MANUSCRITOS VI

Todas as letras não formam uma palavra

Uma pequena cidade em Minas Gerais. Um circo mambembe. A lona amarela e azul me remetia à infância, quando assisti muitos espetáculos circenses levado pelos meus avós. Fascinado pela magia do circo, vivi momentos de puro encantamento. Impossível não sorrir com as doces lembranças que alimentaram o meu imaginário infantil. O circo havia ocupado um terreno da prefeitura e aguardava o final de semana para estrear. Era um período no qual eu andava cabisbaixo e desanimado. A alegria, tão comum ao meu temperamento, tinha desaparecido sem motivo aparente. A vida estava chata e sem graça. Nada de bom ou de interessante acontecia. Decidi tirar uma semana de folga para visitar um velho amigo que, cansado da advocacia e da rotina das metrópoles, decidira se dedicar à criação de gado leiteiro. Talvez eu encontrasse a inspiração que me faltava. Ao ver a lona montada, não resisti. Estacionei o carro. As barracas de pipoca e de algodão doce, embora vazias, já estavam instaladas. Entrei. Não havia ninguém. Tomado por um rompante de ousadia, andei até o centro do picadeiro, onde o mastro central sustentava toda a estrutura que envolvia também a arquibancada formada por tábuas de madeira, sem qualquer sofisticação. Por alguns instantes, fechei os olhos e, no centro do picadeiro, pude imaginar alguns dos muitos sonhos que tive quando criança, nos quais eu era o mágico que arrancava suspiros da plateia surpreendendo com o imponderável. Fui o trapezista que fazia o público prender a respiração por fração de segundo na espera de alcançar o outro trapézio que balançava em movimento sincronizado ao meu. Ouvi os aplausos entusiasmados. Sorri. Foi quando uma voz grave e alta, como de um barítono de ópera, me trouxe de volta à realidade: “Respeitável público! Sejam bem-vindos ao Grande Circo Siberiano!”. Um palhaço desceu pela arquibancada em minha direção. O rosto coberto com maquiagem excessiva e o sorriso largo feito à tinta me impediam de ler a sua fisionomia. A roupa era colorida e desconjuntada; usava luvas e os sapatos eram enormes. Tinha um gestual ensaiado que insinuava inocência e falta de jeito. Trazia nas mãos uma caixa. Aproximou-se e perguntou se eu sabia o que havia dentro dela. Fiz não com a cabeça. Ele revelou: “O seu maior desejo”. 

O palhaço me avisou: “Não valem desejos genéricos, como o fim das guerras ou da fome; a cura de todas as doenças ou o sorriso em todas as pessoas. Também não trato de enfermidades específicas nem ressuscito os mortos. Refiro-me a um desejo daqueles quase inalcançáveis que irá beneficiar apenas a você. Não pode ser algo imaterial como o amor, qualquer outra virtude ou plenitude. É algo material e de uso pessoal. Todos temos direitos a pequenos e grandes prazeres. Falo de um prazer típico às revistas de celebridades”. Como era um palhaço, decidi entrar na brincadeira e perguntei se ele se referia a uma escolha bem egoísta. Ele disse que sim e acrescentou: “Serve uma tentação nunca antes revelada a ninguém. Nem mesmo a você”. 

Por algum motivo que naquele momento eu não consegui fazer a exata leitura, senti algum desconforto, como se a brincadeira tivesse perdido a graça. Ou não fosse uma brincadeira. Era algo bem mais sério. Estranho palhaço.

Antes que eu me manifestasse, ele anunciou: “Um Rolex, uma Ferrari, um helicóptero, um iate, uma cobertura à beira-mar ou uma mansão com piscina. Qualquer coisa que desejar”. Em seguida fez um aviso: “Ao conceder o seu desejo mais inconfessável, irei lhe tomar algo que você possui. Esta escolha é minha. Mas não se preocupe, será somente um pequeno e simples prazer de pouco valor. Algo que você costuma usufruir desde sempre, passará a não mais ter acesso. Nada mais do que isto”.

Questionei o que me seria tomado. O palhaço foi honesto: “Depende do desejo. Para qualquer um desse que acabei de elencar, você não poderá mais assistir, da janela do seu pequeno apartamento, o sol despontar todas as manhãs por trás da Pedra da Gávea, enquanto bebe café em copo de botequim barato e escreve os seus livros repletos de filosofia que em nada ajudam as pessoas a pagarem as suas contas”. Fez uma pausa e ponderou: “Nada que uma penthousecom vista para o Central Park ou uma vila na Toscana não o compense com muitas sobras. Faço ofertas bem generosas”.

Ao me perceber sem palavra. O palhaço seguiu com a sua proposta: “A escolha pode recair sobre uma deliciosa viagem ao redor do mundo durante anos a fio, visitando todas as cidades que escolher, jantando nos restaurantes dos mais afamados chefs de cozinha, conhecendo museus, palácios e monumentos construídos pela arte humana através dos séculos. Nada faltará”. Eu quis saber o preço daquele sonho encantador. Sincero, o palhaço alertou: “Não poderá mais abraçar as suas filhas. Apenas isto”. Antes que eu pudesse me manifestar em revolta, ele ponderou: “Nada de mal ou ruim acontecerá com elas, eu prometo. Elas seguirão as suas vidas, serão felizes e você conseguirá falar com elas por telefone e ligações de vídeo sempre que quiser. Mas os desencontros o impedirão de encontrá-las pessoalmente para trocarem um abraço. Apenas isto”. Em seguida, argumentou: “Nada que um almoço na Osteria Francescana ou um café no D’Orsay, após apreciar as telas de Van Gogh, não compense e o preencha de prazer. Depois, poderá ir de Paris a Veneza em um vagão exclusivo do Orient Express. Uma vida tão interessante que você não sentirá falta de qualquer mísero abraço”.  

As palavras do palhaço me chegavam como flechas. Não deveriam, mas me atingiam. Ele continuou: “Posso oferecer algumas coisas impossíveis para muitos. Sabe aquela linda e famosa atriz que estrelou um filme de grande sucesso, povoando os seus sonhos de adolescência? Ela pode se tornar uma namorada apaixonada, se este for o seu desejo. Existe também a possibilidade de fazer com que aquele indivíduo que causou sua maior mágoa, se ajoelhe na sua frente e lhe peça perdão. Dando-lhe o direito de determinar a pena aplicada ao infeliz”. Esperei ele falar sobre o pouco que me seria retirado. Como se lesse os meus pensamentos, propôs: “Caso opte pelo namoro com a atriz de Hollywood, a Denise irá desaparecer da sua vida e da sua memória. Será como se nunca tivessem se conhecido”. Fez uma pausa para eu considerar a oferta e partiu para a seguinte: “O pedido de perdão da pessoa que mais o magoou irá impedir você de pedir perdão por seus erros a quem quer que seja. Deverá levar consigo todos os seus equívocos sem nunca se permitir qualquer arrependimento ou desfazer o mal que causou a alguém”. Deu de ombros e finalizou com um comentário de aparente inocência: “Continue a empurrar para debaixo do tapete. Ninguém irá se importar, nem mesmo você terá tempo para lembrar de quem você verdadeiramente é diante de tanta coisa empolgante à sua espera. O glamour e os prazeres servem muito bem a isto”. 

Eu me sentia como acuado em um beco sem saída. Apesar de eu nada ter falado, o palhaço disse: “Quem o acua não sou eu, mas a sua consciência”. Rodopiou como encenação do seu espetáculo e me lembrou: “Você pode dizer sim a qualquer desses desejos. Ou não a todos eles. Sem esquecer que para cada grande desejo perderá somente um pequeníssimo e quase insignificante pedaço da sua vida. Sem dúvida uma oferta tentadora, um imperdível negócio”. Foi a minha vez de perguntar: “Quem é você, palhaço?”.

Ele fez uma mesura como se estivesse se apresentando e falou: “Sou apenas um palhaço, aquele que com seu jeito tosco e atabalhoado de se movimentar, desajeitado no vestir, simples no pensar e inocente ao falar. Desde sempre, revelamos as verdades aos reis e poderosos como se não passassem de anedotas incoerentes ou como frutos de uma mente ignorante. Mostramos as fragilidades dos orgulhosos e as máscaras dos vaidosos, sem que se ofendam, pois os palhaços são sujeitos tolos que têm apenas a função de fazê-los rir. Com isso, revelamos os subterfúgios de quem se esconde da própria essência e se nega a ver a realidade. A olhos distraidos, não somos nada mais do que bufões desprezíveis no exercício de uma função menor. As verdades contidas em nossas piadas são aceitas como incompreensões comuns ditas pelos ingênuos e, por serem meras banalidades, sequer merecem qualquer punição. Somos os bobos shakespearianos que revelam a verdade como jardineiros que lançam sementes em solos áridos a espera da chuva que um dia as farão germinar”.

Argumentei com ele: “Não foi isso que fez comigo. Você me ofereceu uma oferta tentadora. Nada mais”. O palhaço abriu os braços como quem fala o óbvio e ponderou: “Ledo engano, amigo. Foi exatamente isso que fiz”. Deu uma pausa para eu me preparar e prosseguiu: “Mostrei uma verdade que você, assim como a maioria das pessoas, se nega a aceitar: você tem tudo que precisa para ser feliz. Mas não consegue pelo fato de estar tão preocupado com o aquilo que ainda não tem, que se torna incapaz de usufruir das maravilhas que já possui em mãos”.

Falei que ele estava errado. Argumentei que não havia nada de errado em desejar uma vida mais empolgante e animada. O palhaço questionou: “Então, por que ainda não aceitou a minha oferta?”. Em seguida se justificou: “Estou oferecendo bem mais do que estou cobrando”. Olhou-me com seriedade e me instigou: “Vamos, basta pedir. Estou ao dispor do seu desejo mais inconfessável. Viva o seu maior prazer e seja feliz!”.

Senti o circo girar ao meu redor. Do centro do picadeiro tive a sensação de que a arquibancada era um carrossel em alta velocidade. Segurei-me no mastro central para não cair. Eu não conseguia pedir. O palhaço me olhava sem compaixão. Ele provocou: “Até quando vai tropeçar nas próprias pernas?”. Falei que era apenas um mal-estar súbito. Logo passaria. O palhaço me corrigiu o entendimento: “Não é deste desequilíbrio a que refiro. Falo do fato de se desejar todas as letras quando não se sabe qual palavra escrever”.

O carrossel girava em sentido horário. Como se fosse uma tela bizarra, apareciam as imagens dos meus maiores desejos. Bens materiais de todas as espécies, tais como iates, mansões, viagens a lugares luxuosos. Assim, como romances de cinema e pessoas que me magoaram profundamente, agora de joelhos, me pedindo perdão. Era a hora de ter uma vida de sonhos, era momento do ajuste de contas, pensei.

O palhaço fez um gesto com as mãos e a arquibancada parou de girar, sumindo com as imagens. Outro gesto. A arquibancada começou a girar em sentido contrário. As imagens que começaram a surgir eram das coisas que eu poderia perder. O sol nascente através da janela do pequeno apartamento onde moro, enquanto escrevo os livros e me embalo em doses de café. O sorriso inesquecível da Denise e o toque das suas mãos que eu nunca mais teria. Falaria com as minhas filhas, mas não mais poderíamos nos abraçar, passearmos de braços dados como tanto gostamos de fazer. Além de outras coisas bem simples, como nos sentarmos no banco de uma praça qualquer para somente conversar sobre as coisas da vida. Eu não queria ficar sem nenhuma dessas pequenas grandes coisas. Eram muito valiosas para mim.

Outro gesto do palhaço e o carrossel parou. Ele estendeu os braços com a caixa nas mãos e disse: “Abra e pegue o seu maior desejo”. Eu sorri para o palhaço; eu sorri para mim. Nunca antes eu estivera envolvido em tanta certeza. As ideias eram claras e fluídas quando falei: “Não há nada dentro desta caixa que me seja mais valioso do que aquilo que já tenho fora dela. Não existe nada que me possam oferecer que seja mais precioso do que as riquezas que já possuo”. Dei uma pausa e disse: “Nada que não seja do coração vale mais do que aquilo que anima o meu coração”. Fui sincero: “Agradeço por você me lembrar disto. Prometo nunca mais esquecer”. Tornei a pausar e disse: “Ao seu jeito, você me devolveu os meus melhores desejos. Eles sempre estiveram comigo. Eu havia esquecido de como são importantes para mim”. 

O palhaço comentou: “Todos temos nas mãos as alegrias dos dias e os prazeres da vida. Poucos se dão conta que a alegria está nas coisas simples do cotidiano, aquelas que conversam com os nossos corações. A alegria encontra prazer nas coisas que falam ao próprio coração e dialogam com o coração de outras pessoas. Não há prazer maior. Tudo mais pode até ser agradável, mas não é indispensável. Todas as letras não formam uma palavra. Não se faz necessário ter todas elas. Palavras como amor e paz se escrevem com três ou quatro letras apenas”. 

Fechou os olhos como se lembrasse de dias distantes e falou: “Não raro, quando não entendemos o valor daquilo que vivemos, a vida nos toma para que possamos sentir falta do que sempre tivemos nas mãos, mas nunca atribuímos a verdadeira importância. Não é maldade; é ensinamento. Precisaremos dessa lição mais à frente”. Em seguida, concluiu: “Nada falta a ninguém, salvo encontrar no próprio coração as alegrias dos dias e os prazeres da vida. Se não as têm, significa que ainda não entendeu a busca”. 

O palhaço fez uma mesura exagerada, avisou que o espetáculo chegara ao fim. Sem mais palavra, me deixou sozinho no picadeiro. Nada me faltava. 

11 comments

Terumi dezembro 1, 2020 at 10:26 pm

Gratidão! 🙏

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Fernando Cesar Machado dezembro 2, 2020 at 11:04 am

Gratidão profunda e sem fim…

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Leandro Moller dezembro 2, 2020 at 3:58 pm

Legal!!

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Denis dezembro 4, 2020 at 2:10 pm

Precisava muito ler isso hoje! Gratidao.

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Brida Sidronio dezembro 6, 2020 at 11:58 am

Maravilhoso e inspirador como sempre!
De longe meu autor preferido, muito obrigada

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Viviane Barbosa dezembro 16, 2020 at 10:36 pm

Gente que trem lindooo foi esse texto.

Eu ameiii de coração.

Gratidão infinita por esse carinho conosco.

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Lazí dezembro 30, 2020 at 9:21 am

🌹

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Maria da Gloria Mataveli janeiro 11, 2021 at 9:27 pm

🧡💛💚❤💜 sempre seus textos nos pega nas esquinas de nossa propria mente…gratidão por tantos lembretes que você sempre coloca na minhas janelas da alma…

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Anna Dutra janeiro 12, 2021 at 9:55 am

Namastê

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Haian janeiro 13, 2021 at 10:43 pm

Não há caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho. Gratidão

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Eduardo Bessa março 6, 2021 at 8:53 am

Muito obrigado pela oportunidade e beber dessa fonte, onde aqui posso visitar meu velho eu e seguir a jornada. Renovando e reencontrando a mim mesmo e trazendo a tona o que é valor de verdade.

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