MANUSCRITOS III

Siga o seu coração

 

“Siga o seu coração”, me aconselhou Canção Estrelada quando me despedi. Eu tinha ido às montanhas do Arizona para participar de alguns cerimoniais nativos em um período que, por coincidência, era de mudança de ciclo em minha vida. A agência de propaganda na qual eu era sócio tinha sofrido uma forte cisão com a saída de alguns sócios e precisava encontrar novos rumos. Ao mesmo tempo se encerrava o romance de alguns anos com a minha namorada que cheguei a imaginar não ter fim. Naquele momento eu precisava me reinventar. “Siga o seu coração”, levei aquelas palavras comigo, que me enchiam de força, e tomei uma série de decisões, tanto pessoais quanto profissionais, que se mostraram equivocadas. Alguns meses depois, no turbilhão de desencontros que a minha vida tinha se tornado, aproveitei que teria o tradicional ritual do equinócio de verão e voltei ao Arizona. Encontrei Canção Estrelada sentado na cadeira de balanço da agradável varanda de sua casa. Ele me recebeu com alegria. Depois de devidamente acomodado, não demorou muito, confessei ao xamã que seguir o coração tinha se tornado desastroso, haja visto o que tinha acontecido comigo. Pior, eu tinha a nítida sensação de as coisas iriam se agravar ainda mais. Ele me olhou como a uma criança chorosa, acendeu o seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha e, depois de algumas baforadas, disse: “Tem dois aspectos no seu discurso que você parece não entender. O primeiro é que, algumas vezes, estamos tão arraigados às velhas formas de viver que é preciso demolir tudo, até não sobrar pedra sobre pedra, para que seja possível reconstruir uma nova realidade baseada em um diferente entendimento sobre o ser. Não se constrói uma boa casa sustentada por paredes podres.” Tornou a baforar o cachimbo e concluiu: “Outro aspecto, e não menos importante, é quanto a seguir o seu coração. Será sempre um valioso conselho. No entanto, nem sempre possível de realizar, pois para seguir o coração é preciso aprender a ouvi-lo.”

Discordei. Eu achava que dizer para uma pessoa seguir o próprio coração em um momento que ela está desorientada, sem saber para que lado seguir, diante de bifurcações que a vida apresenta, me parecia covardia ou maldade. Era justamente a hora de pegá-la pela mão e a conduzir pela escuridão da estrada. O xamã franziu as sobrancelhas e disse com seriedade: “Imaginar que sabemos o que é melhor para os outros é um exercício típico dos tolos, sejam aqueles que conduzem, sejam aqueles que se deixam conduzir. Cada qual é o mestre de si mesmo e toda a sabedoria está adormecida no coração.” Falei que me espantava ele insistir nessa teoria, que mais me parecia um discurso fácil daqueles que, na verdade, não querem ajudar aos outros. Canção Estrelada se virou para mim, em seus olhos percebi sincera e doce compaixão, e disse: “Sempre ouvimos as nossas vozes. Não há nada de complicado nisto. Difícil é saber identificar de onde cada uma delas vem. Não é apenas o coração que nos fala. As sombras também nos falam, através de medos, desejos e mágoas das mais diversas espécies, como o ciúme, a inveja, a vaidade, o orgulho, a usura, entre várias outras, que nos levam a contruir raciocínios tortuosos de autojustificação do ego quando em desalinho com a alma. Existem outras vozes com as quais dialogamos, como os condicionamentos culturais, que nos levam a decidir no afã da aprovação e dos aplausos sociais; preconceitos, quaisquer que sejam, que de tão arraigados nem nos damos conta que existem; memórias que gostaríamos de esquecer, mas que ainda sangram como feridas abertas. Enfim, para seguir o coração é preciso identificar a sua voz no meio de uma multidão que grita dentro do ser.”

“O coração é a fagulha do sagrado que nos habita. Somente lá encontraremos o Grande Mistério para conversar e conhecer a Sua face. É preciso que essa centelha se acenda em lanterna para iluminar o ser e entender a parte que te cabe no todo; conhecer o todo é conhecer a parte. O coração sempre vai orientar pelas escolhas que nos conduzam à plenitude através das cinco curas do espírito: a liberdade, a paz, a dignidade, o amor e a felicidade. Os remédios para todos os males do espírito têm como ingredientes essenciais as virtudes. Se a escolha não for movida por uma ou mais das nobres virtudes, tenha certeza de que a voz que a aconselhou não foi a do coração.”

“A humildade, a compaixão, a sinceridade, a mansidão, a misericórdia, a coragem, a alegria, a fé, entre várias outras virtudes, são os instrumentos do Caminho. Além, é claro, do amor, a virtude das virtudes pelo fato de estar presente em todas as demais. O amor é o remédio e a cura.”

Eu quis saber se ele me ensinaria a ouvir o coração. Canção Estrelada me alertou: “Posso apenas mostrar onde está a porta. Atravessá-la depende de você.” Falei que aceitava a condição. Naquele mesmo dia, quando entardeceu, fizemos uma trilha pelas montanhas até que paramos em um platô que oferecia uma bela vista do vale. Estendemos as mantas coloridas e o xamã entoou algumas canções ancestrais ritmadas pelo seu tambor de duas faces. Em seguida, explicou: “Conversar com o coração é um rito pessoal, cada um tem o seu; todos são belos e valiosos. A música me ajuda a encontrar o sagrado oculto no mundano ao me deixar mais sensível e perceptivo. Contudo, eu chego ao meu coração através da prece. A oração, para mim, possibilita o encontro com a minha própria luz, o divino que me habita. Somente assim consigo escutá-lo.”

Fechei os olhos e Canção Estrelada entoou outras canções até que silenciou. Ele se retirou sem dizer palavra e me deixou a sós comigo mesmo. Por diversas vezes tive que reiniciar a oração. Eu seguia bem até um determinado ponto quando a minha mente era invadida por diversos fatos do passado que insistiam em desviar os meus pensamentos da prece. A tarde avançou na noite e adormeci sem conseguir me concentrar integralmente na oração. Canção Estrelada retornou ao amanhecer trazendo algumas frutas para o desjejum. Ao perguntar como tinha sido a experiência, confessei que não tinha conseguido chegar ao coração através da prece, pois era interrompido a todo o instante com memórias desagradáveis, de situações que eu não mais fazia questão em lembrar. O xamã sorriu satisfeito e disse: “É assim mesmo. Para chegar ao coração é preciso estar despido das mentiras que contamos para nós mesmos; dos personagens que criamos na ilusão de melhor enfrentar a existência. O coração é o lugar da verdade; para chegar ao coração é preciso estar envolto na verdade; a verdade sobre si mesmo. Se conhecer por inteiro é pressuposto para a viagem até o coração. Por definição, o coração não é uma rota de fuga; ao contrário, é a estrada da verdade e da luta pelo autoconhecimento.”

“Quando somos invadidos por memórias desagradáveis durante a oração, significa justamente aquelas situações que o nosso coração entende que devam ser pacificadas dentro de nós para que possamos seguir adiante. É parte primordial da prece. Não rejeite, sufoque ou negue essas memórias. Ao contrário, as abrace com amor. Entenda as dores que elas lhe provocam. Os sofrimentos são frutos de escolhas e entendimentos. Então, vá até as suas raízes para entender e escolher diferente e melhor da próxima vez que uma situação parecida se apresentar. Assim você substituirá a dor do equívoco pelo ânimo do amor de prosseguir adiante. Perdoe a quem lhe magoou; cada qual oferece apenas o que tem disponível no coração naquele momento da existência. Não podemos exigir flores de um coração encoberto por pedras. De outro lado, perdoe a si mesmo pelos mesmos motivos, pelas escolhas equivocadas que fez em determinados momentos da vida. Esta é a estrada para o coração, este é o tratamento de cura. Aceite que agimos no exato limite da nossa expansão de consciência e capacidade de amar. O erro é o mapa do acerto e o impulso do aperfeiçoamento. Aproveite para fortalecer o espírito para de uma próxima vez não tropeçar; assim evoluímos.”

“Entenda que por detrás dos pensamentos há os sentimentos que os movimentam. É preciso serenar os sentimentos para educar os pensamentos. Aproveite a oração para isso. Sentimentos densos fazem com que naveguemos em águas turvas; precisamos de águas claras para ver com profundidade, sem a qual não encontraremos o coração e o sagrado que nele habita.”

Ficamos algum tempo sem dizer palavra para que eu pudesse concatenar todas aquelas ideias. Em seguida, ele me convidou para mostrar alguns belos lugares da montanha. O dia foi ocupado por passeios e conversas descontraídas. Canção Estrelada era alegre e bem-humorado, sempre me fazia rir muito. Ao entardecer retornamos ao platô. Ele pediu para eu me concentrar em prece e avisou que voltaria no dia seguinte. Diferente do dia anterior, naquela noite não refutei os pensamentos, mas os acolhi na medida em que invadiam a prece, no esforço de pacificar os sentimentos que os moviam. Primeiro vieram à memória fatos do meu último namoro. As brigas e os desencontros. Aos poucos fui entendendo que apesar da admiração mútua que nutríamos um pelo outro – ela era uma pessoa encantadora – não nos amávamos. Tínhamos espectativas e olhares sobre a vida que nos distanciava. Ao forçar a aproximação, cada qual violava a si mesmo e terminava por responsabilizar o outro. Um erro infantil, porém, muito comum. Aceitei que o afeto e a admiração podiam e deviam continuar, entretanto, não mais enlaçados como um casal. Assim, eu poderia me sentir verdadeiramente livre para iniciar um novo relacionamento e teria plenas condições de abençoar o dela. Uma estranha e agradável sensação de leveza me invadiu.

Prossegui em minha prece até ser tomado por recordações referentes à dissolução da sociedade da agência de publicidade. Éramos quatro sócios; dois se desligaram para montar outra agência. Claro que durante o processo de separação surgiram divergências de vários tipos. Profissionais que faziam parte da equipe original decidiram quem acompanhariam, clientes optaram com quem trabalhariam, situações do passado nas quais existiam ressentimentos, muitos velados, vieram à tona, entre outras situações e detalhes. Todo corte sangra; aprender a maneira de cicatrizá-los é a arte do coração. Até que um dia sejamos capazes de entender que, na verdade, não existem cortes; apenas a liberdade. Sua e de todos. Isto é digno, é amor; constrói a paz e a felicidade. A agradável sensação de leveza voltou a tomar conta de mim; desta vez já não a considerei estranha.

Ao contrário do que se possa imaginar, essa oração não durou minutos, mas se estendeu por toda a noite. Quando me dei conta, o céu já tinha aquela cor, entre o rosa e o laranja, típica do amanhecer. Apesar de ter passado a noite acordado, eu não me sentia cansado ou com sono. Uma alegre vibração me mantinha animado, em um estado entre a alegria e a serenidade. Eu tive a certeza de ter conversado com o meu coração. O sagrado que nele habita tinha se manifestado em verdades que passariam a clarear as minhas escolhas.

Assim que Canção Estreladas me viu, sorriu. Sem que nada precisasse dizer, ele sabia que eu tinha tido um importante encontro, o mais importante da minha vida. O xamã sabia também que era a primeira das muitas conversas que eu teria com o meu coração e como isto mudaria a minha vida dali por diante. Sorri de volta em gratidão. Agradeci pela lição. Canção Estrelada sacudiu a cabeça e corrigiu: “Não há o que agradecer. Eu apenas disse: ‘ali tem uma porta’. Atravessá-la foi escolha sua. Seu esforço, seu mérito.”

Falei que agora entendia que até aquele dia eu não soubera usar os meus olhos para ver a verdade. Aprendi que para encontrar a verdade era preciso conversar com o meu coração. Para tanto, era primordial fechar os olhos. Era essencial olhar para dentro de mim para me conhecer. Esta é a senha que abre as portas dos corações. Canção Estrelada sorriu mais uma vez, pegou o seu tambor de duas faces e ritmou uma sentida melodia de comunhão com o Grande Mistério, o coração do universo, origem e destino de todos os corações. Mais um filho tinha aprendido a importância e a maneira de conversar com o próprio coração.

18 comments

Cristina Inácio Neves dezembro 28, 2017 at 4:58 pm

Seus textos são inspiradores! Gostaria de saber mais sobre você!

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Bruno dezembro 29, 2017 at 12:53 am

Em tempos de tantos estímulos externos, aprender a ouvir tudo o que vem de dentro e distinguir a voz mais importante é um fator decisivo no encontro com uma felicidade genuína. Fico muito feliz em ler um texto com essa lição passada de forma tão simples e clara. Que possa encorajar muitos corações a serem ouvidos nesse mundo!

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Paula dezembro 29, 2017 at 7:37 am

Obrigada pelos textos! Gosto muito de refletir através das suas estórias.

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Graça dezembro 29, 2017 at 1:19 pm

fale-me sobre você.

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Maryusquia dezembro 29, 2017 at 1:21 pm

Textos legais.

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Celestino Batista Neto dezembro 30, 2017 at 11:00 am

Ótimo e oportuno texto. Aprender a consultar o coração é nosso ato de sabedoria em mundo marcado pelo materialismo.

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Viviane Barbosa dezembro 30, 2017 at 3:02 pm

Gratidão por nos proporcionar tantas lições poderosas!

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Claudia Pires dezembro 31, 2017 at 7:56 pm

Preciso praticar esse ensinamento. Grata!

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Michelle janeiro 2, 2018 at 8:49 am

🌹❤️

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Joane Faustino janeiro 4, 2018 at 8:07 am

Gratidão ♥️♥️♥️

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Aida Clemente janeiro 23, 2018 at 8:14 pm

QUE DIZER???

SÃO TEXTOS BELOS, MARAVILHOSOS, E DÁ PRA REFLETIR!!!

FANTÁSTICOS!!!

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Roozely bellei janeiro 29, 2018 at 9:10 pm

Muito bom.refexoes ricas.profundas.parabens.Obrigada

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José Gerson de Almeida fevereiro 4, 2018 at 1:27 pm

Simples , útil fantástico.

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Ricardo Espinosa fevereiro 21, 2018 at 3:07 pm

Mas um filho aprendeu a sútil arte de ouvir o coração, grato sempre pelo vosso auxílio, que sua luz continue a brilhar.

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Jailson março 11, 2018 at 1:18 pm

Saber ouvir o coração, uma viagem que nos leva ao caminho de reconstrução de um ser em constante aprendizado.
Obrigado por palavras em forma de luz que se transformam em pérolas.

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Will Andrade março 22, 2018 at 2:28 pm

Redescobrir esse laço com meu coração, voltar a confiar e me comunicar com ele foi um dos passos mais importantes da minha vida. Minha experiência de reaproximação foi dolorosa, após um término de relacionamento complicado, mas me lembro de ter parado durante uma crise de choro, tocado o centro do meu peito e pensado “Ok, agora eu acho que reencontrei meu coração. Porque agora ele está doendo, mas pelo menos eu sei exatamente onde ele está e que ele está vivo.”… Atualmente sei que posso contar com ele em todos os momentos, sei me aceitar e me acolher nas minhas fraquezas e mergulhar nas minhas felicidades com mais completude.
Canção Estrelada é meu favorito, gratidão pela lição <3

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Romario Sales abril 25, 2018 at 1:29 pm

Minha relação com meu coração ainda necessita mais intimidade, todavia, a prática constante com sinceridade ainda nos tornarão somente um.
Obrigado por compartilhar!

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Marcelo Augusto Souza. janeiro 21, 2019 at 9:17 pm

Simplesmente fantastico!!

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