MANUSCRITOS II

A arte de se manter suspenso no ar

 

Quando entrei para a Ordem tinha a errônea ideia que a vida no mosteiro era simplesmente contemplativa, afastada de todas as impurezas do mundo como maneira de manter os monges puros. Embora houvesse um período inicial de recolhimento para a adequada iniciação, no qual havia muito estudo e meditação, logo éramos enviados de volta ao mundo como método eficaz de conhecimento e aperfeiçoamento de si mesmo. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, costumava dizer que “o sagrado não está separado do mundano, mas oculto nele”. É no convívio comum do cotidiano que podemos entender melhor as nossas reações e as arestas que ainda fazem sangrar. Apará-las é o aperfeiçoamento necessário; o aperfeiçoamento leva à transformação; a transformação se traduz em evolução. Os períodos de solidão e reflexão são tão férteis quanto as fases de convívio social ou profissional. Na verdade, são as partes distintas de uma mesma aula. Elas se diferenciam para se completarem.

Naquela época, todas as vezes que retornava ao mosteiro eu chegava muito abalado emocionalmente. Dessa vez não foi diferente. Apesar de a Ordem custear as próprias despesas com os famosos chocolates artesanais confeccionados em uma de suas cozinhas e vendidos para apreciadores que aguardavam em longa fila de espera, a OEMM é uma ordem esotérica que tem entre as suas premissas o valor do trabalho e a independência financeira de seus monges, como são denominados os seus membros. Por isto, todos têm os seus empregos, são profissionais liberais ou empresários. Até mesmo o Velho viajava bastante para palestrar em muitos lugares. Ir ao mundo sempre renova e traz um bom e farto material para o estudo de si mesmo. Daquela vez tinha sido pior. Eu estava muito tenso. A minha firma sofria forte concorrência de novas empresas que prometiam mais por menos e o mercado se mostrava simpático a elas. A falência era o medo que rondava à espreita. O Velho percebeu que eu estava irritadiço e disperso. Eu lhe expliquei o que acontecia. Ele disse: “Se você fez o seu melhor apenas aguarde a resposta do universo com serenidade”. Aquelas palavras me irritaram, mas me controlei e falei que não tinha a menor dúvida de ter feito todo o possível. Expliquei que o meu desequilíbrio era grande e no mosteiro seria mais fácil pacificar o coração. O monge balançou a cabeça demonstrando que entendia. O Velho me disse com calma: “Embora alguns lugares sejam centros de ancoragem de energia, não é preciso ir a canto nenhum para conversarmos com a própria alma. Para encontrar consigo mesmo o silêncio é o melhor lugar”. Falei que estava tenso e que as minhas noites eram mal dormidas. O Velho fechou os olhos como quem vai buscar algo nas gavetas da memória e recitou um pequeno poema: “‘Aprenda a confiar no que está acontecendo. Se há silêncio, deixe-o aumentar, algo surgirá. Se há tempestade, deixe-a rugir, ela se acalmará’”.

Foi demais. Irritado, eu quis saber quem era o tolo autor do poema que me aconselhava a cruzar os braços enquanto o mundo desmoronava sobre a minha cabeça. O Velho me olhou com compaixão e foi lacônico: “Lao Tsé”. Com algum desprezo falei que não sabia quem era. Com a sua enorme paciência, o monge explicou: “Foi um sábio taoísta. Existem várias codificações do Caminho. O taoísmo é uma das mais antigas e belas tradições. Ele foi um alquimista chinês que viveu há milênios e nos presenteou com a sua bela obra”. Dei uma gargalhada e zombei perguntando se eu também aprenderia a transformar chumbo em ouro. Acrescentei que era bem o que eu precisava naquele momento. O Velho não se alterou e disse com calma: “Sim, é possível transformar em ouro o chumbo da alma”, deu uma pequena pausa e acrescentou: “Sem dúvida é o que você precisa agora. É o que todos precisamos. A vontade é condição primordial”. Tornou a se calar por breves instantes antes de concluir: “No mais, aquietar-se não significa estar parado. É um movimento valioso de percepção interna e a tudo o que o envolve”.

A calma do monge diante do meu sarcasmo me trouxe desconforto e a desconfiança de que uma boa lição se apresentava naquele instante. Me ajeitei, pedi desculpas e solicitei ao Velho que me ajudasse a entender o poema. Com sua enorme paciência, ele disse: “Sempre temos que oferecer o nosso melhor diante de tudo o que acontece. Ocorre que nada podemos fazer diante da força incomensurável de certos movimentos do universo que alteram de maneira angular a nossa vida. É a hora da inevitável mudança. Por isto Lao Tsé usa a figura da tempestade que assusta ou da ausência de ventos que não impulsiona as velas dos barcos. São situações nas quais não podemos interferir. Todos passamos por momentos em que temos a sensação que tudo será destruído ou, em outras ocasiões, enfrentamos estranhos marasmos em que parece que nada vai acontecer, como se a vida não mais estivesse viva”. Deu uma pausa e seguiu: “São prenúncios de grandes transformações, início e fechamento de ciclos e ensinamentos cardeais. É hora de manter a calma, prestar atenção e confiar na sabedoria e no amor infinitos da vida. Então, aproveitar o novo momento e seguir”.

“A certeza de que o universo sempre conspira a nosso favor traz a tranquilidade que tudo que acontece é para o nosso bem. Devemos ter cuidado em não atrapalhar”. Interrompi para comentar que não conseguia entender como a falência da minha empresa poderia ser vista como uma boa coisa. Ele sorriu e tentou explicar: “Você não sabe o que está por vir, tampouco já tem consciência para qual transformação a vida lhe prepara. Pode ser que o ciclo da sua empresa tenha se encerrado por obsoleto em sua jornada ou talvez seja o momento da firma ser repensada e reinventada, como para lembrar que tudo pode ser diferente e melhor. Adivinhação é para os levianos e arrogantes; apurar a sensibilidade é para as pessoas que têm boa vontade e alegria em caminhar. Lembre que você é parte integrante e essencial do universo e, por isto, ele está empenhado no seu bem e na sua evolução. Embora, não raro, estranhemos os seus métodos”.

“Entender o funcionamento do universo e as leis maiores que regem a vida permitem a arte de se manter suspenso no ar”. Ele me olhou nos olhos e disse: “Isso ajuda a criar as condições para que a paz se instale em nossos corações. Então, nada do que houver no mundo terá força para nos abalar”.

Pedi para que ele explicasse melhor. O Velho expôs o seu raciocínio: “Somos filhos do universo, amados e protegidos pela perfeita inteligência que rege a vida. Nada é esquecido, nada falta ou exclui. Tudo é conduzido por mãos habilidosas e sábias que primam pela evolução de cada um de nós. Para cada qual é entregue a perfeita ferramenta para a exata lição. Evolução exige movimento e nem sempre nos mostramos dispostos para acompanhar o ritmo da vida. Então, a mudança se impõe inexoravelmente. Aguarde com serenidade o que virá e esteja pronto para aproveitar os bons ventos quando se apresentarem. Ter carinho com o solo na semeadura traz em resposta a colheita farta”.

Falei que entendia o que monge falava, mas não conseguia enquadrar aquelas palavras na situação da minha empresa. O monge me ofereceu um olhar bondoso e se foi. Nos dias que se seguiram a tempestade não arrefeceu. Ao contrário, aumentou a intensidade parecendo varrer tudo que encontrava pela frente. Para não ir à bancarrota aceitei a sugestão do meu sócio e vendemos a empresa para um grupo internacional. Passei os meses seguintes amuado e recolhido no mosteiro. Eu estava triste e tinha dificuldade para entender o motivo pelo qual tudo aquilo tinha acontecido. Não faltava a convicção de que eu tinha me empenhado ao máximo para que tudo desse certo como foi durante anos. Eu precisava encontrar comigo mesmo. Era necessário fazer as pazes com a vida para que a alegria tornasse a brotar.

Com o passar dos dias a tristeza foi dando lugar ao entendimento de que eu não amava mais a empresa como no início. Na verdade, gostava mais da condição financeira que ela proporcionava do que do trabalho que eu fazia. Nos últimos tempos em que estive à frente da firma não mais levantava todas as manhãs com o entusiasmo do início, quando estava envolvido com novas ideias e a possibilidade de fazer diferente e melhor. Comecei a entender que a empresa já tinha deixado de fazer parte dos meus sonhos e se tornara uma mera obrigação, além de uma generosa fonte de renda. Sim, eu não mais era feliz em fazer o que me encantara no passado. A minha alma ansiava por mudanças e eu me negava a admitir. Então, a vida me presenteou com uma tempestade para naufragar aquele barco errante, que navegava sem rumo, sem desejo de chegar a lugar nenhum. Singrava apenas para contar os dias. Percebi que a intempérie, na verdade, era a chance de começar uma nova viagem para terras distantes em mares nunca antes navegado.

O meu ânimo mudou, a alegria tinha voltado. Eu não sabia o que fazer, mas estava disposto, atento e afeito ao novo. Me sentia como em uma enorme estação escolhendo em qual trem embarcar. Comecei a escutar o que o silêncio do meu coração soprava. Eu sempre sonhara em trabalhar com criação e com criatividade. Percebi o sentido da viagem, faltava definir o destino. Foi quando recebi a visita de um antigo amigo que estava de férias na pequena e charmosa cidade que fica ao sopé da montanha que abriga o mosteiro. Ele tinha montado uma pequena agência de propaganda digital para aproveitar uma grande mudança nesse setor que deslocava o eixo da publicidade estagnado nas mídias tradicionais. Comentou que precisava de um sócio. Foi como acordar sendo acariciado por um raio de sol travesso que lambe a pele driblando as cortinas fechadas do quarto escuro. Eu tinha o capital da venda da empresa e um enorme sonho pronto para ser vivido. Era a vida que se renovava com toda a força e intensidade. Fiz uma prece sentida em agradecimento pela tempestade demolidora.

Fui ao mundo e retornei ao mosteiro um ano depois para algumas semanas de recolhimento, estudo e meditação. A agência ainda engatinhava, mas sinalizava um belo futuro. O mais importante é que a alegria estava de novo presente em meus dias. A primeira coisa que fiz foi procurar o Velho para dizer que eu estava feliz e que tudo tinha mudado. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e questionou: “Tudo mudou ou você mudou? Para muitos o mundo não está muito diferente do que estava há um ano”. Fechei os olhos em resposta. Sim, eu tinha me transformado e, então, a vida se revelara em novas, belas e desconhecidas cores. Agradeci a ele sobre aquela conversa sobre o poema de Lao Tsé e como aquelas palavras me auxiliaram a encontrar o entendimento preciso para fortalecer as minhas escolhas e retomar o poder sobre a minha própria vida. Pude abrir as asas para alçar o voo somente possível quando vivemos um sonho. Disse que agora começava a entender sobre a arte de se manter suspenso no ar. O monge apenas sorriu. Acrescentei que não me lembrava de ter sido tão feliz. O Velho assinalou: “Sim, a gente sempre muda para melhor. Esta é uma das leis da vida. Quando não nos sentimos assim é porque ainda não efetuamos o movimento exato”.

Aproveitei para pedir desculpas por ter sido sarcástico quando ele tentou me ensinar algo tão importante. O Velho parecia inabalável em suas virtudes: “Somente a vida ensina, Yoskhaz. Sou apenas um companheiro de jornada a apontar uma ou outra paisagem do Caminho”, deu uma pausa e finalizou: “Quanto às desculpas, não é necessário. O melhor pedido de desculpa é demonstrar ao outro que a lição foi aprendida”.

Uma lágrima rebelde escapou do canto dos meus olhos.

10 comments

Gabriel Rissoli Ramos agosto 25, 2016 at 10:40 am

Você ou… Vocês, tem uma sabedoria incrível! Muito feliz por ter tido acesso a seus escritos, os quais sempre me renovam as idéias, equilibram e orietam meus sentimentos!

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Iara agosto 25, 2016 at 11:43 am

Perfeito para o meu momentos. Graças e bênçãos.

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Rafael Pietro Lomonte agosto 25, 2016 at 12:37 pm

Leitura valiosa! Lições importantes que o Yoskhaz assimilou neste novo capítulo. Inspiração para nos colocarmos diante da Vida com esta mesma paciência, confiança e vontade.

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newton agosto 27, 2016 at 11:45 pm

Essas histórias são relatos verdadeiros ou apenas ficção?

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Christina Mariz de Lyra Caravello agosto 28, 2016 at 11:59 am

“O sagrado não está separado do mundano, mas oculto nele”.
Sim, porque nossas batalhas acontecem no cotidiano, nas situações do dia a dia, nos sentimentos bem terrenos.
E temos que nos dar a chance de tentar soluções, muitas vezes meditando, entrando profundamente no silêncio de nossas almas, e em outras vezes decodificando os inúmeros sinais que o Universo nos oferece através de mensagens, de provérbios antigos, de conselhos.
E, então, de repente, tudo que parecia tão certo, tão importante, tão definitivo, já não tem mais o mesmo significado. Parece que uma venda é tirada de nossos olhos e passamos a olhar a vida com outras cores, mais coloridas, passamos a dar importância a pessoas que nunca havíamos percebido e a detalhes, até então, para nós, insignificantes.
E essa nova percepção nos oferece as soluções para vencer nossas batalhas do momento.
E nos aperfeiçoamos, nos transformamos, evoluímos.
É o sagrado se manifestando porque tivemos a humildade de pedir socorro ao procurarmos um canal de comunicação.
“Somos filhos do Universo, amados e protegidos pela perfeita inteligência que rege a vida…”

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Koishima agosto 29, 2016 at 11:33 am

Meu caro, há dias estou navegando em aguas turbulentas, sem entender o pq isso tudo tá acontecendo, sendo que eu me empenhei, pra dar amor, carinho, atenção.. Posso ter pecado em certas coisas, mas quem não erra? E ao reconhecer meu erro, pedi desculpas.. E hoje, navegando por essas aguas, muitos sinais dizem pra eu me acalmar, que logo depois o dia vai brilhar e tudo vai se acalmar.. A mente se afoga em incertezas, em duvidas.. E pra ajudar, reconheci que ao lado dela eu era muito feliz e sinto que ao meu lado ela também era feliz, não demonstrava mentiras, mas nos desentendemos e hoje, ela é sarcastica comigo, sabe que a amo e parece que isso enche seu ego, não vejo compaixão em seus olhos.. Mas a unica certeza dessa vida, é que a justiça sempre vai ser feita.. Agradeço por essa reflexão, pois compreendo que cada dia mais estou no caminho certo.. Muita luz Yoskhaz!

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Brunão agosto 30, 2016 at 12:46 pm

Aprenda a confiar no que está acontecendo. Se há silêncio, deixe-o aumentar. Se há tempestade deixe-a rugir, ela se acalmará.

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Nazaré Dimaria agosto 30, 2016 at 8:01 pm

Perfeito para hoje.. Obrigada!

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Czochra setembro 13, 2016 at 8:11 pm

Minha nossa, isso é gigante.
Lendo este texto….vem a minha mente um sonho que tive: estava em local diferente que não conhecia, estava na varanda de uma casa…e me via em um vendaval muito forte que balançava e eu titubeava e quase cai..mas mantive -me em pé, porém, sozinha. Naquele momento aparece no meu sonho um companheiro que estava muito indiferente …distante.
Acordei de manhã e o sonho me revelava muita coisa porém não tinha entendido. Na mesma semana o meu relacionamento desmoronou…ele foi embora sem falar nada ,mas eu sabia que tinha uma grande duvida da parte dele por questões financeiras. Mantive -me em pé , mas arrasada….por que na minha visão um relacionamento se mantem solido na confiaça, solidariedade, no respeito, no dialogo e na troca simbiotica do bem estar que emanamos um pro outro. Mas me enganei….somente eu pensei assim.
“Somos filhos do universo, amados e protegidos pela perfeita inteligência que rege a vida. Nada é esquecido, nada falta ou exclui. Tudo é conduzido por mãos habilidosas e sábias que primam pela evolução de cada um de nós. Para cada qual é entregue a perfeita ferramenta para a exata lição. Evolução exige movimento e nem sempre nos mostramos dispostos para acompanhar o ritmo da vida. Então, a mudança se impõe inexoravelmente. Aguarde com serenidade o que virá e esteja pronto para aproveitar os bons ventos quando se apresentarem. Ter carinho com o solo na semeadura traz em resposta a colheita farta”.

vamos aguardar a colheita.

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Jailson setembro 18, 2016 at 11:28 am

MAGNÍFICO!

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