As paredes de pedra quase não eram vistas por trás dos livros que preenchiam as inúmeras prateleiras. Velas acesas iluminavam a biblioteca. As duas mesas de madeira estavam repletas de papéis empilhados. Um homem de meia-idade, com cabelos longos e vestido com apuro, escrevia avidamente como se o tempo fosse curto para registrar todas as suas ideias. Quando percebeu a minha presença, sem levantar os olhos, apontou para um pequeno armário que estava atrás de mim e pediu para que eu pegasse mais um pouco de nanquim. “O tinteiro está quase vazio”, explicou. Obedeci. Ele agradeceu e disse para que eu me sentasse em uma das cadeiras. Perguntei sobre qual assunto ele escrevia. “Parece incrível que não consigam discernir a diferença entre todas as coisas”, comentou sem esclarecer. Perguntei sobre quais coisas ele se referia. O escritor comentou: “O mundo se move cada vez mais rápido. Notícias e fatos se amontoam. As pessoas confundem informação com conhecimento; conhecimento com sabedoria. Mostram-se incapazes de filtrar cada acontecimento, não se permitem olhar sob múltiplos ângulos. A construção da verdade fica viciada”. Deu de ombros e acrescentou: “Deixam-se conduzir como cegos. Não é de se espantar que não saibam onde estão. Não podem reclamar. O destino se define através das próprias escolhas, ainda que haja manipulação na descrição dos fatos e censura para divulgação. Não sabem e, mais grave, não querem aprender a pensar. O pensamento são os olhos pelos quais cada pessoa vê a si mesmo, o mundo e entende a realidade. O pensar precisa da liberdade como um pássaro necessita das asas para voar. Quando lhe cortam as asas, o pássaro perde a razão de existir. O viver se torna limitado quando os dias são carentes de sentido. O pensar define o alcance do voo da liberdade”.
Pedi para ele explicar melhor. O homem ficou animado com o meu interesse: “Informação é o recebimento de fatos, notícias, estudos, observações e ideias. O pensar é a forja pessoal que irá transformar a informação em conhecimento, assim como o ferreiro faz do aço uma espada. O conhecimento é a informação que acrescenta conteúdo, como quem adquire uma nova ferramenta para tornar os dias mais interessantes ou suaves. Quando desperdiçado, o conhecimento não passará de mera erudição. Tudo sei, mas nada sou. Ao aplicá-lo adequadamente na solução dos problemas, enfim, para o bem viver, se transforma em sabedoria. Sou tudo que sei. A importância disto consiste na orientação das escolhas que alteram, não apenas o destino de uma pessoa, mas também de povos e nações. A manipulação do conhecimento e das ideias é um modo nefasto de dominação. Uma odiosa prisão sem grades”.
Comentei que as pessoas têm a necessidade de pertencimento. Por condicionamento ancestral, todos procuram um grupo social para integrar, seja pela necessidade de identificação, seja para se sentirem protegidos. São as aldeias existenciais. Elas podem se originar por razões profissionais, econômicas, intelectuais, ideológicas, afetivas, entre outras. Esta é uma das raízes dos preconceitos, pois todas as diferenças são vistas como ameaças, sejam ao status quo, sejam por demolir conceitos obsoletos que se acreditam verdadeiro. Todo ódio que sentem pelas mentiras que não querem admitir se transfere para aqueles, cuja única e suposta culpa, é serem diferentes por pensarem com liberdade. Ele balançou a cabeça, mostrando que sabia do que eu falava e acrescentou: “Por medo, atacamos. Quando o instinto de sobrevivência se sobrepõe aos pensamentos claros e sentimentos sutis, estreitamos as fronteiras da vida e os limites das nossas próprias capacidades. Sem perceber, o indivíduo assume duplo papel, ao se tornar prisioneiro e carcereiro de si próprio. Simultaneamente”.
O escritor falou em um tom como quem revela um segredo: “Criamos a autocensura, a mais cruel de todas as limitações. Quando acontece é como se dissemos para nós mesmos que não temos o direito de ser quem somos, que a verdade que nos orienta a escolha, por ser alvo de críticas ou proibições, será causa de vergonha. Assim como será humilhante, ao menos para quem carece da valiosa humildade, admitir um erro que pautou a vida desde sempre. Então, mentimos. Para todos, inclusive para nós mesmos”. O seu olhar vagou para algum lugar distante dali. Em seguida, filosofou: “As pessoas vivem como em um animado baile de máscaras. Interpretam personagens distantes das suas essências. Confundem euforia, uma deliciosa sensação vivida mundo afora, com alegria, um valioso movimento universo adentro. Euforia revela brilho e fuga; alegria significa luz e encontro”. Fez uma indagação retórica: “Mas como encontrar comigo se eu nego quem verdadeiramente sou?”.
Após uma pequena pausa, prosseguiu: “De tanto darem as costas à verdade, na noite de um dia qualquer, muitos se darão conta que já não sabem mais quem são. Então, de nada adiantará lamentar a obra desperdiçada”. Perguntei que qual obra ele se referia. “A construção de si mesmo, apenas possível para quem trilha a estrada da verdade”. Interrompeu a fala por breves instantes, deu de ombros e disse: “Faz-se necessário entender o sentido de todas as coisas; o significado de cada experiência. De que adianta ter todas as cores se nada fica colorido? Escutartodos os sons sem ouvirqualquer melodia? Experimentar todos os sabores e não sentirnenhum gosto?”. As respostas estavam contidas nas preguntas. Ele continuou: “Fora da verdade, todos os movimentos são vazios, pois retiram um importante conteúdo gerador de força e equilíbrio nas escolhas. Qualquer uma. Em maior ou menor grau, todas estabelecem a rota e definem o sentido da vida”.
Abriu os braços como maneira de ressaltar as palavras e comentou: “A liberdade é como um animal selvagem que, embora encantador, evitamos por medo que nos devore. Perdemos a liberdade à medida que nos afastamos da nossa essência. Ao viver aquele que não somos, abandonamos quem poderíamos ser. A realidade se apequena. As possibilidades e capacidades também. Tédio, apatia, tristeza ou agressividade sinalizam os gritos ainda incompreendidos de quem necessita ampliar os limites da própria verdade para se aprofundar em tudo aquilo que pode se tornar”. Fechou os olhos e murmurou: “Longe de si mesmo, distante da luz”.
Comentei que fugir da verdade é fantasiar a realidade. O filósofo expandiu o raciocínio: “Fugimos de quem somos quando preferimos os entorpecimentos das festas, a glória dos títulos e honrarias, a euforia proveniente da suposta superioridade estabelecida pelo conforto de escondermos medos, equívocos e incapacidades. Desperdiçamos a riqueza das genuínas virtudes. Ocorre, que por serem o perfeito casamento do amor com a sabedoria, as virtudes são silenciosas; por não provocarem alarde, a maioria não lhes atribui nennhum valor; não proporcionam poder e fascínio semelhante ao oferecido pela espada que corta, acua e subjuga. Infligir dor e medo aos outros ainda seduz mais do que alcançar o respeito pelo acolhimento, compromisso e solidariedade. Nem todo movimento conduz à frente, nem toda colorido embeleza, nem todo som é música, nem todo sabor adoça. Pagamos pelo aluguel de um brilho temporário no mundo ao invés de conquistarmos a propriedade definitiva da luz própria. Vivemos em busca da aprovação alheia por nada sabermos sobre a obra da vida; a construção do ser através do viver. Confundimos conquistas com troféus”. Sacudiu a cabeça e afirmou: “Galopes e caçadas atormentam o espírito, embora seja o entretenimento preferido dos nobres e da realeza. A busca desmedida por riqueza avilta o espírito, pois as faz gananciosas, mesquinhas, tornando indignas as suas relações. O dinheiro é somente um meio, jamais um fim; embora seja a razão de viver da maioria das pessoas. Todas as atividades que exaltam o orgulho e a vaidade, são sombras que enganam por esconder a verdade frágil de quem não tem alicerce para se erguer sob os pilares do amor sereno e da sabedoria silenciosa. Mais grave, fazem esquecer o valor de uma vida pautada em virtudes vitais como a humildade, a simplicidade e compaixão. Quando a arrogância predomina, significa que a fragilidade se sobrepôs a verdadeira força. A escuridão dominou a luz”.
Perguntei como fazer para escapar dessa armadilha existencial. Ele repousou a pena dentro do tinteiro e me olhou atentamente. Depois, disse: “O mais importante é nunca abdicar da própria verdade. O sábio se orienta pela voz interior. Serene o coração para que emoções densas não cortem as asas do livre pensar. Leia muitos livros, converse com as mais diferentes pessoas; tudo e todos são fontes preciosas de conhecimentos. Contudo, aprenda a filtrar tudo que ouvir; separe os discursos agradáveis das palavras úteis; jogue fora todas as ideias que promoverem o ódio e os conflitos. Use os olhos para ver as maravilhas do mundo, aprenda a enxergar com a consciência para descobrir as maravilhas da vida. Mova-se sempre por amor para que a vida seja leve. Erros e acertos devem se guiar pela sua mais pura verdade. Nada mais; somente assim conseguirá aperfeiçoá-la. Faz-se indispensável sentir o poder das escolhas pulsando na ponta dos dedos. Eis o nascimento da liberdade. Do contrário, a realidade se apequenará, terminando por esmagar os dias”.
Em seguida, acrescentou: “Ainda há muito mais. O que estabelece a aspereza ou a suavidade dos dias não são as circunstâncias do mundo, mas a percepção e a sensibilidade que se tem sobre si mesmo e da vida ao redor. Isto define as suas buscas, encontros e conquistas. Trata-se da sua verdade. Esses são os motivos pelos quais o sábio não se deixa seduzir pelos valores do mundo, pois, vitórias que nada acrescentam ao espírito se revelam, mais adiante, como tristes derrotas. No Caminho você encontrará alguns sábios e, também, muitos falsos profetas. Nem sempre será fácil discernir uns dos outros. Portanto, jamais esqueça, a sua verdade é o seu mestre. Somente por intermédio dela, entre erros e acertos, será possível acender a luz, aquela que carregará sempre consigo onde quer que esteja. Então, poderá seguir em paz, sem temer a escuridão”.
Ficamos algum tempo sem dizer palavra. Eu precisava alocar aquelas ideias em mim. Até que o escritor rompeu o silêncio e apontou para um pesado livro que estava na outra mesa. Disse para eu o abrir aleatoriamente. Assim o fiz. A página estampava uma linda iluminura de uma rosa transpassada por um punhal. Não tive dúvida de se tratar de uma mandala. Mais um portal interdimensional se apresentava. Era hora de seguir a viagem.
Poema Doze
Todas as cores e nada fica colorido.
Todos os sons sem qualquer melodia.
Todos os sabores e nenhum gosto.
Galopes e caçadas atormentam o espírito.
A busca desmedida por riqueza avilta o espírito.
O sábio se orienta pela voz interior.
Não se deixa seduzir pelos valores do mundo.
A sua verdade é o seu mestre.
7 comments
Gratidão sempre por partilhar seus textos.
Adorei a nova formatação do blog. Gratidão again
Gratidao por tanta clareza!!
Obrigado por mais um texto.
Gostei bastante do novo visual do blog.
Muita paz!
Gratidão 🙏
Show!
Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟
“A sua verdade é o seu mestre” Acho que aqui o texto revela o grande segredo da vida. Que tudo que buscamos ja se encontra dentro de nos, se tivermos a coragem de ser honestos com nos mesmos.
Genial