MANUSCRITOS VIII

A forja original

“Quando o gosto dos outros nos serve de molde, perdemos aquele que poderíamos nos tornar”, foi a frase que ouvi ao entrar na oficina de Loureiro, o sapateiro que costurava o couro e as ideias com igual mestria. Chovia muito na pequena e charmosa cidade de ruas estreitas e sinuosas calçadas com pedras seculares. O guarda-chuva não deu conta de me manter a salvo da água. Pendurei o casaco molhado e troquei um abraço com o Loureiro. Em sua elegância habitual, com os fartos cabelos brancos penteados para trás, ele trajava uma camisa rosa-claro, com as mangas enroladas na altura dos cotovelos para oferecer maior mobilidade no trabalho, arrumadas por dentro da calça azul-marinho de fina alfaiataria. Os sapatos pretos eram de confecção própria. Cumprimentei Francis, filho caçula do Renê, o livreiro da cidade. Pelo tom da frase que ouvi ao chegar, não foi difícil perceber a seriedade da conversa. Sem muita convicção, falei que os deixaria a sós caso preferissem. Eles riram.

Lá fora a tempestade era inclemente. Como de costume, o trem me deixara de madrugada na estação. O inusitado horário de funcionamento da oficina, que abria à noite para cerrar as portas na hora do almoço, fazia do ateliê não apenas um abrigo seguro e agradável até a hora da saída do transporte para o mosteiro, mas também palco dos memoráveis ensinamentos oferecidos pelo sapateiro. A cidade ainda dormia. Naquele instante eu não tinha para onde ir. Enquanto Loureiro enchia três canecas com café fresco, o filho do livreiro sugeriu que eu me sentasse ao seu lado diante do pesado balcão de madeira. Simpático e acolhedor, Francis me convidou a participar da conversa. A minha opinião seria bem-vinda, um contraponto importante diante das ideias do sapateiro, sempre por demais desconcertantes e difíceis de assimilar, Francis fingiu o provocar. Entrando na brincadeira, concordei com ele. Loureiro sorriu e pousou as canecas fumegantes sobre o balcão. Apesar do bom-humor, o assunto era sério.

Francis era um rapaz simpático e querido por todos. Prestativo, estava sempre disposto a ajudar. Como costuma acontecer em casos semelhantes, a sua enorme facilidade em ceder era inversamente proporcional à sua dificuldade em negar. Embora fosse um homem generoso, a sua inegável bondade ocultava um inconfessável medo de desagradar as pessoas, caso manifestasse a sua verdadeira opinião ou vontade. Era assim desde menino. Tornara-se advogado, profissão do avô materno, por influência da mãe. Casara-se com a Cris, a primeira namorada, por desejo dela, das famílias e dos amigos próximos. Todos adoravam o jeito dinâmico e divertido da moça. Francis também. Embora ela fosse uma pessoa interessante e agradável, faltava o amor do tipo que alinha a história de duas almas numa mesma narrativa evolutiva. Aderira ao veganismo, não por gosto ou ponto de vista, mas para não desagradar à esposa, adepta fervorosa aos movimentos e modismos socioculturais contemporâneos. Nas conversas, evitava divergir com receio de gerar contrariedades e mal-estar. Acostumara-se a falar o que cada pessoa ou grupo gostava de ouvir. Sempre disponível às necessidades de todos, esquecera-se das próprias necessidades. Deixara para trás os sabores que apreciava e os caminhos que gostaria de trilhar. Tornara-se um pessoa bem diferente daquela que poderia se tornar. Não vivera as experiências que precisava, fundamentais ao seu aprendizado e formação existencial. Embora vivesse cercado de pessoas, sentia uma estranha e inexplicável solidão, confessou. Potencialidades e possibilidades restaram abandonadas em razão das expectativas alheias. O Francis era alguém que ele mesmo não reconhecia. Um tenor sem voz em uma ópera confusa. O protagonista apagado de uma trama difusa ditada por uma plateia movida por interesses próprios. Uma história sem história por total ausência de conteúdo autoral. Evitava pensar nisso. Dentro dele havia um imenso vazio que o devorava. Todos os dias, um pouco mais, se tornava um pouco menos. Precisava de medicamentos para dormir. A alegria, oriunda do encantamento por si mesmo e pela vida, fora substituída pela euforia dos prazeres ligeiros de valores rasos.

Na roda de amigos alimentava assuntos que não lhe interessavam à alma. Sem negar a importância da profissão, vivia uma rotina entre petições e audiências que causavam tédio, estranheza e desconforto por falta de afinidade e vocação. O senso de responsabilidade fizera dele um advogado sério e competente, com uma boa carteira de clientes face à retidão com que cuidava das ações judiciais, boa parte decorrente de uma vida social próxima àqueles que detinham o capital produtivo, capazes de arcar com os honorários proporcionais aos altos valores das demandas envolvidas. Era elogiado e respeitado tanto no fórum como nos salões da sociedade. Vivia um casamento de boa aparência e pouca intimidade. De mãos dadas e sorrisos protocolares, frequentavam festas, eventos e solenidades. Viajavam muito para uma importante metrópole distante a apenas duas horas de carro, onde o sogro, um prestigiado industrial, administrava um famoso parque têxtil.

Em casa, havia alguns anos, sob o pretexto que à noite ele gostava de ler enquanto ela adorava assistir TV, dormiam em quartos separados. O convívio com a esposa era educado e respeitoso, porém, sem o carinho e a empatia indispensáveis aos relacionamentos saudáveis e significativos. Conversavam amenidades. Falavam sobre as ocorrências sociais, modernidades, exposições pontuais, algum espetáculo que planejavam assistir, questões domésticas corriqueiras, como reparos e reformas na casa. Havia anos, não conversavam sobre os seus sentimentos, necessidades ou ideias que fugissem das estreitas margens que os restringiam de ir além de quem eram. Melhor, de quem Francis era. Cris adorava o seu estilo de vida. A programação do casal, assim como a rotina da casa, era de responsabilidade da esposa. Desde o que comeriam no jantar até a programação do fim de semana. Sem discussão nem divergência. O casal tinha três filhos, um número considerado ideal não só pela esposa, mas também pela mãe e pela sogra. Francis amava os filhos com intensidade e acreditava que seriam os elos a sustentar o casamento. Ocorre que, jovens adultos, os dois mais velhos cursavam diferentes cursos em universidades no exterior. O caçula partiria ao término do verão. Apesar das condições materiais que muitos consideravam ideal a uma vida feliz, para Francis não fazia mais sentido manter o matrimônio com a Cris. Não conseguia se imaginar naquela casa sem os filhos, convivendo somente com a esposa. Estava disposto a renunciar à advocacia e ao casamento. Precisava de uma pequena mala e um bilhete curto. Nada mais. Tinha amealhado uma boa poupança, suficiente para recomeçar a nova vida sem qualquer aperto financeiro. Pensava em morar distante dali. Talvez do outro lado do oceano, considerou. Queria ser ele mesmo, ansiava por liberdade, revelou. Em seguida, com a alma esmagada pelas próprias incompreensões, fez a pergunta cabal: Eu não brigo com ninguém. Não tenho problemas econômicos e gozo de boa saúde. Vivo cercado de pessoas que me querem bem, recebo constantes elogios…, mas não conheço a paz. Como isso é possível?

Loureiro bebeu um gole de café e ponderou: “Ninguém muda de vida apenas por mudar de cidade, profissão ou se divorciar. Caso faça, seguirá repetindo antigos padrões de comportamento em diferentes cenários. Será mais do mesmo. Para haver sentido, qualquer mudança precisa estar alicerçada em firmes e profundas transformações internas. São estas que apontam um novo sentido para a vida e o sustentam diante das dificuldades inerentes aos dias. Para se manter eivado em força e equilíbrio, o movimento precisar vir de dentro para fora, nunca na direção contrária, quando somente revela insatisfações ainda não compreendidas. O indivíduo se mostra rebelde ao sofrimento sem entender os motivos que lhe deram causa. Mudar o personagem não extingue a dor. Trazer à luz quem até agora ficou esquecido e renegado nos becos escuros de si mesmo é um dos verdadeiros significados da palavra renascer. Nada há de errado em mudar o corte de cabelo, o estilo das roupas, a casa, o emprego ou a profissão. Contudo, para haver uma genuína mudança será necessário entender e modificar o jeito de se olhar e respeitar. Há de haver a indispensável coerência entre aquilo que quer para si e as escolhas que realiza. O ator que troca a maquiagem para viver outro personagem de um texto que não escreveu segue apenas sendo um ator que atua em histórias outras, nunca a sua. Quem vive a história que escreve se torna o autor da própria vida. Apesar dos inevitáveis erros, dissabores e decepções inerentes às experiências e aprendizados, conhecerá as alegrias, delícias e conquistas de construir uma narrativa original. Um poder inestimável, fonte da beleza e do encanto existentes, e muitas vezes esquecidos, em todas as pessoas”.

Francis disse que precisava sair de casa, se afastar da esposa e dos sogros, e até mesmo dos pais. Assim como da rotina enfadonha do escritório e dos amigos sem afinidade. Desejava uma vida nova. Dentro de algumas semanas todos os filhos estariam estudando no exterior. Partiria em seguida. Queria voltar a dormir sem remédios. Ansiava por liberdade. Precisava encontrar a paz. Jamais conseguiria se não se afastasse de tudo e de todos. Sentia-se sufocado com tantas cobranças. O sapateiro o questionou: “Não existem cobranças. As pessoas pedem, você faz. Exigem, você obedece. Elas apenas se acostumaram a ser atendidas no momento que precisam. O poder que possuem foi você que lhes concedeu. A incapacidade de expressar o não vulgarizou o sim. O seu querer deixou de ter importância e valor. Não tem dono. É de todos e, por isto, não pertence a ninguém. Nem mesmo a você. Não há como responsabilizar o mundo pela caixa apertada que você escolheu viver”.

Francis argumentou que tinha sido colocado nesse lugar desconfortável desde garoto. Tudo mais foram desdobramentos dos condicionamentos da infância. Loureiro balançou a cabeça como quem admite a hipótese e ponderou: “Ainda que tenha sido assim, continuar dentro da caixa não é uma fatalidade. É uma escolha. Viver fora da caixa é outra escolha também disponível. Contudo, não basta sair da caixa. É preciso aprender a desmontar as paredes. Do contrário, correrá o sério de risco de entrar em outras caixas. Sucessivamente. Ainda que de cores e formatos diversos, continuam sendo caixas. Um círculo vicioso bastante comum, mas nem sempre perceptível. As paredes das caixas não são de concreto, dinheiro ou obrigações. Elas se erguem através de condicionamentos e emoções, medos e culpas. Do mesmo modo que se levantam, também se desmancham. Bastam novas ideias e sentimentos, atitudes e posturas. É justo e louvável que sinta a necessidade de encontrar um bom lugar para viver, onde possa desenvolver potencialidades e criar diferentes possibilidades de transitar pela vida. É um direito natural. Entretanto, saiba que este local não existe no mundo. Se não o encontrar dentro de você, jamais o encontrará em lugar nenhum”.  

Loureiro bateu com o dedo indicador no balcão de madeira para ressaltar o raciocínio: “Não existe evolução sem transformação. As mudanças são vitais à vida. Contudo, precisam ser essenciais. Senão, serão apenas devaneio e fuga, jamais uma estrada para a liberdade e a paz. Alterar a fachada de uma construção cujas estruturas estão em ruínas, ainda que o novo design seja admirado pelos belos adornos e contornos, em nada mudará a fragilidade do prédio. O risco de desabamento permanecerá iminente. Mudar de vida não significa trocar de mulher, casa, empregos ou amigos. Não que isso não possa acontecer. Porém, deve vir como consequência, nunca como solução. Enquanto incompreendido, o comportamento permanecerá errático”. Bebeu mais um gole de café e sugeriu: “Mude a maneira como se relaciona consigo. Como se olha e se trata. Preste atenção aos seus sofrimentos e emoções. Identificá-los ajuda no processo de autodescobrimento e indica caminhos rumo à transformação. Entenda as suas prioridades. Decida o que quer para si e faça. Respeite-se”. Arqueou os lábios em sorriso e concluiu: “Do contrário, mudam as pessoas, porém, os relacionamentos permanecem iguais”.

Atônito, o advogado ouvia com atenção. Loureiro seguiu com o raciocínio: “O mundo o trata como você se trata. Impor-se não carece de aspereza ou rispidez. Tampouco de esperar por situações favoráveis a minimizar esforços e dispensar a coragem. É ato de amor e coerência. Uma simples escolha. Simples por afastar os enganos e os subterfúgios; simples por depender unicamente da própria vontade. Trata-se de um compromisso consigo mesmo. Nada mais. Então, a lucidez se instala como uma inevitável e maravilhosa consequência”. Com os olhos marejados, Francis confessou que muitas vezes tentou modificar a sua postura em relação às expectativas dos outros. Por vezes conseguiu pequenos avanços para em seguida se arrepender e voltar atrás. Depois se arrependia por ter se arrependido. Não conseguia desagradar as pessoas. Queria mudar, mas algo dentro dele parecia o impedir. Assistia nos filmes os protagonistas realizando grandes transformações pessoais após um fato determinado e angular. Desejava uma cena assim na sua vida. O sapateiro esclareceu: “Filmes e livros são muito valiosos por mostrarem possíveis projeções da realidade, não como as coisas realmente acontecem. Sem lhes negar a enorme importância, precisam se adequar à quantidade de páginas ou à razoabilidade do tempo do espectador dentro da sala. A história é espremida para oferecer um olhar repleto de possibilidades, sempre à margem do tempo de preparação e efetivação às genuínas transformações individuais. Na vida é diferente, o ritmo é outro. O resultado e as dificuldades também. São reais. Assim como as vitórias e as conquistas”. Francis disse não ter entendido.

Loureiro explicou: “Desde tempos imemoriais, a aprovação alheia tem valor social. Pode representar privilégios, aplausos e, em alguns casos, até mesmo se tratar de uma questão de sobrevivência. Na busca por vantagens, o indivíduo oferece a sua autenticidade num mercado atávico à procura de interesses de superfície. Em troca ele deixa de lado as conquistas de profundidade. O preço é o desligamento da essência que o torna único. A anunciada batalha milenar do tesouro visível versus a bagagem invisível permanece atual. Não que sejam antagônicas, mas se faz indispensável entender qual será a prioridade caso estejam em conflito ou desalinhadas. De nada vale ganhar o mundo ao custo de esquecer a alma. A forja da conveniência molda o indivíduo ao gosto do mundo. O vazio se espraia à medida que a presença da alma arrefece”. Franziu as sobrancelhas e acrescentou: “Condicionamentos ancestrais não se desconstroem de uma hora para outra. O certo e o errado, o melhor e o pior, assim como o bem e o mal, muitas vezes permitem uma leitura evidente e escolhas fáceis. Noutras, nem tanto. Faz-se necessário descortinar camadas de enganos que repetidamente nos conduzem a indesejados destinos tristes. O cérebro precisa de tempo para reprogramar um novo olhar capaz de decidir de uma maneira diferente. Responder aos estímulos com lucidez ao invés de continuar a reagir por impulso necessita de reeducação diária e contínua. As verdadeiras transformações são lentas e graduais. Misturadas aos avanços, algumas recaídas também são naturais. Mudar um jeito de ser e viver é uma jornada de aperfeiçoamento que envolve um enorme e constante trabalho de desconstrução e reconstrução simultâneas em si mesmo. Não é fácil nem rápido”. Observou por instantes a chuva através da porta de vidro do ateliê e prosseguiu: “O que o sufoca não são as pessoas ou a rotina profissional, porém, a desconexão consigo mesmo. Existe um Francis ainda em semente à espera de florescer. Há muito pouco, ou mesmo nada, de você nos seus dias atuais. A verdade acovardada faz a vida se mover pela rota do medo, da culpa, da melancolia ou da mágoa. Desse modo, destinos tristes se tornam inevitáveis. Sonhos e dons restam suprimidos. O vazio instalado provoca a tensão interna que impede a paz. A cura consiste em trazer à luz a essência abandonada”.

Francis questionou como isso acontecia. O sapateiro foi suscinto: “A autenticidade é o sal da vida”. O advogado disse não ter entendido. Loureiro explicou: “O sal serve para dar gosto e preservar. A autenticidade está relacionada à capacidade de se manter alinhado aos próprios valores, olhares e virtudes; verdades, princípios e sabores, sem se deixar deformar pelas exigências e expectativas sociais. Abdicar de um molde considerado padrão na construção de si mesmo em favor de uma forja original capaz de temperar as características que o diferenciam e preservam a identidade no pleno exercício dos direitos naturais concedidos pela vida, sem pedir permissão nem esperar por aprovação, é fundamental à plenitude de qualquer pessoa. O seu antigo centro de poder, antes frágil e suscetível por depender da opinião alheia, encontrará o necessário ponto de equilíbrio, assim como a força vital ao movimento seguinte, ao passar a funcionar no eixo da própria consciência, onde o domínio é inteiramente seu”. 

O advogado nada mais disse. Como se precisasse de quietude e tempo para metabolizar as palavras do sapateiro, tinha o olhar distante para além da chuva que parecia observar sem ver. Numa retrospectiva silenciosa, repassava fatos e atitudes, procurando entender como qualquer situação sempre oferece escolhas inusitadas, diferentes daquelas com as quais nos habituamos a conviver. Em seguida, questionou como transportar a teoria à prática. Pediu para o sapateiro elencar situações simples em que a autenticidade é exercida. Loureiro o alertou: “Simples não significa fácil, porém, acessível a qualquer pessoa com ousadia, sensatez e amor-próprio”. Em seguida, enumerou algumas possibilidades: “Diga sim ou não conforme a própria consciência; pequenas concessões podem significar grandes retrocessos; lembre-se de que se trata da sua verdade, um artigo inegociável.  Estabeleça limites bem definidos em todas as suas relações; respeito não se pede nem se exige, mas se impõe através de atitudes firmes, serenas e claras, sem necessidade de qualquer aspereza; pessoas fortes e equilibradas são mansas, éticas e corajosas. Nunca esqueça que toda situação é perfeita para aplicar ao menos uma virtude, servindo também para, aos poucos, enfraquecer as próprias sombras. Não fuja dos desafios oferecidos pela vida nem abandone os seus sonhos e dons, pois, são vitais à evolução e à autenticidade. Contudo, tenha cuidado para não confundir sonhos – que são projetos reais – com devaneios – meros delírios movidos pela irresponsabilidade. Refaça a rota da existência quantas vezes for preciso para que se mantenha no rumo escolhido; se a vida e o mundo mudam, também precisamos modificar o jeito de viajar para conseguir seguir em frente”. Esvaziou a xícara de café e concluiu: “Para valer a pena, a vida precisa de amor, direção, movimento e sabor”.

Francis aquiesceu com a cabeça. Os seus olhos reverberavam a luz da descoberta e do encontro. As conquistas dependeriam dos movimentos seguintes. Ele perguntou se o sapateiro tinha alguma sugestão, bem objetiva, para que iniciasse essa jornada de transformação. Loureiro não regateou: “No começo da conversa você disse que precisava apenas de uma mala pequena e um bilhete curto para partir. Quanto a mala pequena, sem problema. Mas qual a razão de um bilhete curto ao invés de uma conversa franca com a Cris? Qual a dificuldade de expressar o seu olhar e falar sobre as suas preferências e necessidades? Por que se recusa a ouvir algo que possa não gostar? Ela também tem uma verdade. Sair dessa maneira, sem uma conversa franca, revela deselegância, incoerência e covardia. Enquanto não conseguir lidar com as diferenças e as contrariedades, continuará sendo mais do mesmo. Se manterá distante das mudanças que tanto anseia. Não existe liberdade na fuga. O medo envenena a paz. Um comportamento avesso a quem deseja atravessar a vida movido por ideias claras e bons sentimentos”. Em seguida, finalizou: “Entende que a autenticidade jamais será forjada pelo desrespeito à essência, verdade e virtudes? Somente a genuína autenticidade traz à tona toda a beleza da alma desconhecida. Tudo o mais são encenações espetaculosas de quem não sabe o que quer nem para onde vai”.

As últimas palavras do sapateiro tinham sido duras, porém, eram necessárias. Francis precisava entender que o melhor movimento exige não apenas compreensão, mas também preparação. O advogado fechou os olhos e respirou fundo. Confessou ter muito para pensar antes de tomar qualquer decisão. Fazer uma escolha é sempre um movimento significativo; a execução dela, não raro, ainda mais. De certo, apenas que mudanças angulares se faziam indispensáveis. Nesse instante, os raios de sol da manhã rasgaram as nuvens para trazer o estio como um sinal de mudança. Nada tinha ficado por dizer. Francis agradeceu, deu um forte abraço no sapateiro e foi embora.

A sós com o Loureiro, comentei que as suas palavras eram como as paredes rígidas do casulo que a borboleta não conseguirá romper enquanto não amadurecer as asas. Enfrentar a esposa era uma questão importante, porém, consequência de outra: enfrentar as próprias dificuldades consistia no autêntico desafio à sua espera. Somente ao vencer a si mesmo estaria pronto para voar. O artesão das ideias e do couro deu de ombros e disse: “Os voos mais bonitos não são os mais altos nem os mais longínquos, mas os que nos levam às profundezas abissais, onde conheceremos a forja original, a única capaz de moldar quem verdadeiramente poderemos nos tornar”. Ele se referia à nossa consciência.

Yoskhaz

4 comments

Terumi junho 10, 2025 at 1:34 am

Gratidão 🙏

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Raimundo Cirilo junho 10, 2025 at 1:19 pm

Grato pelos textos inspiradores e pelos ensinamentos.

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Márcia Campos junho 18, 2025 at 6:56 am

Obrigada 🙏 Precisava deste encontro comigo mesma 🙏

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JOANE FAUSTINO ARAUJO junho 20, 2025 at 8:33 am

Obrigada sempre um tiro certeiro

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