MANUSCRITOS VII

A casa

Havia muito tempo que eu estivera na pequena vila chinesa no sopé do Himalaia. Depois de deixar a mala na única estalagem do local, me dirigi à casa de Li Tzu. O jardim de bonsais estava florido em consagração à primavera. Meia-noite, o gato preto que também morava lá, de cima da geladeira me olhou com preguiça e voltou a dormir. O mestre taoísta não estava na cozinha. O encontrei na sala de meditação com alguns alunos. Uma música inspiradora convidava a uma acolhedora conversa com a alma. Retirei os sapatos e me juntei a eles. Ao final, ao abrir os olhos, Li Tzu me ofereceu um sorriso de boas-vindas. Todos se foram, com exceção de Teresa, uma jovem e linda mulher lisboeta. Era o primeiro dia do curso sobre o Tao Te Ching. Pessoas dos mais diversos cantos do mundo vinham aprender sobre o milenar poema da sabedoria oriental; havia muitas camadas de interpretação nas enigmáticas palavras legadas por Lao Tsé. A jovem manifestou a vontade de conversar com Li Tzu. Admitiu estar triste. Entendia que precisava encontrar a verdadeira causa da tristeza; do contrário seria incapaz de a desmanchar. O mestre taoísta balançou a cabeça em anuência como se dissesse que aquele entendimento primordial facilitaria o êxito da empreitada existencial a que se propunha. Apresentou-me a jovem e disse que, assim como ela, eu viera de longe. Éramos amigos havia alguns anos. Perguntou a Teresa se eu poderia participar da conversa. Muito simpática, ela disse não haver nenhum problema.

Sentamo-nos à mesa da cozinha. Enquanto Li Tzu colocava algumas ervas em infusão para o chá, conversamos. Teresa trabalhava como jornalista para um jornal de Lisboa, ao passo que o marido, Ricardo, era fotógrafo da revista National Geografic. Em comum, a paixão de mostrar o mundo às pessoas. Estavam juntos havia quase uma década. O encantamento dos anos iniciais, a alegria presente nos detalhes simples do cotidiano, como dividirem uma sopa de batata com uma taça de vinho barato à luz de velas compradas no mercado da esquina, suficiente para fazer do jantar um evento inesquecível, tinha desaparecido. Foram tempos em que riam por qualquer bobagem, contavam segredos e se mostravam um ao outro sem efeitos especiais. A transparência era apaixonante. O amor acontecia. Não era mais assim. O diálogo parecia ter ressacado junto com a intimidade. Ao contrário de como era antes, confessou preferir os dias em que o Ricardo viajava a trabalho. Não entendia como o amor se perdera daquele jeito. Chegava a duvidar se de fato o amou e foi amada algum dia.

Ouvimos sem nenhum aparte. Ao final, Li Tzu preencheu as xícaras com chá e perguntou: “Existe algum fato que você consiga identificar como o momento no qual ocorre a ruptura que origina o afastamento?”. Teresa disse que foi quando teve uma gestação interrompida de forma involuntária. Tinham vontade de gerar um filho, formarem uma família nos moldes tradicionais. Em razão de algumas complicações decorrentes desse aborto espontâneo, não poderia mais engravidar. Isto a entristecera muito. Na ocasião, recebeu carinho e acolhimento por parte do Ricardo. Porém, duas semanas depois ele viajou ao Alasca para fotografar a pedido da revista. Confessou ter se sentido abandonada e decepcionada. Disse que faltou empatia ao marido. O mestre taoísta disse não saber do que se tratava. A jovem explicou que empatia era a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa, sentir os seus sentimentos e a sua dor. Li Tzu a olhou com doçura e questionou: “A empatia verdadeiramente existe ou se trata de uma figura de ficção na qual nos enganamos, exigindo das pessoas uma tarefa impossível e, por porquanto, um convite para farta distribuição de culpas?”. Teresa afirmou se tratar de um sentimento capaz de mudar o mundo. O mestre taoísta se mostrou interessado: “Você já sentiu empatia por alguém?”. A jovem garantiu que sim. Contou que costumava colaborar em um acampamento de refugiados africanos, procurando saber o que precisavam, levando alimentos e remédios. Li Tzu a elogiou com sinceridade: “Sem dívida, uma ação repleta com o mais lindo amor que existe. Você fez por essas pessoas aquilo que gostaria que fizessem por você se estivessem no seu lugar. Um movimento sagrado pela luz que reverbera”. Deu uma pausa para ressaltar as palavras seguintes e disse: “Contudo, compreender a necessidade ou sentimento de alguém nos habilita a dizer que sentimos a dor dessa pessoa? Ou, ainda mais profundo, nos credencia a acreditar que verdadeiramente estamos no lugar dela e sabemos o que ela deseja ou precisa?”. Teresa contou que conhecia a fome; vinha de uma família muito pobre. Tinha passado por enormes dificuldades financeiras no passado”. O mestre taoísta ponderou: “Ter experenciado uma situação semelhante, ou mesmo possuindo a sensibilidade para identificar um sofrimento, apesar de o não ter vivido, nos permite sentir a dor alheia como se fôssemos quem a sofre?”. Sem esperar pela resposta prosseguiu em seus argumentos: “Oferecer o nosso melhor significa caridade e solidariedade, modalidades de amor que transformam o mundo pela capacidade de acolher e propiciar a regeneração naqueles que sofrem. Quando praticadas com boa vontade, revelam elevado patamar de percepção e sensibilidade. No entanto, afirmar que incorporamos a dor do outro, me parece exagerado estágio de vaidade espiritual ou de desequilíbrio emocional”. Em seguida, concluiu: “A fome do corpo não é difícil de ser conhecida. A da alma, na maioria das vezes, nem o próprio indivíduo se mostra capaz de a compreender por completo. O que dirá de outro alguém”.

Admito que fiquei desconcertado. Teresa também. A existência de um sentimento tão bonito e badalado na contemporaneidade era colocado em xeque pelo mestre taoísta. Diante do nosso desapontamento, ele explicou: “Em cada consciência existe um universo formado por distintos níveis de percepções, sensibilidades, crenças, suposições, experiências e expectativas. Não há dois iguais. Uso a régua que me serve para medir tamanho de outras pessoas; peso a necessidade alheia com a balança que tenho em um mundo que desconheço a métrica. Serão sempre medidas imprecisas. Por isto, a lição maior se restringe em fazer pelo outro aquilo que gostaria que fizessem por mim. Tão e somente. Posso e devo experimentar a sensação de me colocar no lugar de outra pessoa que atravessa um momento de extrema dificuldade. Não será difícil compreender as necessidades mais básicas; e se as puder suprir, realizarei um gesto de indizível amor. Contudo, as carências mais substanciais jamais conseguirei identificar pelo fato de não estarem ao alcance do meu olhar. São camadas profundas escondidas sob cortinas de entorpecimento para anestesiar antigas dores, das quais muitas ainda não temos condições de enfrentar”. Fez um gesto com as mãos para ressaltar as palavras e lembrou: “Sequer consigo desvendar os segredos de muitas das minhas incompreensões, apesar de toda uma existência dedicada a essa busca. Acreditar que eu consiga chegar nos cantões mais longínquos do coração de alguém, sem antes conquistar o meu, é um triste engano”. O mestre taoísta nos olhou com compaixão e murmurou com sinceridade: “Consigo praticar a caridade e ser solidário ao nível da minha consciência. Se pedirem por empatia, os decepcionarei. Estou disposto a oferecer todo o meu amor a vocês, mas jamais conseguirei entregar exatamente o que precisam. Não que eu não tenha para dar – e porventura talvez até possua. Mas porque sou incapaz de compreender todas as necessidades de um universo diferente daquele em que habito”.

Bebeu um gole de chá e disse: “A origem de muitos conflitos afetivos é a ilusão da empatia. Acreditar que o outro não quis ou não se importou em nos entregar algo que precisávamos é uma armadilha. Os consideramos insensíveis, quando na verdade, somos nós os severos cobradores por exigirmos um pagamento indevido. Ninguém tem o poder ou a obrigação de desvendar os segredos mais ocultos do coração de ninguém. Até porque muitos deles ainda estão trancados em gavetas inexpugnáveis; entretanto, as consequências dessas experiências mal elaboradas já reverberam na superfície da consciência se manifestando em medos, suposições e expectativas. Situações em que, por não conseguirmos identificar ou lidar com a autêntica razão e origem do sofrimento, projetamos e transferimos as causas. Somos injustos com os outros pelo desconhecimento que temos sobre quem somos por inteiro”.

Li Tzu olhou para Teresa com doçura e indagou: “Você já foi abandonada alguma vez?”. Do espanto pela pergunta se fez o pranto. A bela mulher chorou de soluçar. Foram longos e importantes minutos. As lágrimas têm o poder de transbordar velhas emoções abrindo espaço para que novos sentimentos ocupem o lugar. Ela contou ter sido abandonada pela mãe quando era criança. Embora o pai fosse carinhoso com ela e se esforçasse para suprir todas as suas necessidades, carregou consigo a sensação amarga daqueles dias por muito tempo. Embora nunca tenha dito, por mais que ele tentasse, era impossível suprir a ausência da mãe”. Depois de enxugar as lágrimas, afirmou que era um sofrimento superado. Ledo engano. Tratava-se de uma dor varrida para o inconsciente, o porão da casa que moramos. Cada um mora em si mesmo. O porão é o local da casa onde guardamos as coisas que não podemos jogar fora, mas também não queremos ver para não evocar lembranças desagradáveis. Não há como descartar as memórias.

Acreditar que ao esconder as lembranças dolorosas nos desvencilhamos dos sofrimentos é um engano recorrente e causa de desequilíbrios permanentes, difíceis de serem identificados. É como se o objeto guardado no porão apodrecesse com o passar do tempo, impregnando a casa com um cheiro nauseante. Acostumamo-nos ao odor a ponto de acreditar não mais o sentir, mas ficamos alterados de um jeito ao qual nos acostumamos e passamos a considerar normal. Normal não significa bom, tampouco usual equivale a verdadeiro. Apesar das lembranças dolorosas estarem escondidas no porão, os medos, suposições e expectativas por elas geradas estão sentados no sofá da sala, sendo os primeiros a saírem à rua assim que se abre uma fresta na porta. Bastam situações com débeis semelhanças para o passado transfigurar o presente, influenciando a capacidade da mente em ler a realidade com clareza. Sem darmos conta, o inconsciente participa mais das nossas escolhas do que conseguimos supor. Sim, o porão interfere no funcionamento, organização e bem-estar da casa.

Como não podem ser descartadas, as lembranças dolorosas, e mormente as traumáticas, necessitam de novas reelaborações para a dor se transformar em aprendizado, transformação e superação. Ninguém consegue fazer isto sem amor-próprio, o principal combustível da viagem em busca da verdade, virtudes e evolução. Em graus distintos, todos temos memórias em putrefação no porão, que apodrecem por estar em lugar mal iluminado.  Reprocessar as experiências malsucedidas equivale a abrir as janelas para o sol das novas ideias entrar; do contrário, não conseguiremos enxergar a desordem das emoções incompreendidas. Numa casa desarrumada, ao procurar por uma coisa, encontraremos outra. Quando o Ricardo viajou a trabalho duas semanas após a interrupção da gravidez, Teresa reencontrou a dor do abandono da mãe sentada no sofá depois de ter escapado do porão. A crença de que o fato estava superado se mostrou uma armadilha que a aprisionou nas próprias incompreensões. A expectativa de que o marido agisse de uma maneira que ele desconhecia em razão da própria esposa desconhecer a si mesma, levou o passado a sair gritando pela rua como se fosse o presente. Quando ressurgiu um sentimento de abandono que nem mesmo Teresa acreditava mais existir, a estranheza e o desconforto a fizeram transferir a responsabilidade da dor ao companheiro. Embora ele tivesse se mostrado carinhoso, solidário e acolhedor por vários dias, recebeu a pecha de insensível por não ter feito o impossível. Exigiu-se dele uma virtude de ficção e adivinhação, a empatia. A mente tem mais poder de aprisionamento do que as penitenciárias.

A lembrança do abandono passou a comandar as tarefas e a arrumação da casa. As janelas foram fechadas, a escuridão dificultou o olhar e, todos os dias, nos almoços e jantares passou a se servir um prato de sabor amargo. Não por causa do marido que voltaria para casa após aquela viagem, como sempre fazia, mas em razão de se negar a reprocessar uma velha experiência para permitir uma nova, diferente e aperfeiçoada compreensão. Crenças e expectativas mal construídas trazem a reboque suposições na tentativa preencher os vazios das incertezas. A suposição de que ele fosse uma pessoa insensível originou o afastamento gradual que o casal não foi capaz de dar conta. “Antes de retornar a casa externa será necessário arrumar a casa interna. Aquela jamais ficará bem enquanto esta estiver mal. Sem a devida pacificação com o seu passado não conseguirá entender e aceitar que o Ricardo não foi responsável por você se sentir abandonada”, pontuou Li Tzu.

Em seguida, finalizou: “Nos relacionamentos residem alguns dos maiores desafios existenciais e, por consequência, evolutivos. Para dois universos coexistirem em harmonia se faz imprescindível doses diárias de amor e sabedoria. Em cada consciência um universo distinto em experiências, percepções, sensibilidades, crenças, suposições e expectativas. Mundos em constantes ebulições face aos movimentos intensos em ideias e emoções, nem sempre justas, equilibradoras ou libertadoras. A incompreensão sobre quem verdadeiramente somos, a equivocada leitura sobre as pessoas e o estreitamento da realidade faz com que o amor desapareça diante de tanto desentendimento. Tornamo-nos estranhos para aqueles que amamos e, por vezes, ainda mais grave, inimigos”.

Teresa bebeu o chá sem pressa. As palavras de Li Tzu a tomaram de assalto como acontece nas vezes que nos deparamos com uma verdade que está à espera do nosso entendimento. Com humildade, a jovem declarou que não sabia como pacificar aquela memória. Ser abandonada pela mãe é um situação de extrema dificuldade para uma criança, argumentou. O mestre taoísta concordou e ponderou: “Sem dúvida. Mas não podemos ficar parados. Não raro, o aperfeiçoamento do entendimento de antigas experiências dolorosas passa pela desconstrução de velhas crenças. Acreditamos em muitas coisas que nos fizeram chegar até aqui. Para seguir adiante será necessário reformular as crenças para conseguir enxergar tanto a si mesmo como ao mundo com um olhar mais claro e de maior alcance”. Teve a atenção voltada aos miados de Meia-noite se espreguiçando em cima da geladeira, sorriu e depois retomou a seriedade necessária ao tema: “Por exemplo, as pessoas que são enganadas em relacionamentos afetivos ou comerciais se autoflagelam por se enxergarem como os trouxas ou otários da situação. Esta é a crença predominante no mundo. Porém, uma visão rasteira e curta. Se olhar do alto, perceberá que tolos são aqueles que não fizeram jus à confiança que neles foi depositada, pois renunciaram à própria dignidade. Há que se ter compaixão por quem se perde pela falta de princípios e se destrói na ausência de valores”. Esvaziou a xícara e alertou: “Junto com a paciência, a tolerância e a compaixão nos aproximamos do indispensável perdão, movimento sem o qual a pacificação definitiva por cada uma das nossas lembranças desagradáveis nunca acontecerá”.

A bela mulher pediu para que falasse um pouco das virtudes a que se referira. Li Tzu esclareceu: “A paciência surge da compreensão de que a vida não acontecerá ao sabor dos nossos desejos. A tolerância se traduz no respeito que, desde que não me furtem os direitos fundamentais, as pessoas são livres para exercerem as suas próprias escolhas, ainda que eu discorde delas. A compaixão se sintetiza na sincera aceitação das dificuldades alheias, com a mesma humildade com que reconheço as minhas. Somente a partir daí as portas do perdão se abrem. Apenas o perdão tem o poder de nos libertar para sempre de todo e qualquer sofrimento”.

Teresa compreendia a teoria, mas disse não saber como a tornaria realidade. O mestre taoísta arqueou os lábios em leve sorriso como se já esperasse por aquele comentário e pontuou: “É preciso compreender o enredo”. A jovem disse não entendido. Eu também não. Ele nos convidou a retornar à sala de meditação e disse: “Há muitas maneiras de fazer. Cada um tem a sua e todas são válidas. Vou revelar aquela que utilizo para me curar do passado ao encontrar nas experiências desagradáveis os mestres da minha evolução”.

Acomodamo-nos da maneira mais confortável possível. Uma música suave para meditação, junto com as palavras do mestre taoísta, nos conduzia a um estado alterado de consciência. “Silenciar a multidão de vozes que falam em nossa mente ao mesmo tempo é primordial para que consigamos ouvir a voz da alma. Pessoas angustiadas e ansiosas se perdem nos conflitos dos diálogos interiores. Faz-se imprescindível serenar a mente para encontrar as saídas inimagináveis”, explicou. Esperou alguns minutos para que fizéssemos esse movimento e disse: “No texto do Tao Te Ching, Lao Tsé nos alerta que o regresso é movimento essencial ao Caminho. No livro sagrado do ocidente nos foi dito que o sagrado está dentro e fora da gente, ao mesmo tempo. Como esses ensinamentos se entremeiam para nos ajudar?”. A pergunta era de retórica e ele prosseguiu: “Em suma, nos orientam que a cada experiência vivida se faz necessário regressar ao laboratório da alma para que o fato seja processado, filtrado e compreendido, transformando o acontecimento em conhecimento, que se expressará em força e equilíbrio intrínsecos dali por diante. Depois, retornar ao mundo na busca por novos desafios existenciais e consequentes elaborações interiores. Nesse vai e vem infinito, a cada transmutação realizada, morre alguém que deixei de ser para nascer alguém que me tornei, mais pleno e evoluído. Existe também o entendimento de que ambos os textos se referem ao processo reencarnatório fundamental à evolução do espírito, o verdadeiro viajante rumo à Luz. Entendimentos esses que não se contradizem ou anulam, mas se completam e aperfeiçoam”.

Dirigindo-se a jovem mulher, esclareceu: “A Teresa não é quem você genuinamente é, porém, um personagem colocado dentro de um enredo adequado para desenvolver atributos e virtudes ainda em potencial. Não há nada de errado nisto, ao contrário, trata-se de um método sábio e eficaz de aprendizado, transformação e realizações evolutivas. As dificuldades são forjas a moldar o caráter e aprimorar a ética para manter o caminho do bem diante dos desvios que convém. Serve também para fomentar o amor; não o amor fácil que brota das relações amistosas, mas o amor que germina como uma improvável flor que vence a aridez do terreno para desabrochar entre as pedras. Assim é comigo, contigo e com todos. Um enredo não é igual a outro porque ninguém é igual a ninguém. Herdamos as conquistas e as faltas do último personagem quando se encerrou o enredo anterior. Um novo enredo é montado no intuito de melhor aproveitar as experiências que surgirão, sempre tendo a finalidade de clarear e descontruir medos e sofrimentos herdados do passado. Em verdade, somos espíritos vivendo roteiros singulares de lutas interiores para iluminar os cantos escuros da casa que moramos. Ninguém estará definitivamente pronto enquanto se negar a arrumar os porões da consciência. O passado volta a doer para lembrar das feridas que precisamos cicatrizar. O esquecimento não é terapia eficaz de cura assim como fechar o porão não fará desaparecer o conteúdo nele guardado. O enfrentamento se faz necessário”. Fez uma pausa para que fôssemos concatenando o raciocínio antes de continuar: “Cada um de nós é o personagem adequado ao enredo que precisa vivenciar a cada existência, com as circunstâncias específicas, entre facilidades e dificuldades necessárias ao seu melhor desenvolvimento. Não há o que lamentar, mas agradecer e aproveitar”. Sem pedir licença, Meia-noite entrou na sala e se acomodou no colo da jovem. Sem abrir os olhos, ela sorriu ao sentir a presença do bichano e o acariciou. Li Tzu continuou a explicar: “Qualquer pessoa, enquanto personagem existencial, tendo o ego no comando, terá enormes dificuldades para superar sofrimentos profundos. A razão é simples. O olhar será rasteiro e curto por priorizar questões mundanas e crenças estreitas em prejuízo a valores essenciais. Contudo, ao se perceber e aceitar como espírito em viagem de aprendizado, transformação e realização a visão se eleva e alonga. Para tanto, se afaste do cenário e dos atores para observar e analisar o enredo como um expectador lúcido, mais atento ao conteúdo da mensagem do que ao resultado aparente da trama e, tão importante quanto, desvinculado das emoções dolorosas que restringem a expansão das ideias do personagem. Vale o seu desenvolvimento espiritual, tudo mais é menos”. Em seguida, fez uso de uma alegoria para expandir e facilitar o entendimento: “Diante de um muro, o ego é como uma lagarta que, por estar colada ao chão, se verá diante de um obstáculo intransponível. Já o espírito, ao ressaltar a importância dos valores imateriais, se descola do mundo dos medos como um pássaro que, ao voar alto, enxerga esse mesmo muro com a altura de um risco de giz. A perspectiva do olhar transita do denso ao sutil; a importância se desloca, a causa do sofrimento se torna insignificante e um diferente nível de compreensão se torna possível. Há aspectos mais valiosos a serem levados em conta. Tudo começa a mudar. Isso acontece quando as prioridades e as virtudes que moveram a pessoa até aqui, mas que nesse instante a impedem de ir além de si mesmo, e por isto sofre sem compreender os verdadeiros motivos da dor, são substituídas por outras mais sutis e aperfeiçoadas. Dos obstáculos nascem os mestres; a verdade se expande, as portas da vida se abrem, o indivíduo conquista o direito de avançar. As virtudes como solucionadoras de problemas se mostram perfeitas na reconstrução de si mesmo; as prioridades reestabelecem uma nova rotina para essa obra. O personagem se liberta de medos e sofrimentos; ansiedades e tristezas se desmancham por falta de razão para existir. Em síntese, é um processo em que o ego se descola do personagem para se fundir à eternidade individual. O ego se afeiçoa ao encantador poder da sua autêntica personalidade, a alma. A mudança de olhar modifica a realidade; a sutileza no jeito de andar remodela o caminho”.

Naquela tarde, o avanço foi quase imperceptível. Tanto para mim quanto para ela. Todos temos neuroses e traumas provenientes de experiências mal compreendidas pela incapacidade de melhor elaborar os sentimentos à época dos acontecimentos. Durante uma semana, após as aulas, depois que os alunos se despediam, íamos à sala de meditação para o exercício de descolar o espírito do personagem no esforço de entender a beleza proposta por um enredo repleto de desafios. Eu me sentia como se estivesse em uma arena interior na qual luz e sombras duelavam em mim por pertencimento e libertação. O resultado foi fantástico. Ao final, entre lágrimas e risos, Teresa revelou compreender a grandeza do enredo proposto pela vida ao se permitir a experiência de amar uma criança gerada em outro ventre como filho genuíno, um amor igualmente sagrado como são todos os amores. Somente a visão espiritual permitia o encantamento por tamanha oportunidade. As famílias se formam de muitas maneiras, mas apenas o amor funde os seus integrantes em um só coração. Agradecia por esse entendimento. Depois, falou que, embora não concordasse, respeitaria o desejo da mãe em viajar pelo mundo ao lado do guitarrista de uma banda de rock; havia na mãe a crença de acreditar que as maravilhas da vida estavam nas coisas do mundo. O amor compreende mesmo sem concordar; o amor respeita para não se aprisionar. Tornar a sentir afeto pela mãe trazia uma sensação indescritível de suavidade e leveza. Comentou como era bom voltar a gostar das pessoas. Em seguida, confessou que desde criança se sentia culpada, pois, atribuía a partida da mãe ao fato de ser uma menina muito levada. Nunca contara isto a ninguém. Um segredo de porão. Fora injusta consigo por longos anos por se deixar levar por essa ideia que construíra equivocadamente. Amava tanto a mãe que não conseguia entender que ela partira por escolhas que nada tinham a ver com as travessuras da filha. Compreendera que o maior dos abandonos era se envolver em amargura ao exigir que alguém entregue algo que não consegue ou possui. Nada nem ninguém seria do jeito que ela queria; apenas a Teresa podia ser inteiramente ao seu gosto. Ofereceu um dos mais lindos sorrisos que já vi e disse ter arrumado a casa. Estava na hora de voltar ao lar. Ao lado do Ricardo, desejava por uma sopa de batatas com vinho barato à luz de velas compradas no mercado da esquina. O amor que não existe é apenas o amor que ainda não foi criado. A melhor parte do enredo estava à sua espera. Cada um dos desafios servia ao embelezamento de quem se tornava.

Agradeceu ao mestre taoísta e partiu no ônibus daquela tarde. Graças à compreensão do enredo, a Teresa que partiu não era mesma que chegou na pequena vila chinesa. Era uma mulher muito mais bonita.

5 comments

SCHWEITZER outubro 1, 2023 at 4:50 pm

Não existe amor ou próximo sem amor próprio.

Amei.

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Maangoba outubro 3, 2023 at 3:08 pm

sempre tem o que arrumar na minha casa. hora da faxina!
preciso entender que o eu que me trouxe até aqui não será o mesmo que vai me levar adiante.
gratidão, caro amigo

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CRISTINA outubro 5, 2023 at 4:06 am

Impressionante como os seus textos sempre se encaixam nos meus aprendizados de vida no exato momento em que se aparece.

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Rhodolfo Diniz novembro 21, 2023 at 1:15 am

Gratidão! 🙏😁

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Terumi dezembro 11, 2023 at 2:22 am

Gratidão 🙏

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