Quando o meu avô viajou para as estrelas eu era um adolescente. Lembro de passar os finais de semana, ao lado dos demais netos, na casa da Rua Curuzu, em São Cristóvão, um bairro operário do Rio de Janeiro, onde ele residia. Na mesma rua, do outro lado da calçada, funcionava a sua pequena fábrica de joias. Dizem que ele era um ourives de raro talento, mas a memória que tenho se restringe as correrias que fazíamos entre as máquinas e os galões de ácido da oficina, enquanto ele, preocupado, nos alertava dos perigos de um acidente. Lembro da goiabeira no fundo do quintal, com a fruta de polpa rosa e doce, dos almoços que a minha avó fazia e das brincadeiras comuns àqueles que foram crianças nos anos 1960. Em determinado momento, ele vendeu a casa, a oficina e se recolheu em uma pequena cidade serrana. Por diversos motivos, passamos a nos ver pouco, até que veio a notícia de que ele encerrara o seu ciclo. Após o funeral, a minha tia reuniu os oito netos para repartir os bens deixados pelo pai. Não havia dinheiro nem bens imóveis. Apenas alguns objetos de uso pessoal que ele usara ou colecionara por toda uma existência.
Para facilitar a divisão e evitar eventuais desentendimentos, ela repartiu os objetos em oito lotes. Cada neto teria direito a um. Haveria um sorteio para determinar a ordem de escolha. Ela, uma professora muito dedicada e culta, explicou que a palavra sorteio era originária do grego. O sufixo teosignifica deus e o prefixo sor, escolha. Para os gregos, sorteio seria como pedir aos deuses que tomassem a melhor decisão. Satisfeitos com o método e com a explicação, os netos, todos ainda adolescentes, concordaram.
Os oito lotes restaram assim distribuídos: um caríssimo relógio Rolex; um anel de ouro, finamente trabalhado pelo meu avô, cravejado com um rubi; uma caixa de instrumentos de precisão para ourivesaria, fabricados na Suíça; um retrato do meu avô, do tamanho de uma folha de caderno, feito a nanquim e assinado por Pablo Picasso, pintor que ele conhecera em uma viagem a Barcelona; uma rara pistola utilizada na Segunda Grande Guerra; uma milenar catana, tradicional espada usada pelos lendários samurais do Japão feudal; uma filmadora Super 8, muito utilizada na época pelo pessoal do Cinema Novo, um movimento cultural que revelou artistas fabulosos, tendo como pilar um conceito bem simples, pois bastava “uma máquina na mão e uma ideia na cabeça” para se fazer um bom filme. A Super 8, por ser portátil, era a máquina a que se referiam. O último lote era uma dezena de discos de vinil, ou LPs, como chamávamos na época, todos de cantores “fora de moda”. A minha geração “amava os Beatles e os Rolling Stones”. Eu adorava Rock e ouvia Jazz escondido dos meus amigos. Passávamos noites discutindo as novas bandas e os seus variados estilos. Aqueles discos do meu avô não faziam parte do universo musical que eu conhecia. Portanto, eram imprestáveis. Ninguém de sã consciência teria prazer em ouvir aquelas músicas chatas e ultrapassadas. Contudo, nenhum dos netos discordou da divisão dos lotes. Ninguém acreditava que seria o último sorteado ou a quem os deuses deixariam para trás.
Eu não acreditava quando olhava aqueles LPs no meu colo, sentado dentro de um ônibus voltando de Copacabana, onde a minha tia morava, para a casa que eu residia no Estácio. Os deuses tinham me abandonado. Sete entre oito possibilidades permitiam um bom retorno financeiro. Contudo, ser a oitava escolha de oito possibilidades, justo aquela que nada valia, era a perfeita representação da tragédia tão cantada na Grécia Antiga. Eu praguejava com os deuses e me lamentava a cada segundo, até que desci no meio do trajeto, no Centro da cidade. No Largo da Carioca tinha um sebo de discos. Sem dúvida, era a melhor solução. Preferível algum dinheiro à um monte de entulho. Fui atendido por um homem mal-humorado e de pouca conversa. Examinou os discos com desdém e me ofereceu uma quantia tão irrisória que me aborreceu. Vi que na mesma loja discos similares eram vendidos por dez vezes o valor que ele me propôs. Neguei-me a fazer negócio, mais pelo ultraje do que por gosto.
No Estácio, enquanto andava solitário na rua que morava, ponderei que seria de maior utilidade que eu entregasse os discos para quem apreciasse aquele estilo musical. Sem saber para quem oferecer e envergonhado por ser algo que eu mesmo não queria, deixei os LPs em cima de uma lixeira, do outro lado da calçada, onde funcionava a venda do seu Manolo. Deixei-os arrumadinhos, caso interessasse alguém que ali passasse. Em casa, fui para o meu pequeno quarto, coloquei Charlie Parker bem baixinho na vitrola, deitei-me na cama e fechei os olhos. Eu apenas queria esquecer um dia ruim.
Não demorou muito, a minha mãe bateu na porta do quarto. Ao abrir, ela me entregou os discos e disse: “O seu Manolo veio entregar. Disse que são seus”. Em seguida ela acrescentou: “Ah, ele disse também para você prestar mais atenção”. Girou nos calcanhares e retornou aos seus muitos afazeres. Eu não acreditava no que estava acontecendo, a tragédia virara maldição. Cheguei a rir daquilo que, naquele instante, classifiquei como uma ironia sem graça do destino.
Resignado, coloquei os discos no fundo do armário, em um lugar que eu não os visse. Para mim, a herança deixada pelo meu avô seriam os dias alegres passados na Rua Curuzu. Isto era de muita riqueza e me bastava. Dei o assunto como encerrado e os dias prosseguiram.
Aos poucos chegavam notícias de como os outros netos tinham conseguido boas quantias ao venderem os legados deixados pelo meu avô. Eu nada falava, mas me amargurava por ter sido abandonado pelo destino. Passado algum tempo, ninguém mais falou sobre o assunto e os fatos foram se desmanchando na minha memória.
Nessa época os meus pais se divorciaram. Desorientados, foi cada um para um lado e eu me vi sozinho no mundo, sem rumo nem prumo. Continuei a ter uma casa, mas não tinha mais uma família. Tinha um teto, mas não tinha um abrigo; tinha pão, mas nenhuma orientação. Demorei meses para entender que eu estava perdido. Existe a aparência e há a verdade.
Conversava com os amigos, no entanto, apesar da boa vontade de alguns, eles não tinham palavras que pudessem me orientar, consolar e arrancar da escuridão que eu estava. Quando estamos perdidos os sonhos se escondem. Isto é muito ruim e é preciso reencontrá-los a qualquer custo. Sonhos valem vidas.
As avalanches existenciais, embora não desejadas, são importantes por nos mostrar toda força que há em nós e do poder incomensurável da vida. As avalanches não destroem sonhos, apenas nos arrancam do sonho aparente e nos leva ao verdadeiro sonho; ao nosso propósito de vida, ao dharma. Então, os dons se revelam e um novo caminho se apresenta. Contudo, é preciso vontade; se faz necessário bater na porta para que ela se abra. Alguns se deixam soterrar sob o peso da incompreensão, da revolta e dos lamentos.
Passei dias trancados no quarto escutando todos os discos que gostava. Toda a dor do mundo parecia caber em mim. No fundo do sofrimento, lembrei de uma fotografia guardada no armário, na qual eu estava ao lado dos meus pais. Tive o ímpeto de rasgá-la. Quem sabe não ajudaria a dissolver o sofrimento que eu sentia? Quando fui pegar a foto, ela escapuliu por entre os meus dedos e se escondeu no fundo do armário, por entre aqueles discos deixados de herança. Pela primeira vez me deu vontade de examiná-los mais atentamente. Em nada mudou a impressão inicial; eram músicas chatas feitas por artistas ultrapassados. Fui vendo um por um. Com a arrogância típica daqueles que desconhecem a verdade, decidi dar uma oportunidade a um cantor cuja foto na capa mostrava um jovem que eu já ouvira falar, mas nunca me interessara. Tinha nome de santo, não de artista; ele se chamava Francisco. O sobrenome lembrava os invasores do norte, sibilei para mim mesmo: “Buarque de Holanda”. Coloquei o LP na vitrola. Era o início de uma revolução existencial.
Ouvi o disco até a agulha da vitrola se esgotar. Depois fui em busca de outros trabalhos desse compositor. Descobri que cada canção equivalia a um romance de quinhentas páginas, tal a complexidade oculta em histórias simples, como por exemplo, Quem te viu, quem te vê. Ou um tratado filosófico e humanista retratado em Geni e o Zepelim, em razão da sua beleza e profundidade, ao nos alertar que não devemos olhar para ninguém como algo, mas como alguém.
Mas, a partir de Francisco, comecei a ter contato com as composições espiritualistas de Gilberto Gil, quando ele dizia que para falar com Deus é preciso “desatar os nós”. O que dizer ao descobrir, na voz de Milton Nascimento, que eu também era um “caçador de mim”? Uma gama de compositores brasileiros, além das suas maravilhosas intérpretes, somente um pouco mais velhos do que eu, despontavam como planetas e sois de um universo filosófico. Na alma há muitos lugares para ir e se iluminar.
O estudo da Filosofia e da Metafísica entraram na minha vida muitos anos depois, mas os alicerces de um jeito próprio de pensar foram fundados por essa geração de artistas fantásticos, no sentido mais nobre da palavra. Seria necessário um livro para que eu pudesse relatar as belezas e as infinitas possibilidades oferecidas pelas músicas dessa geração de cantores e compositores no meu processo evolutivo. Em um momento muito escuro da minha vida, eles foram o mapa e a bússola para eu reencontrar a luz e prosseguir.
Foi o maior movimento artístico da história da humanidade. Sem desmerecer a grandeza da Renascença ou a importância do Impressionismo, mas se a arte vale pela sua força transformadora, o que dizer de Mestre-sala dos mares, Como os nossos pais, Olhos nos olhos, Refazenda, Animae Quereres, apenas para ficar com meia-dúzia entre mil canções sagradas. Sim, sagrado é tudo aquilo que nos torna melhor.
Um patrimônio imaterial que merece o seu devido Louvre. Um dia ainda haverão de prestar o justo tributo. No meu caso, tudo começou com Francisco, a quem ouso colocar ao lado de Shakespeare por retratar com incomparável mestria os conflitos e desencontros da alma, de maneira simples e genial. Sei que muitos irão discordar e apresentarão os seus motivos. Ao me expor à polêmica, lembro de outro maravilhoso artista dessa geração, o alquimista do Recôncavo, Caetano Veloso e a sua poesia não-linear no álbum Outras palavras: “é apenas um jeito de corpo, não precisa ninguém me acompanhar”.
A herança do meu avô é mais uma das muitas histórias que acreditei ter esquecido e, mais grave, sem lhe atribuir o merecido valor pelo que representou. Lembrei dela quando, muitos anos depois, estudava com Li Tzu, o mestre taoísta. No poema três do Tao Te Ching, tem um verso em que Lao Tsé nos alerta sobre o valor aparente e o valor verdadeiro de todas as coisas. Entender a diferença entre eles ou perceber a verdade além da aparência é angular para os passos seguintes no Caminho.
Li Tzu me fez uma pergunta retórica: “O que é mais valioso, o ouro ou a madeira?”. Sem que eu precisasse dizer palavra, ele explicou em poesia:
“Um pequeno remo de madeira e
um colar de ouro com pedras preciosas
estão à disposição de todos.
O povo prefere o colar;
gosta da sensação de poder que proporciona.
Os sábios escolhem o remo de madeira;
então, conseguem atravessar o rio”.
Aqueles LPs tinham um valor intrínseco e verdadeiro muito além do valor extrínseco, aparente e financeiro dos bens herdados pelos demais netos, pois, como valiosos remos, me ajudaram a atravessar um trecho tormentoso do rio como nenhum outro daqueles bens me permitiria. Não tenho certeza se os gregos antigos estavam certos quando afirmavam que um sorteio representa a escolha dos deuses. Hoje, apenas sei que os deuses não me abandonaram ao deixar como legado o último lote, justamente aquele que ninguém queria.
No mais, para entender a diferença entre a aparência e a verdade contida em todas as coisas, resta o conselho deixado pelo seu Manolo da venda ao me devolver os discos largados no lixo: “É preciso prestar atenção”.
Imagem: Denizkak – Dreamstime.com
12 comments
O poema 3 nos fala sobre a diferença entre preço e valor.
O preço é socialmente construído levando-se em consideração a matéria. No caso de pedras e metais preciosos o preço é colocado de acordo com a sua utilidade e escassez. No caso de posses, de acordo com a utilidade. No caso de obras, de acordo com a habilidade exigida para sua confecção. No caso da arte, de acordo com o dom do artista.
O valor é socialmente construído levando-se em consideração o subjetividade de cada cultura e da alma do mundo.
O preço e a utilidade podem mudar ao longo dos anos.
O valor é sempre absoluto e imutável.
Aquilo que realmente tem valor, nunca terá um preço.
Haja visto os textos repletos de sabedoria aqui publicados gratuitamente. Não têm preço. Têm valor.
Gratidão! 🙏
Lindo! Gratidão, Yoskhaz.❤️
Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz,
sem fim…
Você, seja lá quem for… Deus tudo vê e olha por todos nós! Só doa: amor incondicional, vida e oportunidades de evolução para tudo que nos rodeia… Não julga! Pois só sabe AMAR.
Namastê!
Maravilhoso! Como os seus textos me ajudam, obrigada!
Sim….presta atenção….
Maravilha! Como sempre, Yoskhaz! Gratidão… eterna!!!👏👏👏🙏
Como de praxe irei ouvir as músicas citadas. Yoskhaz você é soma, obrigado!
Amei essa história!!! Também ganhei um lote de vinil de meu irmão!!!
Maravilhosa palavras !!!
Dou grata por tanta luz!!!
Acredito que “prestar atenção” é o mantra da que precisamos entoar todos os dias. Com tantas distrações perdemos o mais importante do valor nos detalhes que tornam a vida mais alegre e bonita, não importa a situação. Adorei!