MANUSCRITOS VI

O lastro

O portão da casa estava sempre aberto. Li Tzu, o mestre taoísta, já tinha feito a yoga e a meditação matinal. Ele aguardava o término da infusão das ervas para o chá. O dia amanhecia. Meia-noite, o gato negro que também morava na casa, dormia em cima da geladeira, me olhou com preguiça e voltou a dormir. Liz Tzu me recebeu com um sorriso sincero e fez um gesto com a mão para eu me acomodar à mesa. Encheu duas canecas de chá e também se sentou. Naquele dia, estudaríamos o poema vinte e seis do Tao Te Ching, o livro sagrado escrito por Lao Tsé há mais de dois milênios. Sagrado é tudo aquilo que nos torna uma pessoa melhor. Como em todos os textos desse quilate, existem muitas camadas de aprofundamento que se revelam aos poucos, na medida que a percepção e a sensibilidade do viajante se aperfeiçoam. O Tao Te Ching é uma viagem rumo à luz. Eu tinha por hábito estudar cada poema antes da aula e as dificuldades eram enormes por causa dos códigos poéticos utilizados pelo autor. Comentei que o texto no qual nos debruçaríamos naquele dia, em seu verso de abertura dizia que O pesado é a raiz do leve.

Confessei não ter entendido. Adiantei-me para dizer que ficasse à vontade, caso quisesse aguardar a chegada dos outros alunos, para não ter de explicar duas vezes. Li Tzu sorriu com bondade e disse não ter problema conversarmos sobre o assunto. Em seguida, explicou: “Toda embarcação possui um peso ao fundo para manter o equilíbrio e melhorar a dirigibilidade. Lastro é o termo náutico pelo qual se denomina esse peso”. Bebeu um gole de chá e comentou: “Parece paradoxal o fato de se colocar um peso no fundo de um barco que, por sua razão de existir, não pode afundar. Contudo, é imprescindível. Diferente não é conosco. Todos precisam de um lastro para manter o equilíbrio e a rota. Isto traz leveza e orientação aos dias”.

Eu quis saber qual o lastro necessário para se ter leveza e orientação, como ensina o poema. Li Tzu explicou: “A coerência é esse lastro. Estar alinhado aos seus princípios, valores e verdades, no exato ponto que já as alcançou, é o eixo que proporcionará o indispensável equilíbrio, mantendo o barco firme, sem deixar que aderne ou fique à deriva diante do mar bravio e das tempestades da existência. Ao mesmo tempo, o lastro manterá o leme dentro das águas da vida para que você possa definir o rumo do próprio destino”. Indaguei por qual motivo essa coerência, tão útil e necessária, era considerado um peso. O mestre taoísta franziu as sobrancelhas e respondeu com outra pergunta: “Já notou a dificuldade em ser sincero consigo mesmo?”. Compreendi de imediato. Para trabalhar a verdade em constantes diálogos internos, preciso me olhar sem qualquer disfarce, não mentir para mim mesmo e desamarrar os nós dos condicionamentos, preconceitos, mágoas e lembranças dolorosas. Do contrário, inexistirá o livre pensar. Enfim, é um peso por não se tratar de um exercício de fácil execução. 

Li Tzu ponderou: “As dificuldades são muitas e imponderáveis. Por isto, no verso seguinte, Lao Tsé diz que A quietude domina a confusão. Na iminência de um conflito, ou ao nos sentirmos desorientados, devemos buscar a quietude apenas encontrada quando o ego se desnuda perante a alma. Neste encontro silencioso e imprescindível, conseguimos retornar ao estado primordial, anterior à Criação, onde sempre será possível resgatarmos a nossa genuína força e equilíbrio original”. Em seguida, me lembrou: “Nunca esqueça, a sua essência é de luz”.

Nesse instante, fomos interrompidos pela chegada de dois alunos que, assim como eu, estavam hospedados na única estalagem da pequena vila chinesa. Eles me avisaram do telefonema de um dos meus primos, o Alfredo, que tentava me comunicar o falecimento do tio Luiz, de quem eu gostava muito. Retornei a ligação. A conversa foi tensa. Para minha surpresa, ele me acusava de ter dado causa à morte do seu pai, o tio Luiz. Fiquei irritadíssimo com a acusação e pelo absurdo do motivo alegado. O tio Luiz não era somente um parente, porém, um amigo. Tínhamos tido um excelente relacionamento e até mesmo feito alguns negócios. Nunca houvera qualquer problema. Ele era um empresário bem sucedido e tinha adquirido um bom patrimônio no decorrer dos anos, todo investido em imóveis. Ocorre que, havia alguns anos, a sua empresa precisou de investimentos para se modernizar. Como o momento não estava propício à venda de imóveis, ele ficara sem liquidez. No entanto, não podia esperar muito sob o risco de perder espaço para a concorrência. Como eu tinha um dinheiro guardado, sem previsão de uso, emprestei para ele. Não houve contrato formal; as nossas palavras bastavam. O tempo passou. O prazo combinado para a devolução também. Um pouco antes de viajar, tínhamos almoçado e falei que precisaria daquele dinheiro, pois tinha me separado dos meus sócios na agência de publicidade. O tio Luiz disse que cuidaria logo do pagamento. Falei que, embora necessitasse da quantia, ele deveria agir com calma para não fazer um mau negócio. Foi um encontro alegre e nos despedimos com ele dizendo para eu não me preocupar. Em breve, acertaria a dívida. Eu não tinha nenhuma dúvida quanto a isto. Trava-se de um homem honesto.

Ocorre que a empresa dele enfrentava sérias dificuldades. Após ter feito o empréstimo comigo, vendeu os imóveis para injetar mais dinheiro na firma. Eu não sabia disto. Só tomei conhecimento naquele instante, enquanto falava com o Alfredo. De acordo com o meu primo, a tensão gerada pela minha cobrança, somada à dificuldade de quitar a dívida, gerou o infarto que encerrou o ciclo existencial do tio Luiz. “Você é responsável pela morte de papai. Nunca deveria ter lhe cobrado; foi muita insensibilidade da sua parte”, foi a acusação que ouvi antes dele desligar o telefone.

Fiquei abalado. Irritado no primeiro instante. Disse para Li Tzu que retornaria imediatamente ao Brasil para ter uma conversa muito séria com a minha família. Era preciso esclarecer a situação, eu não queria que as palavras do Alfredo se tornassem definitivas. Não era justo. O mestre taoísta me questionou: “Como ficará se as pessoas não aceitarem os seus argumentos?”. Respondi que não pensara nisto, mas admiti que seria desagradável. O mestre taoísta sorriu diante do acaso de estarmos, momentos antes, conversando sobre o poema vinte e seis do Tao Te Ching e recitou o verso seguinte: “Por isso, o sábio viaja todos os dias sem perder de vista a sua bagagem”. Antes que eu fizesse qualquer pergunta, ele se adiantou: “Faz-se necessário viajar dentro e fora da gente todos os dias. No mundo, o movimento Yang, de viver as experiências; na alma, o movimento Yin, para elaborar tais experiências. Então, retornar ao mundo, cada vez mais forte e equilibrado; assim, manter o lastro para a navegação da vida. O poder deste lastro vem do valioso peso de nos mantermos coerentes aos nossos princípios e valores, estabelecendo as escolhas nos limites das verdades que já as alcançamos. Isto nos torna virtuosos diante das dificuldades, nos mantendo luminosos diante da escuridão. Dignificamos a nossa essência que, composta da mais pura luz, irá se intensificar. Permite nos tornarmos, de fato, a luz do mundo”. Fez uma pausa antes de me lembrar: “Assim como o peso do canoeiro é o lastro da canoa, a bagagem da viagem é o próprio viajante; sua consciência, virtudes e escolhas. Tão e somente”.

Embora entendesse os argumentos, manifestei o desagrado em me tornar o alvo dos comentários sobre supostas imperfeições perante a família, principalmente quando elas não eram justas e, até mesmo, desonestas. Li Tzu tornou a usar o verso seguinte do mesmo poema: “Embora existam interessantes paisagens, o sábio permanece sereno e distante”. Bebeu um gole de chá e esclareceu: “A viagem está repleta de paisagens, ora tentadoras, ora provocadoras; são muitos os convites para se desviar do Caminho. São vários os entorpecimentos disponíveis para nos distrair e enganar; para nos fazer fugir dos compromissos e abandonar as dificuldades, como se não fossem eles, compromissos e dificuldades, as molas impulsionadoras da evolução”. Interrompi para perguntar que entorpecimentos eram esses a que ele se referia. O mestre taoísta esclareceu: “Entorpecimento é a perda de percepção e sensibilidade provocada por uma substância, emoção ou ideia. São inúmeras as possibilidades de fugas e mentiras que temos à disposição. Uma das mais vulgares é a revolta gerada pela sensação de rejeição. As lentes pelas quais vemos tanto o mundo quanto a nós mesmos ficam embaçadas, impedindo de enxergar a beleza da vida; ficamos sem o filtro que nos permite discernir a voz das sombras. Perdemos o lastro. Então, o leme fica sobre a linha d`água, nos deixando sem dirigibilidade. À deriva, a navegação sucumbe ao mar bravio da existência. Haverá sofrimento e escuridão. Contudo, diante das inevitáveis adversidades, o sábio se mantém sereno para não se perder do seu eixo de luz, composto por suas verdades, princípios e valores. A serenidade impede que as emoções aviltem os pensamentos. Sabe dos convites doces de gosto amargo oriundo dos conflitos que atiçam as paixões densas, mas recusa as fugas e se nega às mentiras. Apesar da acidez de algumas situações, ele não carrega dissabores. O sábio permanece distante”. Indaguei qual o significado da palavra distante no poema. Ele explicou: “Possui o sentido de transcendência; fala da verdade oculta por trás de todas as aparências. O sábio permanece atento para ficar distante, sem se deixa enganar pelo fluxo da multidão, as ilusões dos entorpecimentos nem pelos atalhos que não conduzem a lugar nenhum. Isto faz com que nunca se perca de si mesmo”. 

Franziu as sobrancelhas e me lembrou: “Se a verdade alheia se mostrar valiosa, use-a para se transformar. Seja humilde. Refaça o equívoco e os danos; redirecione a rota. Aproveite para evoluir. Do contrário, se for apenas pela sensação de aprovação, entenda que se trata de fraqueza e desequilíbrio que precisam de olhar mais apurado. Só os tolos lutam para dominar a opinião dos outros. Para o sábio, viver silenciosamente sob o seu eixo de Luz, basta”. 

Aos poucos, outros alunos do curso chegavam. Estava na hora da aula, na qual foi abordado a parte inicial do poema. Como de costume, tínhamos um generoso intervalo para almoço. Aproveitei para ligar para alguns parentes. Sem que admitisse, eu procurava apoio frente às acusações do meu primo. Alguns evitaram a abordagem, o que me fez supor uma condenação implícita; outros, se manifestaram pelo absurdo do comportamento do Alfredo. Estas aprovações, ao modo como me chegaram aos ouvidos, fizeram soar as cornetas marciais. Convenci-me que precisava desfazer aquela marca de imperfeição. O meu primo tinha de admitir o erro e se desculpar. Do contrário, eu não conseguiria me livrar daquela pecha. Foi o que fiz. Aceitei o convite para acender a fogueira na qual eu iria arder em chamas. Liguei para o Alfredo e fui muito mal recebido. A convicção do meu primo quanto a minha culpa pela morte do seu pai se mostrou inabalável. Tentei argumentar, mas todos os esclarecimentos foram rechaçados com a agressividade do desprezo. Discutimos. Ele deixou claro que nada que eu fizesse poderia sanar o mal causado. Eu era devedor de uma dívida impagável.

Quando retornei à casa de Li Tzu, eu estava transtornado por indignação e revolta. O mestre taoísta disse apenas que eu aguardasse com os demais alunos na sala de aula. Ao retomar o poema, recitou o primeiro verso da segunda parte do mesmo poema: “Como pode um príncipe, dono de mil carros de guerras, perder o seu reino?”. Em seguida, esclareceu que príncipes eram os títulos pelos quais se denominam os senhores feudais, muito ricos e poderosos à época, donos de valiosos patrimônios e enormes exércitos particulares. Muitos desperdiçaram a oportunidade de desenvolverem a prosperidade em seus reinos ao se envolverem em guerras absurdas e insensatas até o seu completo esgotamento. 

Em seguida, acrescentou: “Diferente não é conosco. Embora sejamos possuidores de múltiplos dons, talentos e oportunidades, desperdiçamos as possibilidades de prosperidade que a vida nos oferece por permitir que toda a nossa força e equilíbrio se dispersem em lutas que nos desviam do Caminho e nos afastam da Luz. Da nossa própria Luz”. O mestre taoísta prosseguiu: “Apesar de tudo que sabemos, ainda observamos as dificuldades como empecilhos ao invés de compreender que nelas residem as melhores oportunidades de evolução que temos. São os problemas e as contrariedades que nos permitem ir aonde nunca estivemos dentro de nós mesmos. Somente lá conseguiremos elaborar a realidade que depois viveremos no mundo. Assim, perdemos a chance de ser quem nunca fomos. Insistimos nos equívocos até sucumbir. De nada valem dez mil carros de guerra se teimo em lutar a batalha errada. Haverá um sem fim de derrotas”.

Um aluno perguntou qual seria a batalha certa. Li Tzu esclareceu: “Vencer a si mesmo; iluminar as próprias sombras é o combate da vida dos sábios. Vencer os outros, se mostrar maior, o dono da razão, conseguir a aprovação do mundo, viver nos lamentos das imperfeições alheias são algumas das guerras de morte dos tolos. A luz que me orienta os passos é a minha verdade, princípios e valores, jamais a admiração de ninguém. Quando não me afasto de mim, nada me falta, nunca me perco. As paisagens passam a oferecer novas cores, tons e nuances à viagem, não mais desvios para fugas, motivações para mentiras e conflitos desnecessários. O reino prosperará”. 

Olhou para mim e disse para a turma: “O príncipe é o ego; o governante do reino. A alma é o sábio. Sem as orientações do sábio, o príncipe permanecerá imaturo, se esvaindo em lutas que levarão ao desequilíbrio e ao esgotamento das suas forças. Perderá o reino; deixará de ser dono de si mesmo”.

Aquelas palavras eram a interpretação de um poema escrito há mais de dois mil anos. No entanto, era a exata leitura do que acontecia comigo. Fiquei desconcertado. Eu queria pensar; eu precisava encontrar comigo para resgatar o meu lastro. Pedi licença e fui para a sala de meditação. Acendi um incenso e coloquei para tocar uma série de mantras tibetanos. Mergulhei em mim. Eu tinha de recompor a minha bagagem se quisesse prosseguir a viagem; eu precisava me realinhar à minha verdade, princípios e valores, deixar que as virtudes comandassem as minhas escolhas, caso almejasse a prosperidade do meu reino.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Todos já tinham ido embora quando retornei. Anoitecia. Li Tzu preparava uma sopa de legumes com tofu. Notei que havia dois pratos sobre a mesa. Olhei para ele que fez sim com a cabeça. Sentei-me. O mestre taoísta nos serviu e comemos sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para lhe agradecer a orientação. Falei entender o ponto no qual eu estava prestes a me deixar seduzir por uma paisagem que estimulava o meu orgulho e vaidade, cuja causa sempre será a insegurança originada pela ausência de lastro. Um desvio cuja entrada parecia irrecusável, mas terminava em um pântano lodoso. Um olhar possível apenas quando nos mantemos serenos e distantes para ver além das desnecessidades e das aparências do cotidiano. 

O mestre taoísta balançou a cabeça em anuência e disse que eu chegara sozinho ao último verso do poema, A incoerência seca a raiz; a confusão faz ruir o governo. Em seguida, explicou: “A raiz é o lastro da árvore, indispensável para que as grandes ventanias não a arranquem do solo, mantendo-a no prumo. Raízes amplas e profundas mantêm a árvore saudável, mesmo nos períodos de rigorosas secas.

Em seguida, concluiu: “A ausência de lastro produz desequilíbrio e insegurança. A realidade fica confusa e os problemas se tornam mais fartos que as soluções. Desorientado, as forças do indivíduo se dissipam por falta de rumo. Os esforços se tornam improdutivos; ele se esgota em sofrimento. Não haverá mais clareza no pensar nem leveza no sentir. Se acumularão os enganos sobre si mesmo e sobre todas as questões que o envolvem. O indivíduo se torna o seu próprio predador. Do reino, apesar das inúmeras riquezas, somente sobrarão as ruínas de uma história triste: tudo aquilo que ele poderia ter sido, mas não foi”. 

Terminamos o jantar em silêncio. Nada mais precisava ser dito. Tampouco refeito. Bastava seguir em frente sem me deixar deter ou desviar pelas paisagens da viagem. 

Sem lastro, nenhuma navegação é possível. Não haverá qualquer destino.

9 comments

Fernando janeiro 25, 2021 at 3:22 pm

Gratidão profunda e sem fim…

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Juliana janeiro 26, 2021 at 4:00 pm

Gratidão!!! Seus textos são pura luz, aprendi muito com você.

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Rejane Cipriano janeiro 27, 2021 at 6:23 am

Gratidao, gratidao e gratidao.

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SCHWEITZER janeiro 28, 2021 at 3:50 pm

Excelente.

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Vidyapriya janeiro 28, 2021 at 8:14 pm

Sempre muito bom, gratidão, Namaste

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Terumi janeiro 31, 2021 at 5:11 pm

Gratidão! 🙏

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Lindemberg Alves fevereiro 5, 2021 at 11:29 am

Esse é o tempo de nos abraçarmos envoltos em pleno amor por quem somos de verdade, sem qualquer sombra causada pelas máscaras que nos fazem viver uma irrealidade em sobreviver sem Vida. Tenho muito a agradecer a vcs, os textos têm me alimentado muito, e me ajudado a me encontrar na profundidade onde eu esperava ansioso por mim 🙏🏻
Desejo muita prosperidade a vcs e a esse projeto, que alcancem cada vez mais almas e seres em busca de plenitude.

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Carmen fevereiro 21, 2021 at 2:26 pm

Profundo.. Namastê !

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Viviane Barbosa março 12, 2021 at 9:24 am

Gratidão infinita pelo texto, veio em um momento oportuno e com certeza foi bálsamo para à alma.

Que estejamos todos na luz e no AMOR.
Ahooo.

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