MANUSCRITOS II

O jardim das virtudes

O tambor de duas faces rufava compassado ao toque de Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de perpetuar a sabedoria ancestral do seu povo através da palavra. Pedi autorização para me sentar na manta colorida estendida na sua frente, do outro lado da fogueira. Sem abrir os olhos, ele apenas sorriu e balançou a cabeça de modo sutil. Enquanto eu me acomodava, o xamã começou a cantar uma música em seu dialeto nativo, que eu não entendia, mas pelo ritmo, percebia o seu tom sentido, de puro agradecimento, por estar ali, em comunhão com a Mãe-Terra, naquela noite sem lua, com o céu salpicado de estrelas. Quando ele silenciou a melodia, falei que precisava conversar. Contei que estava muito chateado. Eu tinha tido uma discussão com um dos meus melhores amigos. Ele teve um comportamento bastante desrespeitoso comigo em uma determinada situação. Estávamos sem nos falar já há algum tempo. Canção Estrelada acendeu o seu cachimbo com o fornilho de pedra vermelha, sem pressa, como se a noite não tivesse fim. Depois de duas tragadas, me convidou para fumar com ele e não disse palavra.

No dia seguinte me chamou para acompanhá-lo até uma pequena cidade próxima, perto da sua casa, nas montanhas do Arizona, para algumas compras. Fomos em sua caminhonete. No trajeto, aproveitei para tornar a tocar no assunto da briga com o meu amigo. Narrei os detalhes e fundamentei os motivos da minha decepção. Canção Estrelada quis saber a razão de eu não procurar esse amigo para uma conversa que, talvez, tivesse o poder de reatar laços valiosos: “Se a lembrança dele toda hora lhe vem ao coração é porque um bom fruto restou”, acrescentou. Respondi que ele era quem estava errado, logo, cabia a ele me procurar. Era uma questão de respeito. O xamã ficou com os olhos tristes e silenciou a voz.

Entramos em uma loja de produtos orgânicos em busca de essência de equinácea, uma flor que tem propriedades medicinais por estimular o sistema imunológico. Como não a encontramos no local de sempre, pedi auxílio a uma funcionária que arrumava outra prateleira. A moça respondeu, de maneira educada, que assim que terminasse iria me ajudar. Interpretei como falta de consideração e iniciei um discurso lembrando a minha condição de cliente e a sua obrigação em me atender com rapidez. O xamã, de modo gentil, interrompeu a bronca, pediu desculpas a jovem e me levou para fora do estabelecimento. Fomos a uma cafeteria ao lado e ele pediu duas xícaras de chá. Nos sentamos e ele me olhou nos olhos antes de perguntar: “Por que você entrou em guerra com o mundo”?

Falei que não entendia a colocação. Canção Estrelada explicou: “Você se aborreceu com o seu amigo em uma briga que considera definitiva, embora a todo momento volte a tocar no assunto. Em seguida, mostra muita impaciência por pouco motivo com a vendedora da loja. Pelo visto há uma enorme ferida dentro de você, mas ao invés de buscar a cura, prefere espalhar a sua dor com toda a gente. Percebe que esse comportamento apenas o torna vulnerável ao sofrimento? Falei que ele estava enganado. Eu estava bem, eram apenas questões nas quais envolviam falta de respeito para comigo. E respeito se impõe. Ele sacudiu a cabeça e disse: “Isso nada tem a ver com respeito. É pura manifestação do orgulho. Acontece todas as vezes que o ego se agiganta”.

Discordei dizendo que respeito não se pede, se exige. Ele franziu as sobrancelhas e respondeu com seriedade: “Exige? E se o interlocutor se recusar a obedecer? Vai fazer um escândalo? Aplicar-lhe uma surra”? Falei que esperava não chegar a tamanho extremo, mas que não via outro jeito de não permitir que as pessoas abusassem da minha boa-fé. Canção Estrelada me concedeu um olhar generoso e falou: “Todas as vezes que brigamos com o mundo é porque estamos desviando o eixo principal do combate: a batalha que cada qual deve travar dentro de si”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu o raciocínio: “No mais, sim, jamais devemos permitir que alguém nos desrespeite. No entanto, a maneira de impedir que isto aconteça faz toda a diferença. O jeito como reagimos às contrariedades que se apresentam mostra em que curva da estrada já conseguimos chegar”.

Irritado, pedi para que ele me explicasse qual a melhor maneira de reagir provocações e às ofensas. O xamã não se permitiu envolver na minha energia tempestuosa e, ao contrário, ao manter o tom sereno da voz impôs a sua ambiência harmoniosa à nossa conversa: “A regra de ouro é respeitar a si mesmo. Quando o indivíduo se respeita o universo retribui em igual proporção. Ação e reação”. Argumentei que para ele era fácil pensar assim, pois era um xamã e o conhecimento que tinha sobre magia fazia com que as pessoas o respeitassem. Canção Estrelada deu uma gostosa gargalhada como se tivesse ouvido uma bobagem da boca de uma criança e disse: “Se sou respeitado é pelo simples fato de eu me respeitar. Me respeito ao cultivar as flores do jardim das virtudes. Isto me torna imune às ofensas”.

Pedi para que ele explicasse melhor. Canção Estrelada não se fez de rogado: “Apenas o ego se ofende. Quanto mais forte o ego, mais frágil será a pessoa, pois ficará mais suscetível de ser atingida pelas atitudes alheias. Diminua o tamanho do alvo e dificultará o trabalho das flechas. Somente se sente humilhado quem possui o orgulho e a vaidade exacerbados. São duas características que deixam o indivíduo vulnerável. São como ervas daninhas no jardim das virtudes”.

Falei que precisava saber mais sobre esse jardim. O xamã explicou: “O jardim das virtudes é o seu templo sagrado, o local onde você conseguirá ficar suspenso no ar e protegido das incompreensões alheias. Para tanto é necessário que todas as flores das virtudes floresçam. Por exemplo, quando o sujeito tem em seu jardim as rosas da sabedoria sabe que nem todas as vaias são merecidas, assim como nem todos os aplausos são sinceros. Os lírios da humildade oferecerão a sua beleza em agradecimento às críticas justas, pois servirão como alavanca à própria evolução. Por outro lado, o jasmim da compaixão espalhará o seu melhor perfume quando as críticas surgirem por despeito ou por mero desejo de ofender, pois é o antídoto a evitar que as larvas da incompreensão e da intolerância, que se alimentam do odor azedo que exala do egoísmo, se instalem. O jardineiro sabe que sempre haverá borboletas e lagartas visitando o seu jardim, mas sabe também que estas apenas são aquelas enquanto ainda não estiverem prontas para brotar as asas. Então, cultiva as azáleas da paciência, pois se não entender a sofreguidão da lagarta jamais conhecerá o voo da borboleta”.

“São várias as flores a serem cultivadas no jardim das virtudes: humildade, bondade, compaixão, perdão, simplicidade, equilíbrio, gentileza, alegria, liberdade, sabedoria, justiça e paz são algumas das espécies, sem esquecer, é claro, da flor das flores, o amor, sem a qual todas as demais perecerão por inanição. Na ausência de qualquer uma delas o jardim restará incompleto.”.

Argumentei que era muito desagradável ouvir as pessoas falarem mal de nós, o que fez o xamã aprofundar o raciocínio: “Não devemos nos preocupar sobre o que não podemos interferir. O bom jardineiro sabe que a verdade é inexorável e, por isto, traz em si a certeza que nenhuma noite, por mais escura que seja, tem força para impedir o amanhecer. Esta é a sua paz. Somente os insensatos se preocupam em impor as suas ideias aos outros”. Deu uma pequena pausa antes de continuar: “Eu não tenho poder para moldar o mundo aos meus anseios. Apenas tenho poder sobre mim mesmo, no entanto, esta força é enorme. Na medida em que me empenho em processo contínuo de aperfeiçoamento pessoal, para que possa sempre pensar diferente e agir melhor, ilumino os cantões escuros de tudo que me cerca. Assim, quando bailo as músicas do infinito faço as estrelas dançarem comigo. Esta é a minha luz. Cuido do meu jardim na certeza de que ele é parte essencial para a beleza e expansão do universo. Se faço parte do todo, o todo está em mim”.

“Todo ser traz em si a magia da vida. Esta força é incomensurável e se manifesta na medida que cuidamos do jardim das virtudes. A cada flor germinada o jardineiro transforma a si e, por reflexo, o mundo”. Tornou a beber o chá e disse: “As escolhas são a pá e o ancinho do jardineiro. Você pode permitir que as ervas daninhas do orgulho e da vaidade tomem conta dos seus canteiros ou pode procurar o seu amigo, em atitude de profundo respeito a si e ao universo, para cultivar as flores da humildade e da compaixão. As primeiras ao admitir que não se podemos exigir do outro uma perfeição que não temos para oferecer; as outras por entender que cada qual se manifesta na fronteira das suas capacidades. Nem mais nem menos. Por consequência, esse movimento faz com que outras flores como a do amor, da paz e da liberdade desabrochem no jardim do coração. Este buquê se chama Luz”.

O respeitado xamã olhou fundo em meus olhos e disse: “Respeito não é algo que exigimos de ninguém. Cada qual o impõe a si mesmo em viagem cujo destino está a própria essência vital que nos anima. Todo o resto é paisagem”. Me ofereceu um sorriso generoso e finalizou: “Quanto à magia, saiba que magia é transformação. Transformar em flores as sementes das virtudes que adormecem em nossos corações é a única magia que importa. Todo o resto é firula”.

 

 

 

 

 

6 comments

Vanessa dezembro 16, 2016 at 11:53 pm

“…se faço parte do todo o todo está em mim”.
Perfeito!
Obrigada!

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Michellson dezembro 17, 2016 at 12:04 am

Que belo jardim!:)

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Francisco Ribeiro dezembro 17, 2016 at 9:27 pm

Excelente texto a respeito do respeito que devemos ter a nós mesmos, quando das virtudes fazemos nosso caminhar… Respeito não é algo que se exija é algo que se sente por se e pelo outro.

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Christina Mariz de Lyra Caravello dezembro 18, 2016 at 9:56 pm

“Por que você entrou em guerra com o mundo”?

Quando, de alguma maneira, nos sentimos agredidos, saímos disparando em todas as direções.
E quando achamos que não houve respeito e consideração a nossa pessoa , na verdade foi nosso orgulho que agigantou nosso ego e quanto maior o ego mais suscetível ficamos de ser atingidos pelas atitudes alheias. Quanto menor o ego, menos suscetível.

“Todas as vezes que brigamos com o mundo é porque estamos desviando o eixo principal do combate: a batalha que cada qual deve travar dentro de si”.

O orgulho e a vaidade exacerbados deixam o indivíduo vulnerável, são ervas daninhas no jardim das virtudes.
“O jardim das virtudes é o seu templo sagrado, o local onde você conseguirá ficar suspenso no ar e protegido das incompreensões alheias. Para tanto é necessário que todas as flores das virtudes floresçam.”
Rosas Sabedoria
Lírios Humildade
Jasmim Compaixão
Azaleia Paciência

E todas as flores, cada qual, com seu significado, e a flor das flores, o Amor, sem a qual todas elas perecerão por inanição.

Quando, por exemplo, cultivamos as flores da humildade e da compaixão e admitimos que não podemos exigir do outro uma perfeição que não temos e entendemos que cada qual se manifesta na fronteira de suas capacidades, esse movimento faz com que outras flores desabrochem no jardim do coração. Esse buquê se chama Luz.

“Quanto à magia, saiba que magia é transformação. Transformar em flores as sementes das virtudes que adormecem em nossos corações é a única magia que importa. Todo o resto é firula”.

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Jane janeiro 1, 2017 at 8:25 pm

Rsrs…verdade, todo o resto é firula!

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Thays setembro 14, 2019 at 8:19 pm

“Quanto mais forte for o ego, mais a pessoa se ilumina”
Esse pensamento de que ego é negativo e impossibilita o desenvolvimento espiritual e pessoal é totalmente errôneo.
Só se ilumina e alcança a transcendência da alma aquele que possui o ego forte e bem estruturado.
Quanto mais o ego for forte, menos a pessoa se importa com a opinião alheia sobre si, menos se ofende e mais ouve sua voz interior.

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