MANUSCRITOS VI

O duelo e o dono

Eram dias como outros quaisquer. Eu caminhava havia um bom tempo nesse processo de me conhecer melhor para fazer florescer toda a beleza da minha alma e, somente assim, usufruir das maravilhas da vida. Estudava os textos deixados pelos sábios ancestrais e me esforçava para entender como se aplicavam no cotidiano como instrumentos de transformação do bem viver. Alguns ciclos tinham sido superados, mas eu tinha a clara percepção de que, a partir de um determinado momento, algo emperrara o fluxo desse desenvolvimento. Não tinha a menor ideia do que era. No meio da noite, eu acordava assolado por memórias desagradáveis, fosse de situações das quais havia desconforto pelas minhas escolhas no passado, fosse por atos que alguém tivesse me prejudicado. Pela manhã fazia uma prece, meditava e praticava exercícios em prol de uma harmonização interna, com o compromisso de aproveitar as inúmeras oportunidades oferecidas a cada dia para avançar na minha jornada evolutiva. Eu ficava bem, no entanto, logo surgia uma situação para me tirar do equilíbrio. A fase dos descontroles emocionais tinha ficado para trás, já não mais brigava com os outros. Entendia que para viver de acordo com a minha verdade não era preciso convencer ninguém sobre elas. Tampouco me ofendia por causa das opiniões alheias. Contudo, de modo constante, mesmo sem novos fatos, eu era envolvido por pensamentos desagradáveis e emoções densas que me furtavam a valiosa leveza das horas. Tentei negar essa realidade até que o peso se tornou grande demais para que fosse ignorado. Enfim, apesar de todo o esforço e busca, havia a clara sensação de que eu estava sendo menos do que podia ser. Algo me atrapalhava sem que eu conseguisse identificar onde estava nem quem era o algoz. Mais grave, me dei conta que era uma realidade vivida desde muito tempo.

Naqueles dias, eu andava pelas ruas, quando avistei o Antônio, um amigo muito estimado, professor de Química aposentado de uma universidade carioca. Ele era um homem de convívio agradável, com enorme cultura e um modo simples de ser. Sereno, de natureza mansa e com um jeito peculiar de viver. Entre outros atributos, demostrava um interesse sincero em acolher as pessoas. Todos se sentiam valiosos ao conversarem com o Antônio. Por causa de um acidente, quando ainda jovem, andava com auxílio de uma bengala. Ele não viu quando acenei e, para minha surpresa, entrou em uma academia de jiu-jitsu. Percebi que ele levava no ombro um quimono enrolado para os treinamentos. Não fazia sentido que um homem culto e espiritualizado como ele gostasse de artes marciais. Hesitei por alguns instantes e fui verificar. Incrédulo, o assisti treinando a aplicação de golpes, tanto de ataque quanto de defesa. Fui embora sem que o Antônio me visse. 

Algumas semanas depois, fui assistir a um ciclo de palestras cujos temas versavam sobre a correlação, cada vez mais próxima, entre ciência e espiritualidade. Antônio ministrou uma das palestras. Em razão da sua singular maneira de pensar, a palestra foi maravilhosa. E desconcertante. Tive a sensação, como a maioria dos presentes, de que muito conteúdo tinha sido oferecido, mas somente uma parte restara entendido. Muitas das suas palavras precisavam de tempo para encontrarem o devido lugar na mente e no coração. Não tive dúvida de se tratar de um homem à frente da nossa época.

No entanto, havia uma contradição naquele homem, amante de um jeito próprio e sublime de ser e viver, e o seu inexplicável gosto pelas artes marciais. Eu queria entender. Convidei-o para um café, prontamente aceito pelo Antônio. Devidamente acomodados à mesa de uma cafeteria próxima, após os sinceros elogios quanto à sua palestra, expressei a admiração que eu tinha por ele. Em seguida, comentei sobre o fato de ele treinar jiu-jitsu que, a meu ver, era uma incoerência. Antônio me ouviu com a sua habitual serenidade e, sem seguida, começou a me contar uma história: “Havia muitos anos, um jovem ainda na universidade, era amante das artes marciais. O fato de saber lutar e derrotar os seus oponentes, cada vez com maior mestria, o fazia se sentir poderoso e senhor de si. Apaixonado por uma bonita moça, tinha planos irrevogáveis de felicidade ao lado dela. No entanto, a vida é de viés e nem sempre acolhe os nossos desejos”. Fez uma pausa, os seus olhos pareciam em viagem para terras distantes, e prosseguiu: “É perfeito que seja assim. Dias de calmaria, com céu azul e ventos de popa, embora sejam desejáveis e indispensáveis, podem nos conduzir ao porto errado, um lugar onde a paz é uma ilusão. A verdadeira paz somente é possível quando aprendemos a manejar o barco e a navegar sobre as mais terríveis tempestades e, mesmo assim, conseguir aproveitar”. Tornou a fazer uma pausa e acrescentou: “Nenhuma força advém da sensação de superioridade sobre os outros; isto é prepotência, arrogância, orgulho e vaidade, todas essas sombras são filhas do medo de descobrirem que, no âmago do ser, embora não admita nem para mim mesmo, percebo a fragilidade que não aceito. A verdadeira força surge à medida que nos aproximamos da Luz. Um poder sutil, pacífico, que não faz barulho nem propaganda, porém, é invencível. Nada que haja no mundo poderá nos furtar ou arrefecer tamanha força. Inexiste outro porto seguro. Não se chega lá por acaso. Tampouco, ninguém o alcança enquanto não entender quem precisa estar no comando do barco”. 

Bebeu um gole de café e retornou à história: “Certo dia, foi surpreendido pela decisão da noiva em encerrar o compromisso. Honesta, se declarou apaixonada por outro homem. Quase todas as pessoas já passaram pela dor da separação. É um sofrimento dilacerante, mormente quando ainda somos imaturos emocionalmente e ainda desconhecemos a grandeza do amor. Não foi diferente com aquele jovem. Dias assim, nos faz imaginar que não haverá mais manhãs de sol. Pensamentos e emoções se conflitavam e o confundiam. Ele sabia que a moça tinha o direito de partir na hora que quisesse. De outro lado, era assaltado por ideias que o lembravam de quanto amor tinha dedicado àquele noivado e, ao final, restara trocado por outro homem que ela conhecera havia pouco tempo. Passou dias envolvido por esse turbilhão de emoções e ideias, entre a escuridão e a claridade. Não percebia que se envolvia em uma espiral descendente de sombras que, a cada hora, diminuía a sua capacidade de pensar com clareza e sentir com serenidade por estar sob crescente influência do ciúme e do vitimismo. Até que soube que o homem pelo qual a moça tinha se apaixonado era o lutador de uma academia rival, a quem tinha vencido em um torneio próximo. Imaginou a pilhéria que sofreria do tipo ganhou o campeonato, mas perdeu a mulher, comuns às almas ainda espalhafatosas, desvairadas e perdidas. Convenceu-se que uma surra no novo namorado da moça, além de um gesto de justiça, restabeleceria a sua honra, calaria os detratores e arrefeceria a sua dor. Neste estágio evolutivo, não se conhece a diferença entre orgulho e honra. Tomado por uma fúria que não era mais capaz de controlar, montou na motocicleta e foi atrás de um absurdo acerto de contas. A pressa e o ódio fizeram com que uma ultrapassagem imprudente causasse um grave acidente. Uma das fraturas, a do fêmur, o deixou com sequelas definitivas. O período forçado de quietude e solidão a que foi submetido, impossibilitado de sair de casa, o fez olhar para dentro de si mesmo e a rever muitos dos conceitos que orientavam a sua vida. Então, decidiu se tornar um samurai”.

Olhei para bengala apoiada à mesa e, em seguida, para os seus olhos. Antônio balançou a cabeça em anuência.

Antônio me perguntou: “Em um curto intervalo de tempo, me refiro a questão de poucos minutos, você já balançou entre pensamentos luminosos e ideias sombrias? Titubeou entre sentimentos sutis e emoções densas?”. Confessei que aquela era minha rotina naqueles dias. Ele quis saber quem costumava vencer a luta e determinar as minhas escolhas. Com sinceridade, admiti que me parecia um duelo sem vencedor e sem fim. Antônio balançou a cabeça e esclareceu: “Quando não sabemos quem ganhou o combate, não tenha dúvida, as sombras o venceram. Em escala pessoal, é a autêntica batalha entre o bem e o mal pelo domínio de um reino. Quando vencem as sombras, significa que você perdeu. Longe da Luz, distante de essência que o identifica”.

“Não raro, perdemos o domínio sobre nós mesmos. Se não sou dono de mim, de que vale qualquer outra coisa na vida?”.

“Todos os dias travamos essa batalha intrínseca, com danosas consequências. Enquanto existir, haverá sofrimento. Contudo, o maior problema não é a dúvida, pois elas fazem parte do nosso processo de transição, das sombras para a luz, e posterior amadurecimento. O perigo é quando acreditamos que o mal não existe em nós e usamos a maldade como suposto instrumento de justiça, quando, em verdade, não passa de mera satisfação pessoal. Não sabemos quem somos, mas nos iludimos na certeza que conhecemos os outros”.

Argumentei que o raciocínio era muito interessante, mas estava curioso para entender de qual maneira as artes marciais participavam desse processo autoconhecimento e evolução. Antônio explicou: “Na tradição dos antigos samurais, existe um código de conduta denominado Bushido. A honra é o eixo norteador das suas atitudes. No entanto, como falamos ainda pouco, honra nada tem a ver com orgulho e vaidade como muitos acreditam. Honra é a exteriorização da dignidade interna. Uma alma imatura é como um reino em ruínas. Dignidade se expressa na maturidade do ser e se resume no tratamento oferecido a todos as pessoas em comunhão ao cuidado que gostaríamos de receber, caso estivéssemos no lugar delas. Por consequência, se faz indispensável haver Luz para que possa existir dignidade. Na escuridão, não consigo ver nem a mim mesmo com exatidão. Logo, me faltará clareza para enxergar qualquer outra pessoa”. Bebeu mais um gole de café e acrescentou: “Ao contrário do que se propagou no Ocidente, no Bushidoa vitória não se caracteriza em derrotar o oponente, mas em superar a si mesmo, vencer as próprias dificuldades, se tornar uma pessoa diferente e melhor a cada dia. É fazer o bem que estiver ao seu alcance. Isto é impossível sem estar adequado a verdade já alcançada pelo samurai. Esta coerência entre o saber e o viver forma o ser e se denomina honra, como movimento externo, ou dignidade, como força interna”. Esvaziou a xícara e disse: “O samurai não teme a morte porque sabe que a vida vai além da existência, mas sabe também que para atingir o degrau mais alto do Bushido, terá de fazer com que a mente e o coração se unam em um mesmo propósito com a Luz e se tornem a única espada. A sua espada”.

Sugeriu que pedíssemos mais café. Aceitei a proposta de imediato. Ele continuou com a explicação: “Venho aos treinos de jiu-jitsu por alguns bons motivos. É uma maneira de manter o corpo ágil e forte, nos limites da idade que tenho, sem nenhum exagero. A atividade física me ajuda a afastar a preguiça, uma inimiga do tempo. Não faço do tempo um adversário; seria uma estupidez derrotar aquilo que não pode ser vencido. Faço dele um aliado. O tempo me oferece a matéria-prima dos dias para que eu consiga vencer o meu duelo”. 

“Os novos golpes que aprendo nos treinos me remetem às infinitas possibilidades de compreender quem sou e como atravessarei a vida. Servem para me lembrar que dentro de mim existe uma luta, o verdadeiro duelo, entre luz e sombras. Isto definirá se mando em mim mesmo, se sou o verdadeiro dono da minha consciência ou um mero fantoche que acompanha o efeito manada que move o mundo. Você apenas se torna um samurai quando já consegue empunhar a sua espada e cortar as cordas com as quais as sombras o manipulam”.

“Ainda mais importante, é indispensável que se mantenha livre das sombras todos os dias, pois, ao menor descuido ela o envolverá em suas teias maliciosas de raciocínios tortuosos e emoções aviltantes, com o intuito de fazer com que evite o bom combate e teime na estupidez de culpar o mundo pelas minhas amarguras. Assim, quando piso no tatame, me recordo sobre onde está a verdadeira arena e quais são os reais oponentes que tenho de enfrentar. Somente isto faz um samurai percorrer o Bushido”.

Ponderei que todos os dias travamos novos e velhos combates. Antônio concordou. Indaguei de como ele sabia quando ganhava ou perdia uma dessas lutas. O samurai esclareceu: “Quando me sinto amargo, triste ou agressivo, são sinais de derrota. A alegria, a serenidade e a leveza dos dias significam um claro avanço. Quando venço, permito me envolver em felicidade pela conquista alcançada. Nas derrotas, me animo pela felicidade de jamais desistir de buscar a minha Luz”.

Comentei que, embora interessante, era bem difícil se tornar um samurai. Antônio me contou um segredo: “Tem um golpe que todo samurai precisa conhecer se quiser prosseguir no Bushido. O perdão. Um golpe nunca fácil de aplicar, porém, indispensável. O segredo está em se lembrar da dignidade, o eixo central por onde o guerreiro caminha. A dignidade consiste em tratar os outros no mesmo compasso que gostaria de ser tratado, caso as posições se invertessem. As minhas imperfeições, erros e equívocos necessitam ser perdoados. Logo, não há como negar igual tratamento ao mundo; todos precisam de perdão. Não posso exigir de ninguém a perfeição que não tenho a oferecer. Para perdoar se faz necessário haver humildade no gesto inicial e compaixão no momento seguinte. Atos repletos de sabedoria e amor. Sem perdoar ninguém conhecerá a liberdade, pois, permanecerá amarrado as teias da mágoa, do vitimismo ou da culpa. Viverá como uma marionete manipulada pelas sombras das amarguras e dos sofrimentos. Nunca se tornará dono de si mesmo nem conhecerá todo poder que existe na própria consciência”. 

“Em suma, você será o seu inimigo mais cruel e fará do tempo também um oponente”.

Ponderei que se tratava de um duelo bem complexo. Antônio concordou usando mais um dos seus argumentos desconcertantes. “A virtude que faz possível entender cada passo é a simplicidade. Contudo, a simplicidade quase nunca é fácil. Ela exige a maturidade de quem já foi ao âmago de si mesmo para retirar as máscaras e despir as fantasias que ocultavam a própria essência. Ela, a essência, o define e o identifica, portanto, é quem precisa estar na arena para a luta do aperfeiçoamento, algo impossível se uso de subterfúgios e me faço representar pelo personagem de quem não sou”.

“A simplicidade retira os frágeis escudos que criamos para não enfrentar a realidade. São atributos e características que não possuímos, que apenas enganam a nós mesmos, embaçam ou desviam o olhar da verdade que não queremos ver. Mas enquanto não enfrentarmos a realidade de modo virtuoso e coerente com a verdade alcançada será impossível avançar. Pensamentos desagradáveis e emoções densas que nos assolam de maneira recorrente costumam significar as amarras existentes na consciência, que nos aprisionam e precisam ser desatadas. Este é o duelo que existe dentro de cada pessoa. Há que se ter ajuda do samurai que o habita. Do contrário, o reino restará entregue as sombras”.

“Outra importância da simplicidade é o conhecimento necessário para lidar com o mundo, impossível quando desconheço quem sou. Tudo que está ao meu redor, assim como tudo que está dentro de mim, dialoga incessantemente com a minha essência. Entretanto, nem tudo agrega valor, tampouco, poderá permanecer em mim, sob o risco de travar a minha evolução. Para afastar ou acrescer é preciso um olhar livre e claro, sem interferências e condicionamentos indevidos. É o olhar simples de uma consciência desnuda e autêntica, ou seja, aquela que já consegue lidar com a própria verdade, mesmo com todas as dificuldades que advirão dessa nova realidade, de maneira absolutamente sincera e corajosa”.

Antônio franziu as sobrancelhas e perguntou: “Você conhece o poder de um olhar simples?”. Naquele instante todas as suas palavras se uniram em um mesmo sentido e foi impossível não me lembrar de um dos ensinamentos mais importantes contidos no Sermão da Montanha e eu sussurrei: Todas as vezes que houver simplicidade no seu olhar a vida se manifestará em Luz.

Ele arqueou os lábios em leve sorriso de alegria. Era a celebração de um encontro transformador, de uma verdadeira comunhão.

Aquela conversa com o Antônio foi um divisor de águas para mim. Foi quando eu entendi a arte da batalha para um samurai. Eu queria ser um deles. Em resumo, duelar comigo para me tornar dono da minha consciência. Então, servir à Luz. Bushido!  

Imagem: 95306133 – Dreamstime.com

9 comments

Fernando Cesar Machado setembro 16, 2020 at 5:14 pm

Gratidão profunda e sem fim…

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Terumi setembro 18, 2020 at 8:53 am

Gratidão! Arigatai kotoba wo kansha shimasu! 🙏

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Caroline Martesi setembro 18, 2020 at 9:40 am

Maravilhoso Yoskhaz!
⭐✨✨✨ muitas bençãos caindo sobre nós nessa dança da vida .. Sinta se abraçado, gratidão!

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Viviane Barbosa setembro 18, 2020 at 9:10 pm

Gratidão por esse texto lindooo@
Se faz necessário o crescimento que cada batalha tráz.

Muita paz e luz a todos nós.

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Joane setembro 19, 2020 at 6:27 am

✨🌹❤️

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SCHWEITZER setembro 29, 2020 at 8:40 am

Uma aula sobre a paz. Amei.

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Santana outubro 24, 2020 at 4:33 pm

🙏🏽🌵

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Adélia Maria Milani dezembro 8, 2020 at 11:16 pm

Gratidão!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Paulo Vitor Alves dos Santos maio 25, 2022 at 1:39 pm

Gratidão por mais um aprendizado! 🙏🏾

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