TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo sexto limiar – Observem os cavalos)

Era uma manhã ensolarada e fria. Alguns cavalos pastavam em um imenso descampado. Apoiado em sua muleta, vestido com uma túnica surrada, porém limpa, usando uma corda como cinta, um homem os observava. Aproximei-me. Os seus olhos transmitiam serenidade e confiança. Eu já tinha visto outros olhares iguais. Sabia que não tinham origem no falso equilíbrio demonstrado pela soberba ou empáfia. Era uma força oriunda daqueles que já conseguem ser donos de si; para tanto, não podem faltar humildade nem simplicidade. Ele sorriu como se adivinhasse os meus pensamentos e disse: “Tenho o bem e o mal dentro de mim; e a total liberdade de os usar a cada escolha, ato ou palavra. Todas as minhas preocupações se resumem a aprender com os meus erros, sem mais os repetir, usando-os como mestres para o meu aperfeiçoamento. Assim, me torno livre e digno pelo domínio que possuo sobre quem sou e o que faço. Nenhuma outra preocupação encontrará lugar para morar em mim; embora possam me atingir de alguma maneira, todas as coisas e situações do mundo não me pertencem; logo, não permito que roubem a minha paz. Deixar que os acontecimentos do cotidiano atinjam a alma é próprio daqueles que ainda não dominam o próprio reino”, colocou o dedo na cabeça para deixar claro ao que se referia e, em seguida, acrescentou: “Àqueles que se deixam conduzir por algo que esteja fora de si e, por consequência, fora do seu controle, resta a aflição dos dias e a agonia das horas”.

Comentei que muitas vezes eu me enganei entre o bem e o mal; acreditei fazer a coisa certa quando, em verdade, cometi graves erros. O homem deu de ombros e disse: “Por isso observo os cavalos. Quando a verdade e as virtudes estão presentes, os cavalos aram os campos. Quando ignoradas, os cavalos guerreiam nas fronteiras”. Falei que eu não estava falando de política. Ele esclareceu: “Nem eu. Os meus pensamentos e sentimentos são os cavalos com que galopo pelos campos da vida; não há outros. Cabe a mim definir se usarei os cavalos nas plantações de trigo ou se irei esgotá-los nos campos de batalha; me fartar de pão ou sucumbir em feridas. Os cavalos galopam à felicidade ou empacam em conflitos. Enquanto eu não entender isso estarei à mercê do que não controlo. Sem me pertencer, permanecerei como um joguete nas mãos das minhas incompreensões, origem de todos os medos e sofrimentos. Não à toa, sofrerei com frequência e me amedrontarei com facilidade por estar vulnerável aos ataques do inimigo”. Comentei que eu não possuía inimigos. O homem voltou a me corrigir: “Nem eu. Refiro-me ao desconhecimento sobre quem sou como se fosse um astuto e hipotético inimigo por causar as asperezas dos meus relacionamentos e o desgosto pelo qual saboreio o mundo. Enquanto eu não aprender a manejar os cavalos, me será impossível a serenidade dos dias e a alegria das horas”.

Falei que precisava entender melhor sobre esses cavalos. Ele perguntou: “Ideias e sentimentos se nutrem de desejos. Quais desejos alimentam os seus cavalos?”. Respondi que o cardápio de desejos era variado; havia para todos os gostos. Eu viajava em busca da verdade; encontrá-la era o meu desejo naquele momento. O homem ponderou: “A verdade da alma ou do ego?”. Devolvi o questionamento indagando se não seriam a mesma. Ele me alertou: “Somente após estarem afinadas a um mesmo propósito. Trata-se de um difícil e lindo processo de amadurecimento do ego que se completa ao reconhecer a importância da alma, de direito e de fato. Então, a verdade se torna única. Cessam as incompreensões e os embates internos. Do contrário, os cavalos se manterão em aflitivas batalhas por seus desejos vazios e contraditórios, alguns incoerentes, outros delirantes. A alma busca pela felicidade, paz, dignidade, amor e liberdade, as denominadas plenitudes por caracterizarem a quintessência da vida. O ego também; a busca é a mesma, no entanto, mudam o lugar e o método”.

“Na imaturidade da evolução, ainda dirigido apenas pelo ego, o indivíduo procurará pelos prazeres e vitórias que o mundo oferece; mesmo que consiga desfrutar de todas as suas delícias e glórias, se deparará com um imenso abismo interno que se agiganta com os dias. Nada parece o preencher ou tapar. Incapaz de decodificar a causa da erosão crescente, recorrerá a todos os tipos de fugas na inútil tentativa de não ter que lidar com as próprias incompreensões e equívocos. Os seus cavalos guerrearão por tanto tempo que a paz parecerá um delírio romântico. A realidade se mostrará por demais amarga e áspera. É a fase da ansiedade e da angústia; da depressão ou da agressividade”.  Fez uma pausa antes de prosseguir: “A riqueza da vida nos aguarda dentro da gente. Tudo se inicia quando o ego descobre os poderes sutis da alma; e se encanta. Esse é o encontro mais importante de nossas vidas. Unidos em propósito iniciam a viagem rumo a verdade, na qual somente conseguem avançar à medida que o ego se aperfeiçoa, através das virtudes que aos poucos agrega ao jeito como o indivíduo aprimora a si mesmo, refletindo na sua maneira de lidar com as pessoas, coisas e situações. A cada nova virtude anexada, o ego dá um passo em direção à alma; os dias se tornam mais leves e suaves quando os cavalos são retirados das áreas de conflitos para se dedicarem às plantações; é a fase da serenidade e da alegria”.

            “As virtudes florescem ao ritmo que o indivíduo descobre a verdade sobre si mesmo e decide modificar as suas características pessoais, substituindo os padrões do pensar, sentir e agir que não mais deseja manter, por outros mais éticos, sábios e amorosos. Aos poucos desmancha o orgulho para dar lugar à humildade, a vaidade cede vez a simplicidade, a irritação desaparece frente à paciência, a sensatez ensina a olhar sob todos os ângulos, a coragem afasta o medo, a firmeza de propósitos traz o equilíbrio, a vontade impulsiona os movimentos, a fé move o sagrado que o habita, o amor-próprio o faz prosseguir na busca infinita pelo aperfeiçoamento; a gentileza, a sinceridade e a mansidão se tornam um estilo de vida. A realidade muda sem que o mundo mude. Mas há muito mais. Esse encontro concede ao indivíduo o poder sobre si mesmo. Por outro lado, nada mais desastroso do que viver sob o domínio daquilo que desconhecemos. Na imaturidade do ego o método é outro. Acreditamos nos mecanismos vulgares oferecido pelas sombras. Dinheiro e fama são os tesouros favoritos; orgulho e vaidade são as armas; ambição e ganância serão os campos de batalhas onde esgotaremos de cansaço os nossos cavalos sem chegar a lugar nenhum. A minha história, assim como a sua, narra a relação que tive e tenho com os meus desejos. Tudo mais são as consequências decorrentes desse relacionamento”.

Discordei. Falei que não fazia sentido. Se os meus desejos eram a paz e a felicidade, o amor e a liberdade, nenhum mal eu poderia causar. Ele me corrigiu mais uma vez: “Desejos não são necessariamente ruins nem bons. A questão é saber se você é o senhor dos seus desejos ou se tornou um escravo deles. Não há maior mal do que se deixar arrastar pelos desejos. Entender os desejos é a grande dilema. Há duas espécies: os de transcendência e os de sobrevivência. Os de transcendência são evolutivos, legítimos e eternos; tenho condições de possuir total domínio sobre eles. Os de sobrevivência são de usufruto, portanto, temporários e, como estão fora de mim, nenhum controle ou garantia tenho se conseguirei os conquistar e se os manterei sob o meu domínio; e se subdividem em legítimos e ilegítimos. Entre os ilegítimos estão aqueles que pertencem a outra pessoa, seja por direito natural, como as escolhas, seja em decorrência da lei, como a propriedade, apenas para ficar em poucos exemplos”.

Em seguida, esclareceu as diferenças: “Os de transcendência são as conquistas intrínsecas, como a compreensão dinâmica da verdade que se aperfeiçoa na medida que o indivíduo se conhece, concedendo acesso ao aprendizado e uso adequado de todas as virtudes. Sobre estes desejos possuímos plenas condições de conquistas, pois dependem apenas da relação que cada pessoa tem consigo mesma. Em suma, funciona da seguinte maneira: ao passo e compasso com que me conheço melhor, a verdade se expande; sinto a necessidade de aperfeiçoar ideias, refinar sentimentos e modificar o jeito de agir; com a autotransformação a realidade se altera pelo simples motivo de que, ao perceber diferentes possibilidades de me movimentar pela vida, encontro passagens, antes ocultas, por entre os obstáculos inerentes do cotidiano, nos quais frequentemente costumava colidir. Movo-me com fluidez cada vez maior. Rancores e embates se mostram desnecessários. Aos poucos, sofrimentos e medos arrefecem; confiança, equilíbrio e serenidade ganham força. As escolhas se tornam mais claras e firmes. O indivíduo fragmentado e fragilizado fica para trás; torno-me inteiro. Este é o poder sutil das conquistas da alma”. Franziu as sobrancelhas e acrescentou à explicação: “Existem os desejos de sobrevivência; eles estão fora da gente. Logo, suas conquistas dependem de fatores alheios à nossa vontade. Dinheiro e fama, por exemplo. Não basta se esforçar e trabalhar corretamente para os alcançar; inúmeros mistérios os envolvem. Nem sempre o mais competente consegue; tampouco o mais honesto nem o mais desonesto. Nada há de errado neles se alcançados por intermédio de práticas virtuosas. O problema surge quando o desejo, qualquer que seja, foge à sensatez e ao equilíbrio para se tornar uma obsessão, uma ideia única, como se fosse o último trem para o Paraíso. Arrastado pelo desejo, nos tornamos seus escravos. Quando fora de controle, desejos são como tiranos; nos levam ao absurdo da existência em sequência de movimentos desvairados e, muitas vezes, indignos. É quando mentimos na ilusão da felicidade, machucamos os outros por causa da paz, reprimimos em nome da liberdade e o amor é usado para justificar equívocos. O desequilíbrio e a fragilidade se tornam a tônica dos dias. O desejo descontrolado por aquilo que não temos controle é a causa dos maiores sofrimentos. São os momentos em que as sombras, nossos instintos e impulsos mais primitivos e selvagens, assumem as rédeas sobre o nosso comportamento, oferecendo raciocínios tortuosos para encobrir erros e excessos; e nos municiar com desculpas. A verdade resta falseada, as virtudes parecem desapoderadas. Apequenamos sem dar conta que a busca desenfreada por um desejo é uma equação doentia; nada de bom brotará nos solos da mente e do coração. A felicidade parecerá uma utopia”.

Interrompi para salientar minhas dúvidas sobre a existência da felicidade. O filósofo esclareceu: “Muitas pessoas conhecem a importância do ser em detrimento ao ter. Porém, existe um abismo entre discurso e prática; por isto repetimos que a vida é escola e oficina. Não basta aprender, se faz necessário aplicar ao cotidiano o conhecimento adquirido. Na incoerência entre o saber e o fazer, permanecemos como um projeto não executado”. Falei que ele não abordara a questão da felicidade. O homem fez um gesto com a mão me pedindo calma e explicou: “Possuir coisas, dominar os outros, os adequando aos nosso interesses, ou se tornar um objeto de admiração ainda são atrativos poderosos. Eleitos como desejos preferenciais de muitas pessoas, se deixam conduzir através deles como se fossem as perfeitas estradas rumo à felicidade. Contudo, como já foi dito e redito, não se chega ao destino certo percorrendo o caminho errado. Nada há de ruim com a fama e a fortuna, cujas origens podem variar de inegável merecimento até complexas provas existenciais, nas quais será exigido aprimorada percepção e sensibilidade para o adequado uso dessas ferramentas à serviço da luz, sob o sério risco de tristes e recorrentes quedas espirituais. Acreditar que a fama e a fortuna são demonstrações finais de indivíduos bem construídos significa confundir simples ferramentas de trabalho com a complexidade da obra pronta. O dinheiro, por exemplo, concede acesso às melhores coisas, e isto é maravilhoso, no entanto, não torna ninguém melhor caso não seja usado para pulverizar boas condições de existência. Utilizado como instrumento de dominação, traz a maldição do cativeiro por manter aprisionado o oprimido ao opressor em correntes de maus tratos e insensibilidade. O vício pelo acúmulo de bens materiais proporciona a angústia da miséria luxuosa, no paradoxo de viver extrema miséria espiritual enquanto usufrui de farta riqueza material; são as pobres pessoas ricas. A pobreza mais triste não se resume à severa falta de condições financeiras, mas à desgraça existencial; ninguém é mais pobre do que o ganancioso. Os cativeiros têm mil disfarces e nenhum encanto”.

Fez uma pausa antes de prosseguir: “Usado com sabedoria e amor, o dinheiro permite inúmeras realizações importantes, sendo construtor de situações e oportunidades evolutivas, não apenas a quem o detém naquele instante, mas a todos os beneficiários das condições proporcionadas pelos movimentos virtuosos impulsionados graças a essa ferramenta. A caridade tem mil faces, todas de lábios fechados. Outro cativeiro bastante desejado é a fama. A exposição aclamada em decorrência de um fato extraordinário merece rápida desconsideração por parte de um sujeito virtuoso. Humildade e simplicidade são riquezas que podem sucumbir ao orgulho e a vaidade quando o fascínio pela evidência e a paixão pelos aplausos arrastam à dependência emocional, no desejo por mais uma gota de brilho. Nem tudo que reluz é luz. O lado triste da fama é quando o indivíduo prefere viver no espaço estreito, embora dourado e decorado, de uma vitrine, exposto como uma excentricidade, para saciar a curiosidade e preencher o vazio das multidões. Numa analogia ao Mito de Midas, depois de alcançado o desejo de ser desejado pelas multidões, sofrerá pela impossibilidade de andar solto, alegre e despreocupado pelas ruas; uma conquista silenciosa e desapercebida a quem alcançou a glória anônima por intermédio de uma existência livre das dependências e condicionamentos comportamentais”.

Olhou para os cavalos e esclareceu: “A pior desgraça está em desconhecer a genuína estrada para a felicidade, pois nos faz atolar nos atalhos enlameados da ignorância sobre quem somos ou nas ilusões dos desejos incapazes de nos conduzir ao tesouro da vida: as plenitudes. A felicidade consiste em olhar para trás e se dar conta que hoje sou uma pessoa diferente e melhor do que fui ontem. Um dia após outro. Tão e somente. Para isso preciso entender sobre os meus desejos; separar os nobres dos brilhosos para priorizar as conquistas intrínsecas, pois somente essas acrescentam conteúdo à minha bagagem. Tudo mais é menos. Não cabe reprimir os desejos, mas os selecionar como mecanismos de evolução. Desfrutar de cada transmutação com equilíbrio, serenidade e alegria traduz o significado da felicidade”.

Perguntei ao filósofo se alegria e felicidade eram sinônimas. Ele disse não com a cabeça e explicou: “Felicidade se manifesta no avanço paulatino da própria evolução. O poder sobre si mesmo, de manter e intensificar a própria luz, são fontes legítimas de felicidade. Ao contrário dos discursos pessimistas que desacreditam nessa plenitude ou garantem que, no máximo, nos será permitido apenas alguns momentos felizes durante a existência. No entanto, ao mantermos o ritmo constante das indispensáveis transmutações, nas quais nos aperfeiçoamos, a felicidade pode, sim, estar presente todos os dias e durar para sempre. Basta olhar para trás e se dar conta dos movimentos feitos diariamente rumo à luz. Para o sábio, por menor que seja o avanço, haverá música suficiente para bailar com a felicidade”. Fez uma pequena pausa para concatenar o raciocínio e continuou: “Por sua vez, a alegria é uma virtude e, como tal, uma das mil maneiras de amar com sabedoria. A alegria é a capacidade de encontrar o lado bom de todas as coisas, pessoas e situações. Para quem se alegra com pouco, nada faltará”. Antes que eu o interpelasse, ele acrescentou: “Contentar-se com pouco não significa se acomodar, mas entender que, quaisquer que sejam as suas condições, se houver alegria na busca, nada faltará para que prossiga em frente. Na consciência de que, se as conquistas materiais não dependem somente dos seus esforços, ao aplicar o melhor de si na concretização de um sonho, caso não aconteça, jamais sofrerá por isso por ter a consciência de que a vida sempre concede acesso às necessidades de evolução espiritual, nunca à mera satisfação dos desejos sensoriais. De outra face, as conquistas intrínsecas são fundamentais e bastam à felicidade. A boa notícia é que dependem apenas da nossa vontade, determinação e amor-próprio. Acredite, nada nem ninguém será impeditivo para quem deseja seguir em frente com alegria, uma virtude essencial para que a viagem se torne cada vez mais leve e suave, sem mágoas nem conflitos, por entre os inevitáveis obstáculos do Caminho”.

Sem mais dizer palavra, se levantou com o auxílio da muleta, chegou próximo aos cavalos e fez um gesto com uma das mãos. Como que por encanto, os cavalos começaram a andar em círculo; depois galoparam e, em seguida, correram em velocidade estonteante. Aqueles cavalos eram os seus e ele já conseguia os dominar sobremaneira. A muleta não era um impeditivo para que seguisse em frente; ele se locomovia através dos seus cavalos. Uma mandala se formou no movimento ágil da manada e me envolveu. Parti sem me despedir do filósofo.

Poema Quarenta e Seis

Quando o Tao está presente,

Os cavalos aram os campos.

Quando o Tao é ignorado,

Os cavalos guerreiam nas fronteiras.

Não há maior mal do que se deixar arrastar pelos desejos;

Ninguém é mais pobre do que o ganancioso.

A pior desgraça está em desconhecer a felicidade.

Para quem se alegra com pouco,

Nada faltará.

3 comments

Rhodolfo Diniz agosto 8, 2023 at 1:18 am

Gratidão! 🙏😁

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Terumi setembro 5, 2023 at 1:17 am

Gratidão 🙏

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Maangoba outubro 27, 2023 at 6:48 pm

meta de vida: me tornar inteiro. obrigado!

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