MANUSCRITOS IV

Plenitudes – a felicidade

Ainda era muito cedo quando entrei na casa de Li Tzu, o mestre taoísta, na pequena vila chinesa onde ele morava na subida do Himalaia. Por causa dos vários alunos que vinham de todas as partes do mundo para estudar o Tao Te Ching, o portão da casa nunca ficava fechado. Sempre tive o hábito de acordar muito cedo. Como eu sabia que o Li Tzu também era afeito a iniciar o dia antes de o sol raiar, eu não tive dúvida de que o encontraria acordado. Ao entrar na cozinha encontrei a mesa posta com um bule e duas xícaras. Do bico do bule a fumaça escapava. No entanto, não havia ninguém. Sentei-me à mesa e enchi uma das xícaras com o chá. O aroma da mistura de ervas se espalhou pelo ar, perfumando o ambiente. O Meia-noite, o gato negro que também morava na casa, se enroscou na minha perna. Afaguei a sua cabeça e ele saltou para se aninhar em meu colo. Silêncio e quietude. Enquanto bebia o chá me preenchia com a enorme sensação de bem-estar que aquele momento me proporcionava. Eu tentava entender a razão de tanto diante de tão pouco.

Tive os pensamentos interrompidos com a entrada do mestre taoísta. Logo pedi desculpas por invadir a sua casa e me servi do chá sem a devida autorização. Li Tzu, não mostrou surpresa ao me ver, me ofereceu um sorriso sincero e corrigiu: “Não houve invasão. Havia duas xícaras sobre a mesa e uma delas era mesmo para você. Em lugarejos como este é quase impossível não saber tudo o que acontece. Soube que você estava no ônibus que deixou os alunos na estalagem ontem à noite. Eu o esperava aqui bem cedo hoje”. Em seguida se sentou do outro lado da mesa. Comentei sobre a maravilhosa sensação vivenciada por mim ainda há pouco. A calma, uma xícara de chá, o carinho de um bichano e parecia que toda a felicidade do universo habitava em mim. Acrescentei que gostaria de me sentir sempre assim. O mestre taoísta deu de ombros e disse: “Depende apenas de você. No entanto, o que você sentiu talvez tenha sido o bem-estar proporcionado por um momento de tranquilidade; não, necessariamente, a felicidade”. Bebi um gole de chá e ponderei que aquelas palavras não me pareciam tão simples. Confessei que muitas vezes duvidei da real existência da felicidade. A vida parecia feita de momentos felizes; apenas momentos, tão e somente. Para mim, a felicidade era uma absoluta abstração e, como tal, uma meta impossível de alcançar.

Argumente que a felicidade era uma utopia, uma fantasia de poetas e religiosos como anestesia ou fuga de uma realidade dura de constantes sofrimentos. Li Tzu me alertou: “Para encontrar algo é indispensável que saibamos aquilo que procuramos, sob pena de nunca acharmos. Por desconhecer, muitas vezes o tesouro está diante dos olhos, mas não o vemos. Então, escapa”.

Falei que não conhecia ninguém que tivesse tido uma existência sem sofrimentos. O mestre taoísta me lembrou de conceitos que eu parecia ter esquecido: “Lembre que os conflitos são inevitáveis. Porém, o sofrimento é uma escolha. Os conflitos podem ser fontes turvas de dor ou fontes claras de aprendizado. Cada um define em qual fonte irá beber todas as vezes que uma dificuldade se apresentar”.

Argumentei que a teoria era bem mais fácil do que a prática. Embora tivesse me aprofundado bastante sobre as plenitudes em meus estudos esotéricos, admiti que achava impossível vivenciá-los. Li Tzu me corrigiu: “Difícil sim, impossível não”.

“Ver a porta não significa já ser capaz de atravessá-la. A distância entre ver e ultrapassar costuma demorar longos períodos; é o tempo que se leva entre o saber e o ser. Entre o ver e o ultrapassar existe um estágio intermediário, a formação da consciência. A formação da consciência, por sua vez, está dividida em duas etapas: o conhecimento e a sabedoria. O conhecimento se refere o quanto da teoria foi aprendida. No entanto, isto ainda não basta; é preciso que o saber se torne parte inerente ao ser, presente em suas escolhas. Por exemplo, todos sabem que a mentira é uma fraude contra si mesmo; mas quantos já conseguiram superar esta dificuldade?”.

“Quando conseguimos, temos a consciência ampliada por mais aquele conhecimento agregado ao ser e ao viver. A sabedoria é o conhecimento aplicado à vida, ou seja, o exercício do saber. Todo conhecimento não utilizado nas relações é como pão que mofa na vitrine sem cumprir a sua função primordial de alimentar. A consciência, em sintonia com tudo o mais no universo, está em infinita expansão à medida que o indivíduo conhece a si mesmo e encontra beleza ao seu redor. Assim, ao expandir a consciência, tudo se transforma”.

“Como você disse há pouco, vários foram os momentos felizes desfrutados em sua vida. No entanto, eles tiveram um período limitado, sempre mais curto do que o desejado. Quando, então, a existência retornou à rotina de sofrimentos”. Em seguida, brincou: “Vamos tentar entender o tigre selvagem aos poucos. Quem sabe ele, em verdade, depois de decodificado não passe de um Meia-noite incompreendido”, apontou para o gatinho que ronronava docilmente em meu colo. “A primeira premissa é talvez a mais importante para não nos afastar do bom combate. Se você sentiu a felicidade, ainda que por um único segundo, a razão é evidente: a felicidade existe. Não esqueça que a realidade reside no abstrato, o concreto é somente o muro que esconde a verdade. Enquanto tudo que é sólido se desmancha na marcha do tempo, as virtudes, e por consequência as plenitudes, são consistentes e nos acompanham à eternidade. Elas se agregam ao espírito como elementos de força e poder”.

Fez uma pausa proposital e prosseguiu: “Podem me impedir de carregar uma mochila, jamais o amor que possuo.” Bebeu um gole de café e acrescentou: “Podem me roubar todo o dinheiro, no entanto, a minha dignidade apenas me tiram se eu permitir. Vândalos podem atear fogo à minha casa, contudo, quanto à minha paz, somente eu tenho o poder de lançá-la à fogueira. Podem jogar o meu corpo no fundo de uma cela, todavia, não conseguirão acorrentar a minha alma quando verdadeiramente livre. Em estado de consciência profunda, em absoluta plenitude, podem até abreviar a minha existência, mas não conseguirão me tomar um átomo de vida”.

“Entende o poder incomensurável das plenitudes?”.

“Liberdade, paz, felicidade, amor e dignidade são as cinco plenitudes básicas que, quando unidas em uma, levam à iluminação. É o estado de graçaconhecido nas tradições ocidentais ou o nirvanacomo denominado nas tradições orientais. Para chegar à luz temos que atravessar o Caminho. Uma jornada interior que se percorre sedimentando novas virtudes ao ser, expandindo a consciência e aperfeiçoando as escolhas”.

“É a maior das batalhas; é o denominado bom combate. Saiba, não é fácil; tentarão fazer com que você desista. Humildade, simplicidade, compaixão, generosidade, delicadeza, sinceridade, honestidade, mansidão, firmeza, justiça, pacificação, fé, entre outras, além do amor, são as virtudes que nos levam às plenitudes. O amor é uma virtude que não apenas se faz presente em todas as demais virtudes, mas também se completa como uma das plenitudes básicas. Assim, o amor mostra a sua importância por ser, ao mesmo tempo, a estrada e o destino”.

“O Tao nos ensina que o Tudo está oculto no Nada.”

Interrompi para dizer que as suas palavras faziam sentido para mim. Eu tinha aprendido que o sagrado estava escondido por trás e através das situações mundanas. Entretanto, havia muito hermetismo. Acrescentei que aquele era o problema com as teses religiosas e filosóficas: não parecem muito claras. Li Tzu arqueou os lábios em leve sorriso, como se esperasse aquele comentário e me fez a pergunta elementar: “Onde está a tal da felicidade?”. Sem hesitar, respondi que dentro de cada pessoa.

Ele concordou e prosseguiu: “Então, por que sofremos quando alguém discorda do nosso ponto de vista ou se opõe à nossa vontade? Por que insistimos em encontrar a felicidade nos acontecimentos do mundo? Teimamos em acreditar que dependemos de de ter um carro, um aumento salarial, um romance com determinada pessoa, dos aplausos ou da aprovação alheia para ser feliz?”. Falei que as situações mencionadas por ele tornavam a existência mais confortável e a vida menos conflituosa. Li Tzu aprofundou: “O conforto está em perceber as desnecessidades da existência; o conflito somente existe quando impomos o nosso desejo sobre vontade dos outros”.

“Não existe nenhuma correlação entre as facilidades, sejam materiais, sejam existenciais, com a felicidade. Esta é a premissa primordial”.

“O cinema e a literatura nos ensinam muito sobre isso”. Perguntei de qual livro ou filme ele se referia. Li Tzu franziu as sobrancelhas e tornou a me surpreender: “Todos”. De imediato, disse que eu não tinha entendido. O mestre taoísta explicou: “Preste atenção em uma história qualquer. O que move qualquer história é o conflito. Quanto mais profundo for o conflito melhor será o filme ou o livro. Quanto mais forte for o vilão mais o herói terá que se superar em suas habilidades. Sem conflito teremos uma história enfadonha por não avançar a lugar nenhum; um protagonista chato por não ir além de si mesmo”. Fez uma pequena pausa para me alertar: “Nas melhores histórias o vilão se esconde no âmago do herói”. Fez uma pausa para concluir: “Cada um é o vilão de si mesmo. Este bandido é o único que pode me furtar a felicidade”.

“Os problemas sempre existirão. Contudo, se você enfrentar o conflito como a um inimigo as suas chances de perder a batalha são enormes. Contudo, se você reverenciar o problema como quem está diante de um mestre, pelas incomensuráveis possibilidades de aprendizado e superação oferecidas, somente conhecerá a vitória”.

“A felicidade é a plenitude da visão; ela tem a distância de um simples olhar”.

“Basta não usar os óculos escuros das sombras; basta não desviar nem fechar os olhos; basta olhar pelo viés da luz. Então, nada nem ninguém poderá lhe impedir a felicidade”.

Falei que, ouvindo-o falar, parecia que a felicidade era uma conquista simples. Li Tzu riu e me alertou: “Simples sim, fácil não.” Em seguida explicou: “Desde tempos imemoriais nos condicionamos a conectar o desejo de posse e domínio, seja de coisas, seja de pessoas, com a felicidade; de depender da autorização e dos aplausos do mundo para sedimentar uma conquista que, em essência, é apenas interna. Assim, abrimos mão do poder que temos sobre a própria vida pelas dependências que criamos. A felicidade é uma construção do ser no alinhamento de três elementos, indispensáveis ao equilíbrio espiritual: “virtudes, consciência e escolhas”.

Lembrei que havia pessoas em situações muito complicadas de doença e miséria. Li Tzu concordou: “Sem dúvida que condições básicas de subsistência e saúde são indispensáveis ao corpo. No entanto, nenhuma questão fora da elaboração intrínseca do ser traz qualquer relação com a felicidade.” Fez uma pausa, bebeu um gole de chá e continuou: “Caso contrário a felicidade seria inacessível às pessoas adoentadas ou pobres; uma ideia absurda. Enfermidade e miséria não são situações desejadas, mas trazem consigo as batalhas adequadas aos guerreiros que as enfrentam. As lutas mais duras costumam trazer os aprendizados mais profundos. Onde muitos enxergam desgraça, alguns encontram a verdadeira graça.”

“Ninguém escolhe os acontecimentos sujeitos à própria existência, mas pode escolher como lidar com eles. O fel e o mel da vida se separam na distância de diferentes olhares.”

“Eu conheço indivíduos que iniciaram a jornada à felicidade quando perderam a saúde física, o dinheiro ou mesmo sofreram uma inesperada ruptura emocional, como um divórcio ou a partida de um ente querido para outra esfera da vida. Isto lhes permitiu modificar o olhar. Não falo, é claro, que precisamos estar doentes, pobres o nos sentir abandonados para encontrarmos a felicidade. Seria repetir um conceito incoerente e absurdo no qual apenas se aprende com a dor. Um erro crasso. A dor apenas ensina quando envolvida em amor para que possa se transformar em sabedoria; caso contrário se perpetuará em ciclos de sofrimento. No mesmo diapasão seria acreditar que a felicidade está na conquista de bens materiais, na beleza física ou, muito comum, no afago ao ego ainda imaturo, viciado nos aplausos e aprovação do grupo social no qual está inserido”.

“Qualquer subordinação se torna uma prisão existencial. A felicidade é exclusiva do ser na construção de si mesmo”.

“Somente não esqueça que sem a argamassa das virtudes nenhuma construção se sustenta por muito tempo, por estar alicerçada nos pilares ocos do egoísmo”.

Eu quis saber se era preciso atingir a perfeição para manter a felicidade em estado permanente. O mestre taoísta negou tamanho equívoco: “Seria por demais cruel face a impossibilidade ou a distância da empreitada. Seria a negação do amor pelos maus-tratos infringidos a si próprio. Esqueça a ideia de que você será feliz amanhã. A felicidade se tornaria uma ficção e uma maldade por aguardando em local inalcançável. Em verdade, a felicidade se torna disponível quando entendemos que ela é uma realidade aqui e agora”.

Esvaziou a xícara de chá e equacionou o raciocínio com simplicidade: “O indivíduo sábio olha todos os dias para si mesmo com humildade, compaixão, sinceridade, delicadeza, firmeza e amor para ver se agiu melhor do que antes, se soube aproveitar, ao menos um pouquinho, as infinitas oportunidades de aprendizado e superação oferecidas pela vida. Se conseguiu, ficará feliz por isto. Caso não tenha conseguido, assumirá o compromisso verdadeiro perante a si mesmo de tentar fazer diferente a partir daquele exato momento. Então, se sentirá feliz também por isso”.

“A felicidade é o encantamento do indivíduo com as suas pequenas transformações diárias e com as incansáveis oportunidades de evolução oferecidas pela vida. Então, ele percebe a beleza que há em si, em tudo e em todos”.

Ouvimos uma movimentação. Eram os alunos chegando e se acomodando na sala de meditação. Logo começariam as atividades na casa do mestre taoísta. Ele pediu licença, pois precisava trabalhar. Pedi para ele me ensinar sobre as demais plenitudes básicas. Ele sorriu e disse com delicadeza: “Volte amanhã cedo para mais uma xícara de chá”.

16 comments

Rita de Cássia Figueiredo Soares novembro 30, 2018 at 9:54 am

Lindo… Gratidão 💕

Reply
Rafael Echeverria dezembro 1, 2018 at 11:39 am

Simples, lindo e essencial.
Gratidão Yoskhaz!!

Reply
Ana Catarina dezembro 1, 2018 at 9:43 pm

Lindo
Espero ter aprendido algo…
Gratidão pela lição

Reply
Joane Faustino Araújo dezembro 1, 2018 at 10:17 pm

Gratidão 🌹♥️

Reply
Márcia Campos dezembro 1, 2018 at 10:55 pm

Uma PLENITUDE este conto!

Reply
Adriana Dinoá dezembro 3, 2018 at 10:14 pm

Volto sim Yoskhaz…Quero aprender mais!! ;))

Reply
Natália Costa dezembro 4, 2018 at 8:04 pm

Lindo e aconchegante!

Reply
ocelio junior dezembro 6, 2018 at 3:27 pm

obrigado

Reply
Wllisses Thel dezembro 9, 2018 at 9:10 am

Esse chá, não o perderei mais!
Gratidão

Reply
Carol dezembro 11, 2018 at 4:08 pm

Grata por existir!!!:)

Reply
Adélia Maria Milani janeiro 9, 2019 at 6:50 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡ ♡ ♥

Reply
Useene maio 3, 2019 at 12:04 pm

Eu sou FELIZ.

Reply
Fernando Machado junho 9, 2019 at 3:35 am

Gratidão sem fim Yoskhaz

Reply
Enes Maria Silva Tomaz junho 16, 2020 at 10:06 am

Maravilhoso !
Gratidão sempre

Reply
Celso julho 27, 2020 at 8:39 pm

Excelente texto pra quem e monge

Reply
Neusa dezembro 21, 2020 at 3:33 pm

Para mim a felicidade está diretamente proporcional ao tamanho como enxergo a grandiosidade do todo.

Reply

Leave a Comment