Ainda era madrugada quando o trem me deixou na estação. Depois de quase dois anos, eu tornava a andar pelas estreitas e sinuosas ruas com calçamento secular de pedras. Era para eu estar alegre por voltar à charmosa cidadezinha situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro. O casamento de uma das netas de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, me animou a suspender os afazeres profissionais. O trabalho é muito importante pelo aperfeiçoamento espiritual que proporciona, mas as amizades também são valiosas pela mesma razão. Ambos são sagrados quando nos tornam pessoas melhores; do contrário, se mantêm apenas na esfera mundana. Cancelei reuniões e projetos cujos adiamentos não trariam prejuízos aos clientes. Os demais compromissos, descentralizei as decisões para a equipe com a qual eu trabalhava havia bastante tempo e nutria total confiança. Há que se equilibrar as necessidades de sobrevivência com as de transcendência. Em verdade, uma deve restar contida na outra. “A verticalização da vida ganha sentido quando em sintonia com a horizontalidade da existência. As duas hastes da cruz que se encontram no ponto central. Aplicar os valores do céu no mundo é alinhar o ego à alma. A perfeita harmonia não consiste em somente fazer canções para as estrelas que iluminam as noites escuras, tampouco em apenas construir os barcos seguros indispensáveis à travessia em mares revoltos, mas usar aquelas para orientar a navegação destes”, me disse certa vez o Velho, o monge mais antigo da Ordem.
As lâmpadas tênues dos centenários lampiões de ferro se projetavam nas poças formadas pela chuva da madrugada. O barulho dos meus passos era abafado pelo uivo do vento que parecia compor uma sinfonia ao atravessar as ruas como se fosse o sopro em uma flauta. Um cenário cinematográfico desperdiçado em razão de um desentendimento. Perdemos a beleza do mundo todas as vezes que fechamos a janela da alma. O fato de eu estar desconfortável era por causa de uma ligação feita pelo diretor de uma grande empresa. Ele se mostrou insatisfeito com as decisões que eu tomara antes de viajar. Era a única conta grande da agência, todas as demais eram de baixo orçamento. Ele ameaçava rescindir o contrato, caso eu não retornasse imediatamente para assumir de perto o controle da campanha. De nada valeram os argumentos de que eu estaria em contato com a equipe responsável pela criação e elaboração das propagandas, embora, fiz questão de esclarecer, apenas se houvesse necessidade. Além de confiar no pessoal que trabalhava comigo, eu estava sem tirar férias havia muito tempo. Precisava descansar o corpo que se tenciona diante das responsabilidades, ocupar a mente com outros assuntos para que possa continuar a se expandir e alimentar o espírito com fontes diversas do cotidiano e da rotina, que mesmo sendo boas e claras, não devem ser as únicas.
Fiquei alegre com o convite do Loureiro. Aproveitaria para fazer uma visita ao mosteiro para encontrar o Velho. Eu sentia saudades do sapateiro e do monge. O casamento foi lindo. Os noivos pareciam encantados com tamanha felicidade e amor. A igreja estava lotada, repleta de flores e iluminada por centenas de velas. Vi o Velho sentado do lado oposto de onde eu estava. De longe, ele acenou e sorriu para mim. Ao final da bela cerimônia, cumprimentei os noivos e troquei um forte abraço com Loureiro. Não foi possível trocarmos mais do que poucas palavras. Ele foi bastante requisitado pelos muitos convidados, uma situação já esperada. Procurei pelo Velho, mas não o encontrei. Fui informado que ele retornara ao mosteiro, no alto da montanha próxima à cidade, logo após a cerimônia. Fiquei preocupado. No dia seguinte, bem cedo, pedi que um táxi me levasse até lá. Quando cheguei, fiquei contente em saber que a sua saúde estava ótima. Contudo, não poderíamos nos ater às longas conversas, como costumávamos fazer, pois, naquele dia, ele começaria a ministrar um simpósio sobre o Evangelho de Tomé. Era restrito aos monges considerados iniciados, denominação usada para aqueles que tinham se aprofundado nos estudos em um ponto no qual eu ainda não havia atingido.
Eu conhecia um pouco sobre os evangelhos. Existem mais de quarenta, escritos desde os primórdios da era cristã, período no qual foram semeadas as ideias revolucionárias fundamentadas no amor e nas demais virtudes, como instrumentos de transformação e evolução. Uma época cujo os seguidores, entre os quais os apóstolos, se autodenominavam Os Homens do Caminho. Consta na tradição, foi Paulo quem cunhou o termo Cristianismo por considerá-lo mais adequado à causa. A Igreja Católica reconhece apenas quatro evangelhos como sendo canônicos, ou seja, que se adequam as regras e diretrizes que estabelece como padrão ao conhecimento da verdade divina ou cósmica. Os de Mateus, Marcos e Lucas são considerados sinópticos por narrarem diversos fatos da vida humana de Jesus em uma mesma sequência e de modo similar. O quarto, de João, é mais poético e de uma espiritualidade delicada, mais ligado à essência crística da passagem de Jesus do que aos acontecimentos mundanos vividos por ele. Gosto de salientar o parágrafo inicial do Livro de João, escrito originalmente em grego. Nele, a palavra Logos, foi traduzida como Verbo. Não está errada, mas a mesma palavra aceita outras interpretações e poderia ter sido vertida com o significado de Consciência. Então, a belíssima abertura desse Evangelho se elevaria a patamares mais altos de compreensão em nova e esotérica leitura: “No princípio era a Consciência, e a Consciência estava junto de Deus e a Consciência era Deus. Ela estava no princípio junto de Deus”. Vale uma boa reflexão. A amplitude do entendimento será sempre pessoal.
Os demais evangelhos são considerados apócrifos. Palavra também originária do grego, apócrifo significa oculto, misterioso, ainda que em nosso idioma caibam interpretações depreciativas. Destes, os livros atribuídos a Bartolomeu e Tomé, entre alguns outros, são considerados gnósticos pelo altíssimo teor espiritual e diretrizes que oferecem ao conhecimento da verdade cósmica. Como nos demais, possuem uma linguagem cifrada. Contudo, de dificuldade mais elevada em razão da maior profundidade. Para entendermos o motivo de tamanho hermetismo, temos de levar em consideração o perigoso contexto histórico de perseguições da época, além da necessidade de ultrapassar os rigorosos preconceitos ancestrais fixados através dos séculos. Trata-se de uma leitura singular, de acordo com a capacidade de entendimento adquirida por cada leitor, mas exige um olhar apurado e sensível, capaz de uma interpretação fora dos padrões fixados como únicos e verdadeiros, sem o qual afastaria muitas das possibilidades de compreensão contidas nos textos e, até mesmo, além deles. Se considerarmos cada palavra como uma cápsula de ideias, estas terão a beleza, a profundidade e a clareza do grau de consciência de quem as interpreta.
“A vós vos é dado compreender os mistérios do Reino de Deus, enquanto ao povo só lhe falo em parábolas”, teria dito Jesus aos discípulos, conforme consta em vários evangelhos. Uma linguagem adequada a cada interlocutor, ao nível da capacidade pessoal de entendimento. Um degrau por vez. Assim, embora a verdade esteja disponibilizada desde sempre, cada qual ao seu tempo, todos chegarão ao alto da compreensão. “Porque nada é oculto que não seja manifestado”, também afirmou o grande mestre, no sentido de haver necessidade em afastar as aparências que escondem a essência. “Quando o teu olhar se tornar simples, todo o universo se transformará em luz”, ensinou.
O Evangelho de Tomé não fala de passagens ou fatos vividos pelo mestre. O apóstolo anota cento e quatorze aforismos ou sentenças ditas por Jesus quando reunido a sós com os discípulos. Segundo a antiga tradição cristã, Tomé teria seguido para divulgar os ensinamentos crísticos no Oriente, onde tomou contato com a aquela riquíssima cultura milenar. Talvez, não por acaso, os aforismos anotados por Tomé, por vezes, lembrem a linguagem de Lao Tsé, no seu Tao Te Ching. Em Madras, na Índia, existe a catedral de São Tomé, onde supostamente está o túmulo do apóstolo.
O Velho me recebeu com a sua delicadeza peculiar. Com um sorriso sincero, um forte abraço e palavras doces, se mostrou alegre por encontrar comigo. Depois, explicou que não poderia me dar a desejada atenção naquele momento, pois o simpósio sobre o Evangelho de Tomé logo se iniciaria e fez uma ressalva: “Segundo uma respeitável vertente cristã, o autor deste Evangelho não seria Tomé. Nos papiros encontrados no Egito está escrito que Estas são as sentenças secretas ditas por Jesus vivo, talvez uma maneira de dizer que foram anotadas por quem as ouviu. Mais à frente, esclarece que Dídimo Judas Tomé as escreveu. Dídimo, em grego, e Tomé, em copta, significam a mesma coisa: gêmeo. Consta que Judas Tadeu seria gêmeo de Tiago e a maneira usada para diferenciar do outro apóstolo também chamado Judas, o Iscariote. Entretanto, a intenção do nosso estudo não é de discutir questões históricas nem de dirimir dúvidas quanto à autoria do texto. Vamos nos ater somente em entender as lições oferecidas e, por ora, codificadas”. Pedi desculpas pelo fato de ter chegado sem avisar e em momento impróprio. Eu sabia que não poderia assistir ao curso por ainda não estar graduado e falei que as nossas demoradas conversas, que eu tanto apreciava, ficariam para outro momento. O monge, como é comum às pessoas gentis, desfez o meu constrangimento e propôs: “Nada é por acaso. Fique e participe do simpósio”. Em seguida, mostrou a sua enorme generosidade: “Assim como os demais, você agregará valor com a sua presença”. De imediato, aceitei o convite.
Fui para o auditório e me acomodei. Para a minha surpresa, quem estava sentado próximo, era o diretor da multinacional que ameaçara rescindir o contrato com a agência caso eu me afastasse durante o período da campanha. Eu nunca o tinha visto nos muitos períodos de estudos em que estive no mosteiro nem sabia que ele era um monge, como são denominados os membros da OEMM – Ordem Esotérica dos Monges da Montanha. Frederico era o seu nome. Não era difícil de imaginar que ele era membro há mais tempo do que eu ou tenha se dedicado mais aos estudos, face estar credenciado para aquele curso. O espanto dele foi ainda maior ao me ver. Frederico ficou taciturno, deixando nítida a sua contrariedade com a minha presença.
Após as explicações preliminares sobre o Evangelho de Tomé, o Velho disse que seguiria o estudo sobre cada aforismo sem obedecer a sequência com que aparecem no texto. Seguindo a própria intuição, abriu o simpósio se debruçando sobre a sentença vinte e sete: Se não jejuardes em face do mundo, não achareis o Reino; se não guardares o sábado como sábado, não vereis o Pai.
Eu cocei a cabeça diante da dificuldade do enigma. De fato, o aforismo tinha uma linguagem semelhante à poesia do Tao. O Velho com a sua imensurável sabedoria nos facilitou a interpretação: “O que seria jejuar em face do mundo?”. Diante do silêncio do auditório, prosseguiu: “Aqueles que são esfomeados das coisas do mundo, engordam sem crescer. Dia após dia, vivem a vida como se estivessem em um restaurante. Experimentam todos os pratos do cardápio, ficam saciados somente por breves momentos, sem que nenhuma refeição os alimente”.
“Vivem a vida por prazer. Estão errados? Claro que não! Todos devem viver prazerosamente. A pergunta que segue é fundamental para explicar a anterior. Qual o prazer que você procura? Se for o poder de se sentir o maior de todos, será levado a dominar quem ameaçar os seus desejos. Se for a vaidade espetaculosa dos aplausos, manipulará as suas relações como uma caixinha de maquiagem, sempre com a intenção de esconder imperfeições e realçar virtudes ainda inexistentes. Se for a gargalhada de uma ironia escandalosa, mostrará o vício de depreciar alguém para se sentir bem, ainda que por breves instantes. Se for a de insistir no discurso para conduzir multidões como ondas que destroem tudo por onde passam, na ilusão de transformar o mundo antes de pacificar a si mesmo, espalhará sofrimento em vão, por não conhecer a busca nem entender o resultado pretendido. Se for apenas os prazeres sensoriais de cama e mesa sem os sentimentos e razões profundas da alma, se manterá frágil e esfomeado. Se for o acúmulo de bens na esperança de se precaver dos inevitáveis imprevistos da vida, terá o medo como senhor e a ganância como patrão. Para estes, o mundo será um lugar repleto de desafetos e problemas; a existência não passará de uma viagem desagradável e, ao final, frustrante”.
“Epicteto, um filósofo estoico greco-romano, cujo pensamento teve grande influência junto aos primeiros cristãos, ensinava que viver pelo prazer era aperfeiçoar as virtudes e expandir a consciência. Isto permitiria escolhas libertadoras por primar pelos valores que transcendem a matéria e dignificam o indivíduo. Ele dizia que tudo na vida têm dois aspectos fundamentais. Existe aquilo que nos pertence; tudo mais, possuímos apenas como usuários. Em verdade, as nossas posses são somente as que agregam atributos ao espírito, ou sejam, as virtudes, a consciência e as escolhas; todas imateriais. O restante, como as propriedades, os empregos, a fama, a reputação e até mesmo o corpo, uma vez que é transitório, efêmero e suscetível às intempéries da existência, como cárceres e limitações em função de perseguições ou enfermidades, pouco ou nada asseguram a beleza da vida. Para o filósofo, os valores do espírito desobstruem o caminho e impulsionam a existência. Além de serem inexpugnáveis. Já as conquistas ligadas aos condicionamentos do mundo, ainda conectadas aos padrões ancestrais de medo e ignorância, são débeis e causas de todos os sofrimentos, pelas dependências que criam e terminam por escravizar. Vale também lembrar que Epicteto era grego e, embora vendido como escravo em Roma e submetido a maus-tratos a ponto de ficar manco ainda muito jovem, foi um homem livre, feliz, digno, amoroso e que vivia em paz. Suas ideias foram como estrelas-guias a conduzir várias gerações pelas noites escuras da existência até o amanhecer da alma”.
“Devemos abdicar das coisas do mundo? De novo, a resposta é não. Contudo, os bens materiais não foram dispostos no mundo somente para consumo. Isto apenas engorda o comensal. Toda a matéria existe com a finalidade de servir como instrumento à transformação do indivíduo. Trabalhar sem a intenção de acumular, usufruir sem a intenção de possuir, se relacionar sem o desejo de dominar, viver sem oprimir. Assim jejuamos. Isto nos fortalece, pois de quanto menos precisarmos das coisas do mundo mais livre seremos”.
“Jejuar é abdicar dos vícios, das necessidades aparentes que acreditamos não conseguir viver bem sem elas. Quando se fala em vícios, costumamos ficar restritos àqueles mais comentados, como o tabaco, o álcool, ansiolíticos, entre outras drogas lícitas ou não. Contudo, há muito mais. Existem, por exemplo, os vícios intelectuais que impedem de pensar fora dos padrões e preconceitos estabelecidos, imperceptíveis à maioria das pessoas. Temos também as cruéis dependências emocionais cujo cardápio tem como ingredientes o orgulho, a vaidade, o ciúme, a ganância, entre outras sombras, todas indigestas pela mágoa, inveja e irritação que provocam”. Deu de ombros como quem comenta o óbvio: “Ao afastar o ego da alma nos distanciamos de nós mesmos. Então, não haverá Reino nenhum”.
O Velho bebeu um gole d`água e prosseguiu: “A parte posterior do aforismo parece explicar e reforçar a anterior. O que seria guardar o sábado como sábado, sob o risco de não ver o Pai?”.
“Nas antigas tradições, enquanto era recomendado ao indivíduo para que durante a semana cuidasse dos assuntos atinentes à sobrevivência, o sábado estava destinado à transcendência. Em outras palavras, alertava para cuidar das necessidades da existência sem se descuidar dos valores imprescindíveis à vida. Longe da alma, o ego é como um cachorro desorientado que irá morder o próprio dono. Ao ignorar a alma, o ego se entristece pela sensação de abandono que o invade. Ao lado da alma, o ego se torna um cão de guarda a nos proteger das maldades do mundo. Viva no mundo sem nunca esquecer de movimentar o céu dentro de você. Quando conseguimos, nos sentimos protegidos e iluminados”.
Fez uma breve pausa para que todos absorvessem aquelas palavras e finalizou: “O que significa não conseguir ver o Pai? Ele, o Pai, reside na consciência de cada pessoa, como João nos orientou na abertura do seu evangelho. Ficamos face a face com Deus quando pulsa em nós a força de se perceber inteiro, somente possível quando o ego cessa de menosprezar a alma e se harmoniza com ela”. Olhou para os monges como quem revela um segredo e fez uma pergunta retórica: “Já repararam como somos muitos dentro de nós? Dentro da mente de cada indivíduo parece ter uma sala de bate-papo, como se muitas pessoas, ora dialogassem, ora discutissem, na busca por orientação e soluções. Em verdade, somos muitos em um. Ego e alma são os interlocutores principais, mas há outras influências. Lembranças, preconceitos, valores, interesses, frustações, sonhos, medos, reflexões, intuições, instintos, são alguns integrantes que participam de cada decisão tomada. Se faz indispensável que todos eles olhem para uma mesma direção e tenham unidade de propósito. É preciso entender o destino para se estabelecer uma rota. Do contrário, andaremos sem sair do lugar. Verei o Pai quando for capaz de encontrá-lo em minha própria face”.
“Um bom sinal é quando percebo o prazer que existe no carinho silencioso de um abraço apertado, no afeto de um sorriso sincero, na força de uma escolha honesta, quando ouço com paciência, exponho as minhas razões com serenidade, me permito um ponto de vista diferente e escolho por amor. Estas são as riquezas eternas da vida, imperecíveis ao tempo, à prova de furto e que dispensam autorização da lei. Basta atenção e vontade. Nada mais”.
“As plenitudes existem para serem vividas no mundo, mas não pertencem a ele. Elas são suas, pois estão dentro de você. Para tê-las, enquanto se delicia com os gostos e aprende com os desgostos do mundo, terá de encontrar o céu em si mesmo”.
Ao final da palestra houve um animado debate, embora a clareza com que o Velho manifestara as suas ideias facilitasse bastante o entendimento do conteúdo filosófico. Frederico era um dos que mais falavam, mostrando uma enorme capacidade de articulação do seu pensamento. Quieto no canto do auditório, eu estava encantado como a partir de um ditado hermético, de difícil interpretação ou aparentemente sem sentido para muitas pessoas, o Velho construíra um raciocínio que emprestara incomensurável valor e sentido à vida, ao mesmo tempo que mostrava todo poder e força que podem conter em cada indivíduo a partir de novas e diversas perspectivas conscienciais.
Em seguida, fomos para o refeitório almoçar. Aproveitei que o Frederico estava sozinho em uma das mesas e me sentei à sua frente. Ele me olhou com indiferença e disse irritado para eu não desperdiçar a oportunidade que tinha. Respondi que a palestra tinha sido maravilhosa e, com certeza, depois de metabolizada, me traria muitos ganhos. O diretor da multinacional falou que se referia ao contrato de publicidade que a empresa tinha com a agência. Expliquei que ele não se preocupasse e citei um famoso ensinamento bíblico: “Conhecemos a árvore pelos seus frutos. O resultado do trabalho mostrará o seu devido valor. Antes disto, qualquer análise é prematura”. Frederico voltou a ameaçar de rescindir o contrato se eu não retornasse imediatamente para acompanhar de perto o projeto. Falou que já deveria ter feito isto, mas estava disposto a me conceder uma chance. Acrescentou que se me visse no mosteiro no dia seguinte significaria que o meu prazo teria se esgotado. Antes de terminar a refeição, ele se levantou e me deixou com a sensação amarga de ter uma espada no pescoço.
Como tínhamos uma tarde sem qualquer atividade, aproveitei para me sentar na agradável varanda, de frente para as montanhas, onde eu sempre gostei de meditar e refletir. A situação era muito incômoda para mim. Eu tinha visto como Frederico era um homem inteligente e persuasivo. As pessoas se encantavam com os seus argumentos. As suas palavras fluíam com facilidade e lógica. Cheguei a considerar a possibilidade de retornar naquela tarde. Contudo, eu tinha feito uma meticulosa estratégia antes de viajar. Havia planejado todos os detalhes com cuidado, confiava plenamente na equipe de criação, além de conversar com eles sempre que necessário. Tudo seguia conforme os planos, não havia o que temer, salvo a exigência do Frederico. Questionei-me se eu não estava, de fato, errado em estar ali e não na agência, afinal, eu era pago para comandar a campanha. Em contrapartida, se eu tinha feito a coisa da maneira certa, no limite da minha consciência, eu poderia ficar em paz, independente da decisão que ele tomasse, apesar do prejuízo financeiro que poderia me causar. Do contrário, me tornaria escravo à sua intransigência. Se havia dinheiro em jogo, a minha liberdade não era seria uma das fichas.
Notei que nos discursos de Frederico havia uma grande satisfação em influenciar as pessoas ao seu redor e ele fazia isto com enorme prazer. A quantidade de admiradores era mais importante do que a qualidade das ideias. Logo, de acordo com a minha consciência, voltar não seria uma decisão sensata e baseada em bons argumentos, mas uma mera vontade de Frederico, sustentada por um vício de comportamento ligado à manipulação das pessoas ao seu redor, como exercício necessário para exaltar o orgulho e a vaidade. Se o desajuste era dele, não me cabia alimentar as suas sombras ao permitir que elas influenciassem as minhas escolhas. Caso contrário, eu decidiria sob a orientação do medo, um péssimo conselheiro. Agigantar as sombras do Frederico despertariam as minhas e me jogaria na escuridão. Não se tratava de teimosia, mas de princípios. Ao seguir firme em meu código de ética, eu me manteria na luz. Com base nesse raciocínio, a escolha não foi tão difícil.
No dia seguinte, Frederico me evitou no café da manhã. Quando entrou uma mensagem no meu celular, eu já estava preparado para a notícia. Era da agência avisando sobre a rescisão do contrato. Eu não podia evitar que ele tomasse qualquer decisão, mas podia impedir que o melhor de mim se perdesse. Este é o único e incomensurável poder que tenho. Eu sabia que as perdas financeiras seriam grandes, mas os ganhos existenciais eram maiores. Nada do que eu possa perder por circunstâncias alheias à minha vontade merece qualquer lágrima ou lamento. São todas coisas do mundo; efêmeras e provisórias. Todas acessórias, nenhuma essencial.
Os dias se passaram. Eu prossegui no simpósio com incomensurável alegria e leveza. Até ousei a participar mais intensamente dos debates. Sentia-me fortalecido. Ao perceber a minha mudança, o Velho veio conversar comigo. Comentou que eu estava mais bem-humorado. Contei a ele o ocorrido e sobre as escolhas que eu fizera. Confessei estar encantado com esse poder e pretendia usá-lo cada dia mais. O monge arqueou os lábios em sorriso como quem concorda. Acrescentei que as lições do Evangelho de Tomé tinham me ajudado bastante. Em seguida, me atrevi a fazer uma análise da personalidade do Frederico e das dificuldades que ele tinha. Neste instante o Velho franziu as sobrancelhas e me interrompeu com seriedade: “Não julgue”.
“Ou colocará tudo a perder”.
“Se considerarmos no julgamento apenas os fatos, desprezaremos outros aspectos importantes. Por mais que se conheça alguém, pouco sabemos sobre esta pessoa e as motivações dos seus sofrimentos. Isto mostra a inconsequência dos vereditos mundanos. Mais grave, ao julgar incluímos todos fatores que ainda sangram em nós. A medida da balança não está aferida somente por nossas virtudes, como gostamos de acreditar, mas também influenciada pelas frustações e sombras que ainda alimentamos. A cada julgamento nos aprisionamos mais ao mundo por levar em consideração situações típicas de sofrimento, revoltas, insatisfação e mágoas que nos atormentam, muitas das quais ocultas em cantos escuros do inconsciente. Evitea volúpia típica às paixões densas e se afaste das tentações pelos julgamentos, pois enquanto estiver esfomeado por questões relativas à existência não conseguirá digerir a transcendência. Para construir a si mesmo não se faz necessário destruir ninguém”. Fez uma pausa e concluiu: “Você é o caminho. Tudo mais é paisagem”.
Envergonhado, abaixei os olhos. Um belo passo aqui, um tropeço logo adiante. Eu tinha jejuado das coisas do mundo, mas não soube guardar o sábado. A aplicação das lições cósmicas exige uma atenção sem fim.
Fiquei observando o Velho se afastar com os seus passos lentos, porém, firmes.
Imagem: Eti Swinford – Dreamstime.com
15 comments
Prazer por ler este texto. _/\_
Gratidão! 🙏
Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz, estava fazendo falta…
Mais uma vez venho beber desta fonte maravilhosa de conhecimento, amor e reflexão. Obrigado mais uma vez, sou muito grato!
Estava com saudades do seus textos Yoskhaz. A cada texto, vejo que a minha caminhada existencial ainda é longa e estou apenas no inicio, mas a olho com coragem e imensa alegria, pois estou na rota certa… Um imenso abraço com todo carinho e respeito que você merece.
É sempre um alívio ler cada texto seu. Obrigada…
Obrigado grande sábio, lembrei algumas decisões que tomei recentemente, seus textos veem me ajudando nessa questão, embora eu tenha tropeçado a evolução é evidente por encarar as coisas de frente. “O passado é uma roupa que já não me serve mais.”
Gratidão eterna.
Gratidão! 💜❤️⭐⭐
A cada texto um novo começo, obrigado e posso dizer com toda a convicção que seus textos me faz refletir e alinhar meus pensamentos com o nosso cosmos. Gratidão.
Ameii esse texto, gratidão infita.
Gratidão!
Como faz pra agradecer tamanho e extraordinário trabalho de luz!? Meu sonho ter um trabalho com esse poder de transformar vidas… Vc é minha fonte de luz Yoskhaz gratidão eterna!
❤️🌹”… vigiai e orai..”😍❤️
Adorei…texto ótimo..gratidao sempre grato
Resta – me dizer : Gratidão !