em suave sorriso, como se também esperasse por aquele questionamento, e esclareceu: “Esse planeta é uma escola de excelência para a formação de muitos sábios; colégio onde grandes mestres já lecionaram. No entanto, possui método de ensino inusitado, no qual poucos alunos estão afeitos. O erro é a forja do aprendizado. Nunca na intenção de punir, mas sempre com o objetivo de usar os melhores sentimentos no aperfeiçoamento constante à clareza dos pensamentos. Percepção e sensibilidade se tornam mais refinadas após cada lição transmutada em si para, em seguida, restar compartilhada no mundo através de um novo jeito de ser e viver. Sentir melhor para compreender mais; amar para aprimorar são genuínos conceitos que servem para mostrar e moldar a verdade. Não apenas na mente, mas também no coração. Assim, aos poucos, à medida que solo se torna fértil, florescerá o sábio ainda em semente dentro de todos nós”.

Lembrei a ela que naquela semana, centenas de milhares de pessoas tentaram atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa para escapar das condições deploráveis existentes na África. Durante a Era Colonial, aquele continente sugou economicamente este; uma conta ainda à espera de quitação. Entretanto, quase todas as portas da solidariedade se mantiveram fechadas. Aquilo me incomodava. Cléo balançou a cabeça em apoio e pontuou: “Podemos, e devemos, sentir a dor do mundo para que de algum jeito, dentro das possibilidades, possamos atenuar necessidades e sofrimentos alheios. Jamais sofrer a dor a alheia. Isto é fator de desequilíbrio e colabora para que a escuridão se espraie. A Lei do Carma, através dos múltiplos ciclos reencarnatórios, é um método eficaz de justiça e aprendizado. Acontecimentos e acasos são instrumentos do carma. Se errou, terá de entender e refazer. Os alunos são tratados com a doçura e a firmeza adequadas às suas disposições em se transformar e evoluir. Em amar mais e melhor”. Fez uma pausa como quem procura as melhores palavras e explicou: “Quem garante que os africanos que hoje anseiam desesperados para sair de seus países não são os europeus colonialistas de outrora que enriqueceram às custas da miséria africana? Agora desejam retornar à casa, mas são impedidos de entrar. Têm de viver nas condições complicadas que eles próprios criaram no passado. Não tiveram a menor responsabilidade e nenhum amor. Precisam sentir para entender. Somente o amor poderá abrir muitas das portas do Caminho. Como disse um antigo sábio, todo o poder reside na mente, mas longe do coração jamais conseguirei prosseguir para além de quem eu sou”.  

Perguntei se os europeus estavam certos em fechar as portas para os africanos. A bruxa cerrou as feições e me corrigiu: “Não falei isso. Ao contrário, já há sofrimento demais. Os povos da Europa estão diante de uma maravilhosa oportunidade de exercitarem a empatia e a solidariedade, duas valiosas virtudes, ao se esforçarem no acolhimento desses irmãos que tanto sofrem. Assim como, ao mesmo tempo, se empenharem para estruturar a África economicamente. Que haja percepção e sensibilidade para entenderem a equação evolutiva que lhes foi proposta por essa incrível escola. Sem a devida solução o ciclo se repetirá. Nenhuma lição será esquecida; ninguém ficará para trás”.

Questionei se as aquelas palavras eram hipótese ou realidade. Cléo não me respondeu.

A bruxa retornou ao cerne da conversa: “Se prestar atenção compreenderá que os acontecimentos não causam nenhuma perturbação; a maneira como os interpretamos é que geram todos os incômodos. Nossas experiências são elaboradas através das ideias que construímos sobre quem somos e como o mundo deveria funcionar. Isto acaba sendo determinante na leitura que fazemos de cada situação. Se algo ou alguém incomoda significa que há uma ideia mal construída em mim; então, aprendo e me transformo. Esse conceito não pode servir para me tornar conivente com eventuais equívocos alheios, o que seria um pacto sombrio como o erro, mas para impedir que me atinjam a ponto de apagar a minha luz, como acontece nas vezes que me deixo envolver em irritação ou tristeza. Assim, todas as situações vividas se tornam uma escola ou uma prisão, a depender de como elaboro os acontecimentos, quaisquer que sejam”. Cléo fez uma pausa antes de concluir o raciocínio: “Quando fico irritada, triste ou aborrecida, ou me sinto impedida por algo ou alguém, a responsabilidade não é de ninguém, salvo de mim mesma que fui incapaz de conquistar o melhor olhar, de construir a ideia luminosa a me mostrar o que desconheço sobre quem sou. A capacidade de ter o melhor entendimento e extrair o devido aprendizado de cada situação é a genuína fonte de felicidade. Eis o poder da vida”.

Decidi desabafar. Muitas coisas estavam me chateando naqueles dias. A que mais me incomodava era a traição da minha namorada. Tínhamos nos conhecido havia pouco mais de seis meses em um evento para agências de publicidade. Viajávamos e nos divertíamos bastante. Gostávamos de rir juntos. Ela nunca expressara qualquer desagrado quanto à nossa relação. Há poucos dias eu soubera que ela mantinha um relacionamento paralelo com um amigo meu. Era uma dupla traição. Nada falei a ambos. O meu ódio e decepção não cabiam em palavras. Afastei-me. Não conseguia também frequentar os mesmos lugares onde sempre encontrava amigos em comum. Eu sentia vergonha, confessei. Com o tom sereno na voz, Cléo me questionou: “O que você fez de errado?”. Nada, respondi honestamente. Ela prosseguiu: “Então, por que a vergonha?”. Eu não soube responder. Ou melhor, sabia, mas custei a admitir. Eu temia a ironia, o escárnio, o sarcasmo vulgar típico dessas situações. Existe uma ideia que nos acompanha desde tempos ancestrais de que a pessoa traída é inferior, incompetente e incapaz, sendo merecedora de todo achincalhe. Assim acontece na maioria das vezes. Claro, que quanto maior for o orgulho, mais humilhado o indivíduo se sentirá. As sombras nos vendem a ilusão de poder, quando, em verdade, nos desequilibram e fragilizam aos sermos postos à prova. A pessoa humilde, simples e compassiva será sempre alguém equilibrado e forte, colocando-se em lugar onde a humilhação jamais a alcançará, quaisquer que sejam os fatos. Eu sabia disso tudo, mas ignorava como fazer para sair do labirinto cujas paredes estavam erguidas com a argamassa da mágoa e da vergonha.

A bruxa me ajudou: “A traição, em qualquer das suas modalidades, revela a falta de capacidade do traidor em manter um compromisso. Fala da ausência de honestidade, a virtude no trato da verdade com os outros, um dos pilares das relações justas. Porquanto, prósperas. Nem todos estão prontos para lidar com a verdade perante si mesmo, mormente quando se trata de desejos, vaidades, comodidades e privilégios”. Olhou-me com seriedade e disse: “Ninguém se torna menor porque confiou em alguém. Usamos as métricas e parâmetros com os quais nos medimos. Longos ou curtos, cada um tem os seus. A confiança é uma virtude ligada à pureza, pois demonstra que os elementos daquela relação tem raiz na luz de quem confia. Perde quem não aproveitou a oportunidade em se deixar iluminar e preferiu se mover pela escuridão”.

“No mais, faça valer a sua compaixão, a virtude de compreender amorosamente a dificuldade alheia para que possa perdoar. Muitos não sabem fazer diferente e melhor, outros ainda não conseguem seguir na luz. O perdão, a arte de lembrar dos acontecimentos sem nenhum ressentimento, o libertará do passado, fazendo da prisão de ontem a escola de hoje”.

E prosseguiu: “Você nada perdeu. Nem ela nem ele se mostraram pessoas adequadas a caminhar ao seu lado. Quanto àqueles que gostam de diminuir os outros diante de momentos tão delicados com comentários vulgares, são ainda mais toscos. Egos imaturos em almas adormecidas. Deixe-os com as próprias maldades e siga em frente. Outros como você o esperam adiante. Não duvide do Caminho”.

Franziu as sobrancelhas e acrescentou: “Agora, descontrua a ideia obsoleta com a qual sempre tratou a traição. Permita que um novo olhar erga uma postura diferente e segura. Você ofereceu o seu melhor; a ação correta. Não permita que a atitude de ninguém o faça reagir aquém de quem você pode ser. Só há derrota quando deixamos que nossa luz se apague. Se outros agiram movido pelas sombras, não é problema seu. Não deixe que a escuridão deles o alcance. A verdade e as virtudes com as quais você se movimenta são o seu lastro e leme. Atenha-se a esses elementos. Não lhe faltarão força, equilíbrio nem direção. Entenda que a tempestade foi propícia, pois o fez rever uma rota que, se mantida por mais tempo, causaria danos maiores. Servirá também para intensificar o poder da sua luz. Agradeça. E sorria. A alegria é a virtude de quem se mostra capaz de encontrar o lado bom de todas as situações. Aqueles que conseguem são os autênticos aprendizes da vida. Os demais, ainda estão aprisionados às suas próprias incompreensões”.

Anoitecia. A bruxa fez um gesto para eu fechar os olhos. Compreendi que era momento de desconstruir ideias ultrapassadas que apenas serviam para alimentar o meu sofrimento. Sem este movimento não haveria espaço para erguer um novo entendimento capaz de me libertar de mim mesmo. Todo sofrimento é uma construção emocional equivocada. Ouvi muitas vozes conversando comigo. Somos muitos em um. Algumas ainda insistiam em vingança, mesmo que sem violência, como são os desejos inconfessáveis, comuns a essas situações, para que logo à frente eles, a namorada e o amigo de então, também sofressem ou precisassem de mim por algum motivo. Casos em que a generosidade é uma espécie disfarçada de vingança, na qual não tenho o verdadeiro intuito de ser bom, mas de mostrar o que eles supostamente perderam por suas deslealdades. Alimentar essa ideia equivale a escolher uma masmorra para morar por séculos. Expliquei as essas vozes que eu deveria seguir em frente, sem me ater a quem eles eram, aos motivos que os levaram a agir daquela maneira nem o que fariam dali em diante. O mal pertence ao remetente; cabe ao destinatário não se aprisionar a ele através do ódio, da tristeza, do aborrecimento, do incomodo nem da estagnação de não se mover na luz e avançar. Quem os outros são jamais pode ter o poder de me destruir. Isto só será possível se eu não for capaz de ter compaixão e perdoar. Se me faltar humildade e simplicidade para insistir em subjugar os outros ao invés de ir além de quem eu sou. Não basta o movimento, se faz indispensável entender o sentido e a direção para onde me mover.

Tenho todo poder sobre quem sou; nenhum poder sobre mais ninguém. As minhas prisões existenciais são representadas por tudo e todos que me incomodam. Enquanto existirem em mim, não serei genuinamente livre. Os tolos querem modificar as pessoas e dominar os resultados; os sábios transformam a si mesmo como movimento indispensável à luz. Os toscos têm estilingues; os mestres aprendem a voar para além do alcance das pedras.

Fui ao encontro do meu incômodo, a vergonha. Uma sensação oriunda da desonra. Embora a sociedade trate de modo jocoso o traído e, em alguns casos, até mesmo exaltem os traidores, a honra tem raiz na dignidade, o comportamento daqueles que tratam a todos do jeito como gostariam de ser tratados. Se quero o bem, me cabe oferecer apenas o bem. Nada aquém disto. Se por todo tempo eu pautara as minhas ações em sinceridade, honestidade, delicadeza e pureza, a desonra não era minha. Logo, a vergonha também não. Estavam entregando-a à pessoa errada. Não me cabia carregar o fardo alheio. Em análise mais profunda, o traidor estará sempre traindo a si mesmo ao negar a própria honra e dignidade; porquanto, apagando a sua luz. Eu não tinha motivo para recear em olhar nos olhos de quem quer que fosse. Verdade e virtudes tinham sido meu lastro e leme até aqui. Elas manteriam a minha direção, equilíbrio e força. Quem se agarra aos padrões de conflito e dor fica retido em lamentos nos Portais do Caminho. Eu estava disposto a manter o firme propósito de seguir em frente. Potes de mel me aguardavam.

Fui envolvido por uma autêntica sensação de ânimo e serenidade. Um poder alicerçado em suavidade e clareza. Ninguém consegue nos impedir de caminhar quando alinhamos a verdade às virtudes. Retornei da imersão quando um raio de sol me acariciou o rosto. Amanhecia. Eu tinha atravessado a noite à procura de mim mesmo. Ao longe, Cléo rodopiava junto às gaivotas. Seu vestido esvoaçante pareciam asas. Típicas do momento em que a manhã encerra a noite, me encantei por alguns instantes com as cores impronunciáveis do céu. Quando voltei o olhar, a bruxa tinha desaparecido. As gaivotas voavam em direção à imensidão do mar.   

5 comments

Lene agosto 3, 2022 at 11:32 pm

Já tem alguns anos que acompanho os seus textos. Me identifico com as mesmas dificuldades e sempre que estou presenciando elas tento ao máximo lembrar do que aprendo por aqui, nem sempre tenho sucesso e as vezes acabo me afastando. Mas o fato é que sempre volto, porque apesar da demora em aprender as lições sempre lembro que tudo aqui tem sentido com o vivo.

Obrigada por complementar meu aprendizado espiritual.

Tinha sua página como único refúgio, mas de uns tempos pra cá, assim como você e suas fontes, O Velho mais antigo da Ordem, Loureiro, Xamã e Litzu, senti a necessidade de buscar outras também, e estou começando a experimentar a diversidade do sagrado.

Sinto que estou amadurecendo, alcançando portais, com você tendo grande peso.

Obrigada mais uma vez!

Luz e Proteção a todos nós…

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SCHWEITZER agosto 5, 2022 at 8:00 pm

Um dos melhores textos que já lá li aqui.

Obrigado.

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Fernando Machado agosto 14, 2022 at 8:32 pm

A mais profunda e sem fim gratidão Amado irmão das 🌟 , sem fim…

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Marcel Andrade agosto 14, 2022 at 11:44 pm

Somos embarcação e tripulação da nossa própria viagem.

Gratidão sem fim

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Jessica Perri agosto 15, 2022 at 4:00 am

Abri o texto e ouvi gaivotas voando no céu, finalizando o texto me arrepiei e soube que a sincronia de hoje foi perfeita !

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