MANUSCRITOS VI

A mochila, os atalhos e a distância

Esta história aconteceu há muito tempo. Eu tinha encerrado mais um ciclo de estudos no mosteiro. Aproveitei uma carona no caminhão do mercado para descer a montanha. Como o horário do trem estava distante, fui visitar Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos. Filosofia e os tintos eram as suas preferências. Alegrei-me ao ver abertas as portas do atelier escondido em uma das ruas estreitas e sinuosas, com calçamento de pedras seculares, que caracterizavam a antiga, pequena e aconchegante cidade. Na fachada da oficina não havia letreiro. Uma singela plaquinha de bronze pregada em uma das portas com um cacto insculpido era a única referência. Lembro que em meus estudos com Li Tzu, o mestre taoísta, de ele ensinar que as sombras costumam se caracterizar pelas cenas espetaculosas; as virtudes são discretas.

Encontrei Loureiro concentrado na finalização de uma mochila de couro, feita sob encomenda, sentado por detrás do pesado balcão de madeira. Ao me ver, o elegante sapateiro me ofereceu um sorriso sincero e se levantou para o tradicional abraço apertado com o qual recebia os amigos. Sem demora, estávamos sentados ao balcão com duas canecas fumegantes de café que foi passado no coador para comemorar aquele encontro. Como sempre usei mochila, ao invés de pasta, para carregar o meu material de trabalho, me recordo que fiquei encantado quando ele me mostrou a que estava fazendo, já em fase de acabamento. Era repleta de compartimentos, com lugares específicos para guardar todas as coisas, da lapiseira ao notebook, dos documentos ao celular; carregadores, cartões de crédito, canetas, bloco para anotações, chaves, bilhetes de metrô, entre outras coisas. Nada ficaria solto naquela mochila. Confesso que sempre considerei um mistério como as mulheres conseguem encontrar todas as mil coisas em suas enormes bolsas sem qualquer divisória. Muitas vezes sem olhar, apenas no tato. Somente um dos infinitos encantamentos que as mulheres me causam. 

Tentei convencer Loureiro a me vender a mochila. Não teve jeito. Aquela tinha sido desenhada por um conhecido arquiteto para as suas necessidades específicas. Se eu quisesse, idealizasse um modelo para mim. Na mesma hora, encomendei uma. Conversávamos sobre as modificações que eu desejava, quando o dono da mochila chegou à oficina. O seu rosto tinha sido muito veiculado nas mídias pelo fato de um projeto de sua autoria ter sido aprovado para a construção da nova sede de um famoso museu. Era um homem simpático, culto, elegante e polido. Tive a nítida sensação que a fama não tinha destruído a sua simplicidade. O sapateiro pediu que ele se sentasse e tomasse um café conosco. Em poucos minutos a mochila ficaria pronta. Assim foi feito. Após conversarmos sobre alguns assuntos, como ele era amigo do Loureiro havia alguns anos, se sentiu à vontade para confessar sobre uma situação que o chateava. Vinha sofrendo constantes ataques através das redes sociais. No país onde residia, era acusado de plágio em alguns aspectos do seu projeto vitorioso. O que mais o aborrecia era a maneira como as suas ideias tinham sido descontextualizadas pelos detratores para serem apresentadas ao público de modo distorcido. Tinha consciência que nem toda crítica é justa, assim como nem todo elogio é merecido. Contudo, naquele caso, não se tratava de elogios ou críticas. Em razão do jeito pelo qual fora conduzido, o debate se tornara desonesto.

Ao seu ver, a origem poderia ser uma de duas. Inveja ou política. Talvez, ambas. A mera cogitação em concorrer a um cargo eletivo às eleições municipais ocorrera quase simultaneamente ao resultado do concurso que premiou o seu projeto, em detrimento a diversos outros de autoria de escritórios de arquitetura ainda maiores e mais famosos. “Estão me tratando como se um fosse um impostor. Isto é mentira. Todo processo criativo busca inspiração em diversas fontes. Tratar isto como plágio não me parece um engano conceitual. É maldade”, extravasou a mágoa. 

Troquei algumas ideias sobre a questão com o arquiteto até o momento que ele acrescentou: “O que mais me chama atenção é o fato de tantas pessoas, que nada sabem sobre a minha vida, razões e motivações ou pouco conhecem quanto aos detalhes técnicos do projeto, se manifestarem de maneira tão agressiva, como se precisassem me destruir para continuarem a viver”, mostrou um espanto sincero.

“Elas precisam”, Loureiro interveio na conversa com o seu encantador jeito de surpreender com as suas ideias desconcertantes: “Pelo estilo de vida que adotaram, precisam desesperadamente de julgamentos, sempre superficiais em razões e sumários quanto às possibilidades de defesa da verdade. Ainda vivemos em sociedades arcaicas sobre tais aspectos. Não passamos de meros atiradores de pedras. Acreditamo-nos modernos e evoluídos, como se o acesso à tecnologia fosse suficiente para nos tornar pessoas melhores”.

“Não somos muito diferentes dos povos da Idade Média que, aos domingos, esperavam um infeliz qualquer ser conduzido da cadeia à praça onde seria enforcado. Durante o trajeto, ofendiam, cuspiam e jogavam excrementos no condenado. Acreditavam possuir tais direitos. Não se preocupavam com a verdade dos fatos, com a retidão do julgamento nem com os motivos pelos quais aquele indivíduo estava sendo massacrado. Queriam somente humilhar e execrar. Precisavam surrar alguém. Nada mais importava. Ainda hoje, pouco importa. Fazemos isso todos os dias pelas redes sociais”. Franziu as sobrancelhas e disse: “A facilidade com a qual prolato um julgamento, a rapidez com que lanço na fogueira a vida alheia, é diretamente proporcional a quanto eu desgosto de quem sou. Claro, é inconsciente. Mas, é tão e somente isto”. 

Precisávamos que o sapateiro ampliasse e aprofundasse aquele pensamento. Ele disse precisar de mais uma caneca de café sob o risco de não se sentir capaz. Rimos. Loureiro explicou a ideia do início: “Não sou quem acredito ser, é um valioso conceito freudiano. Embora o consciente tenha capacidade de reconhecer muitos equívocos que praticamos, alguns de maneira recorrente, várias outras dificuldades pessoais ainda restam guardadas em porões escuros da mente, o inconsciente, que se manifesta de modo a termos dificuldade em reconhecer a sua atuação decisiva em nossas escolhas, palavras e comportamentos”. Fez uma breve pausa para ressaltar: “O fato de não perceber, ou mesmo de negar, não significa que não somos. Apenas que nos desconhecemos”.

Bebeu um gole de café e prosseguiu: “Ninguém gosta de se ver como uma pessoa ruim, com defeitos e capaz de praticar maldades, mesmo que pequenas. Por este motivo, a todo momento, construímos raciocínios tortuosos na tentativa de justificar os nossos erros, no falso convencimento de que eram necessários em situações específicas. Foi um mal necessário, repetimos para nos enganar. Nenhum mal é necessário. Praticamos o mal quando não conseguimos fazer o bem, quando não conseguimos oferecer a outra face, a face da luz, aquela que quem está na escuridão não conhece. Não raro, somos nós que estamos nas sombras. Agigantamos a escuridão por não sabermos reagir a uma situação difícil”.

Bebeu mais um pouco de café e continuou: “O problema é que poucos já estão prontos para reconhecer essa oscilação entre a luz e a escuridão comum aos processos de transição. Depois de sair de um ponto, mas antes de chegar a outro, passamos por momentos de indecisões, dúvidas e desequilíbrios; faz parte de amadurecimento do espírito até que se assegure do movimento certo que garanta o seu avanço. Enquanto isso, reincidirá em práticas erráticas, vícios sombrios e, até mesmo, vez por outra, fará oposição à luz que tanto admira. Tornar-se uma pessoa boa dá muito trabalho. Exige muitas virtudes. Não tenho como prosseguir sem admitir o mal que ainda está presente em mim. Impossível. O atalho é negar as maldades que ainda pratico. Como construir uma boa imagem de quem eu sou, para minha própria aprovação, sem o enorme esforço das constantes transformações inevitáveis à evolução? Utilizando-me de outro atalho: destruindo a imagem dos outros”.

Esvaziou a caneca e disse: “A prática é simplória e rasa. Ao destruir a imagem alheia, me convenço que a maioria das pessoas são ruins e pouco valem. Com tantas pessoas deploráveis no mundo, por antítese, me forço a acreditar que sou uma pessoa boa. Afinal, sou melhor que elas. Ao menos, assim me iludo. Vivo dentro da miragem que meus olhos turvos criaram no afã do meu conforto existencial”.

“Como toda mentira têm prazo de validade e, nestes casos, são de curtíssima duração, preciso julgar e julgar todos os dias para alimentar o vício no qual me tornei dependente. Sim, o mal é um vício que, como tal, precisa se nutrir constantemente. Julgar os outros é um deles”.

“No entanto, todos os atalhos nos levam de volta ao ponto de partida. Demolir imagens alheias não tem a força para erguer nem um traço da verdade sobre quem eu gostaria de ser”.

“A facilidade de proferir julgamentos demonstra a pouca satisfação de um indivíduo em relação a ele mesmo. Destruo o mundo porque, em verdade, preciso desviar a atenção quanto às minhas incompletudes. Destruo o mundo porque, em verdade, me considero incapaz de construir quem eu gostaria de ser. Destruir é infinitamente mais fácil do que construir. Este é o atalho insalubre dos julgamentos populares”.

“Aqueles que verdadeiramente estão focados no enorme esforço da construção de si mesmo não desperdiçam tempo nem energia no exercício nefasto da destruição alheia”. 

Não fazem, Loureiro explicou, por se tratar de um típico esforço de Sísifo, um importante arquétipo da Mitologia Grega, considerado o mais astuto dos homens, chegando a ludibriar o personagem da Morte por algumas vezes. Por toda a sua malícia, foi condenado a empurrar uma pesada pedra de mármore até o topo de uma enorme montanha. Todos os dias, ao se aproximar do cume, uma força irresistível empurrava a pedra para baixo, o obrigando a recomeçar o seu inútil trabalho por toda a eternidade. 

O sapateiro esclareceu: “Ninguém se torna uma pessoa boa por acreditar que as outras são ruins. Trata-se de um esforço inútil, um exercício que não nos deixa melhores nem terá qualquer êxito. Note que, assim como Sísifo, aqueles que julgam o mundo se consideram mais inteligentes e capazes do que os demais. Enganam-se. Ao se acreditarem mais virtuosos, diante de olhos mais sábios, esbanjam uma enorme carência de virtudes. Nenhum raciocínio, por mais inteligente que seja, alcançará uma finalidade útil e necessária, ou atingirá a luz, se não estiver envolvido em amor. Sem amar a si mesmo não se consegue amar ninguém. Este é o núcleo gerador de tantas insatisfações, decepções, julgamentos e condenações”. 

“O aprimoramento pessoal é a verdadeira manifestação do amor próprio. Aperfeiçoo-me como exercício de amor por mim mesmo. Aqueles que vivem para condenar o mundo mostram o estágio de estagnação que se encontram. Querem receber a perfeição na bandeja sem a preocupação de entregar o ideal que exigem. Muitos são os atalhos que levam a lugar nenhum”.

“Torno-me um personagem distante da realidade. Vivo das mentiras que gosto de contar para mim. Sigo como um atirador de pedras que precisa quebrar qualquer resquício de espelhos capazes de refletirem a verdade que não estou pronto para enxergar. Estes reflexos surgem aos meus olhos por intermédio das atitudes e realizações de outras pessoas. Destruo-as pelo incômodo que me causam. Destruo-as pelo vício: preciso de muitas pessoas ruins para acreditar que sou bom. Como um Sísifo contemporâneo, não saio de onde estou”. 

Loureiro pediu mais café. Depois, nos instigou: “Qual a distância entre o bem e o mal?”. O arquiteto e eu trocamos olhares de espanto. Falamos que tal distância era enorme em razão de serem dois polos diametralmente opostos. O sapateiro nada disse, apenas nos olhou. Sentimos que não tínhamos atingido o ponto crucial. Loureiro voltou a nos provocar: “Qual a distância entre o sim e o não?”. O silêncio era a nossa confissão. Não sabíamos. O sapateiro esclareceu: “A mesma resposta serve para ambas as perguntas. Você”.

“Você é a distância entre o bem e o mal. Você é a distância entre o sim e o não. Vivemos quem somos. Esta é a exata medida do mundo, seja o meu, seja o seu. Interpretamos as pessoas e as situações na régua do nosso olhar. Julgamos onde apenas deveríamos observar e entender. Condenamos quando a distância entre o bem e o mal é curta. Condenamos quando a distância entre o sim e o não é próxima. Fazemos pelo fato de o bem e o mal ainda nos confundirem; em razão de o sim e o não ainda se embaralharem em nós”.

Loureiro falava enquanto dava os ajustes finais à mochila. Ao terminar, a entregou ao arquiteto que, encantado com o resultado, agradeceu. Em seguida, comentou que pensava em medidas judiciais para reparar os danos morais que sofrera. O sapateiro desaconselhou: “Brigas apenas servem para alastrar os rastros de ódio. Sofrem danos apenas os fracos. Conflitos e mágoas mantêm fechadas as grades da prisão pelo tempo das suas durações. Como Sísifo, acabamos condenados à esforços inúteis”. 

O arquiteto perguntou se não deveria fazer nada. Loureiro disse. “Sim, faça. Voe para além do alcance dos atiradores, onde as pedras não o atingirão”. Atônito, o bom homem questionou se deveria mudar de cidade ou mesmo de país. O sapateiro esclareceu: “Não foi isto que eu quis dizer. O corpo pode morar em qualquer lugar. Quem alça voos é o espírito. A liberdade é um atributo da alma”.

O sapateiro pegou uma folha de papel que estava sobre o balcão, rabiscou algumas palavras e a entregou ao arquiteto: “Tenha sempre dentro da mochila”, explicou. Era um pequeno poema:

Confie no que você já sabe

E siga em frente.

Não se importe com os rugidos

E ruídos do mundo.

Eles nada sabem sobre você.

Não importa que ninguém queira te acompanhar.

Importa que você sabe para onde vai.

Siga sem fazer barulho.

Siga em paz.

Emocionado, o arquiteto abraçou o sapateiro. O poema ficaria em um compartimento de fácil acesso na mochila para usar sempre que fosse necessário. Depois, conversamos sobre outros assuntos até a hora de irmos embora.

Algumas semanas depois, recebi a minha mochila pelo correio. Era linda, com os mil compartimentos que eu havia idealizado. Imediatamente, comecei a arrumá-la, encaixando todas as minhas tralhas do dia a dia em seus devidos lugares. Foi quando descobri um compartimento que eu não lembrava fazer parte do projeto original. Ao abrir, encontrei um bilhete: “Para guardar os julgamentos. Todas as vezes que sentir impulso em fazê-lo, resista. Guarde-o aqui até entender a sua desnecessidade. Então, jogue-o fora para sempre”.

Loureiro era um excepcional artesão de sapatos, bolsas, mochilas. Mas, acima de tudo, era maravilhoso um artesão de ideias.

10 comments

Lucena novembro 18, 2020 at 11:06 am

Gratidão!

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Jeane novembro 19, 2020 at 9:52 am

Sem palavras…. Texto maravilhoso!!!

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Fernando Cesar Machado novembro 19, 2020 at 12:41 pm

Gratidão profunda e sem fim…

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Erikson Marcelino Clemente novembro 19, 2020 at 5:22 pm

Gratidão!

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Joane novembro 22, 2020 at 3:28 pm

🌹✨❤️

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Terumi novembro 23, 2020 at 9:11 am

Gratidão! 🙏

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helio dauto proença novembro 24, 2020 at 11:08 am

Que honra poder tomar um café com o mestre loureiro….
muito boa reflexão..

Gratidão

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Viviane Barbosa novembro 29, 2020 at 3:47 pm

Nossa que delícia de texto, realmente impressionante.

Gratidão infinita por nos presentear com tanto carinho.

Muita luz

Paz

Boas vibrações

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Maria da Glória Mataveli janeiro 17, 2021 at 1:35 am

Uahuuu….quanta sabedoria….ler reler tornar a ler …guardar ate eles nao serem mais importantes e aí….se desfazer…grata …

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Matheus novembro 30, 2021 at 3:25 pm

Sou eternamente grato por cada um dos seus textos, Yoskhaz. Cada um deles ilumina as sombras da minha vida, um pouco por dia, obrigado!

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