TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo quinto limiar – O enigma do prazer)

África. Um acampamento de refugiados. Centenas de pessoas aguardavam a vez para serem atendidas. Nas diversas barracas, muitas serviam como dormitórios, outras poucas eram ocupadas para assuntos administrativos. As demais funcionavam como hospitais. Apesar das dificílimas condições, infinitamente aquém das oferecidas nos centros urbanos, médicos se desdobravam para salvar vidas. A maior parte das enfermidades tinham como causa a desnutrição, a pouca oferta de água potável e as precárias condições de higiene anteriores ao acampamento. Os olhos dos refugiados me confundiam entre o desânimo e a resignação. De nada adiantava gritar ou se revoltar. Ao contrário, o olhar se modificava para expressão de sincero agradecimento ao serem atendidos, seja recebendo uma singela refeição, um pouco de água fresca ou ao ver o socorro prestado aos seus filhos. Tudo naquele hospital era improvisado; no entanto, os resultados pareciam suprir as expectativas e as avaliações meramente científicas. A boa vontade e, acima de tudo, o amor dedicado eram as alavancas da superação. Ainda que longe de qualquer invencibilidade, a vida conseguia virar o jogo contra a morte na maioria dos casos. Tive atenção voltada para uma jovem médica; alta, esguia e bonita que, se não tivesse abraçado a nobre missão de curar, poderia ter feito carreira nas passarelas ou sob as angulares fotográficas da moda. Incansável, ministrava antibióticos e vitaminas sempre acompanhadas com altas doses de ânimo, carinho e esperança. Ao final da tarde, depois de acesos os lampiões do acampamento, com o corpo alquebrado pelo cansaço, a moça se sentou para comer um prato de sopa com um pequeno pedaço de carne. Sentei-me no banco ao seu lado. Ela me olhou, esboçou um singelo sorriso e voltou à refeição sem dizer palavra. Comentei que havia muita injustiça no mundo; poucos com muito, muitos com pouco. Não precisava ser daquela maneira. A médica voltou a me olhar e disse: “A grande perfeição parece imperfeita, mas sua eficiência não se perde”. Incrédulo, questionei se naquela frase ela sustentava que o mundo seria perfeito. Sem se abalar, confirmou: “Sim, o mundo é perfeito graças às suas imperfeições”. Falei que não fazia sentido. A jovem me corrigiu: “Não fará sentido se olhar para o mundo como um resort, como quem tira férias em um hotel paradisíaco onde todos os serviços funcionam ao gosto do cliente; então, o mundo parecerá conturbado demais e os dias serão decepcionantes. Se o observar como um escola, na qual o método de aprendizado são as dificuldades e os problemas, se dará conta que estuda em um excelente colégio. Frustações, inconformismo e tristeza são gerados pela falta de entendimento sobre o lugar onde estamos. Necessitamos evoluir, algo impossível sem o devido conhecimento sobre quem ainda não somos. Ao compreender que estamos em aula, e não de férias, o ânimo se modifica, trazendo a alegria, o maravilhoso sentimento oriundo da virtude de encontrar o lado bom de todas as situações”.

Discordei. Argumentei que não havia nada de bom em se deparar com crianças morrendo em decorrência da subnutrição, da cólera ou de outras enfermidades cujas causas eram as absurdas carências às condições fundamentais à vida. A médica me explicou: “Devemos fazer de tudo para modificar a situação em que milhões de pessoas vivem no planeta; os motivos são vários e vão muito além da fome ou da miséria material. Se fizer a leitura pelo recorte de uma única existência, concluirá que existe muita injustiça; ao aceitar uma narrativa mais ampla e profunda, na qual o indivíduo herda as condições plantadas no somatório das suas últimas existências, compreenderá a presença de uma sabedoria maior, que entrega a cada um a medida exata do que precisa aprender para que, mais adiante, consiga aproveitar outras experiências evolutivas. Se possuir bons olhos, enxergará um grande amor por trás de todo esse movimento pedagógico”.

Insisti na injustiça de a Europa, que sugou a África por intermédio das suas colônias no Século XIX e parte do XX, agora se negar a receber os africanos que fogem da miséria gerada pela exploração comercial que os impuseram. Aquele acampamento era prova disso. A médica meneou a cabeça e disse: “Se fizer o recorte histórico através dos fatos recentes, sem dúvida, verá injustiça e sentirá revolta. Contudo, para entender a excelência do colégio que estamos matriculados, se faz indispensável não se ater a parte, mas olhar o todo. Quem o garante que os africanos de hoje não foram os europeus que ontem devastaram a África? Agora tentam retornar à Europa, mas não lhes é permitido, sendo obrigados a herdar o legado que deixaram. Haveria método de aprendizado mais eficiente do que conduzir espíritos a sentirem na própria pele a miséria que provocaram?”. Fez uma pausa e complementou: “Sem entender o processo reencarnatório como molde de aprendizado, transformação e progresso espiritual, nada compreenderá sobre a vida”.

Perguntei se tinha certeza do que falava. Ela foi sincera: “Quanto ao processo reencarnatório como forja do desenvolvimento, não tenho nenhuma dúvida. Sobre o fato específico, não possuo qualquer informação. É apenas uma hipótese”. Ponderei que, se ela tivesse certa, deveríamos deixar que os refugiados se virassem sozinhos. Afinal, vivem as consequências que eles próprios provocaram. A jovem ficou séria e me corrigiu: “Não foi isso que eu disse; tampouco, irei justificar o gesto de abandono e insensibilidade da comunidade internacional para as condições de algumas regiões da África. Faz parte da responsabilidade de todos que a percebem, fazerem os movimentos possíveis, no limite da disponibilidade e da disposição de cada um, para que esses povos sejam acolhidos. Isso fará bem àqueles que acolhem pelo sentimento que neles florescerá, assim como será transformador aos acolhidos por sentirem o amor oriundo de quem desconhecem. Uma experiência muito rica na qual todos os envolvidos aprendem e se beneficiam. Trata-se de uma escola fantástica com infinitas possibilidades. Pena que muitos não a percebem; seus métodos e resultados não são visíveis quando os olhos não conseguem ver além dos reflexos físicos e materiais da imagem que se satisfaz no espelho de Narciso”.

Em seguida, me perguntou: “Quais os seus maiores desejos?”. Surpreendido pelo questionamento, demorei a responder. Ela se adiantou: “Todos desejam poder”. Todos? Estranhei. A jovem confirmou: “Sem exceção. As multidões anseiam pelo poder político ou financeiro capaz de dominar ou ter outras pessoas ao seu dispor. Para muitos, o principal estímulo do dinheiro e do sexo é o domínio e a posse. Um desejo típico dos imaturos, daqueles cujo ego ainda não dialoga com a alma; desconhecem tudo de bom que dinheiro e sexo podem proporcionar. No decorrer de várias existências, depois de conseguir elaborar melhor as muitas experiências vivenciadas, já com algum resquício de sabedoria, passam a desejar pelo grande e verdadeiro poder: o domínio sobre si mesmo, apenas possível quando pensamentos, sentimentos e escolhas deixam de sofrer qualquer influência ou controle alheio. Buscam por equilíbrio emocional e força de vontade para que nada nem ninguém consiga os arrancar dos seus eixos de luz e, assim, possam fluir com leveza e suavidade por entre obstáculos da existência. Para muitos, a grande plenitude parece vazia, mas sua eficiência não se esgota”. Interrompi para indagar sobre essa grande plenitude a que se referia. A médica explicou: “Cada indivíduo encontrará a riqueza que procura; elas são muitas e várias. Existe uma que nem um pouco atrai as multidões desatentas, pois em nada altera o saldo bancário de quem a conquista. A grande riqueza parece pobre. Os indivíduos plenos em si, quando desprovidos dos poderes mundanos, não raro, são considerados alienados e ignorantes, distantes das conquistas que muitos entendem como prioritárias à vida. A plenitude é a riqueza de viver bem consigo mesmo; livre para escolher no limite extremo da sua consciência; digno por tratar a todos como gostaria que o tratassem; em paz por ter desmanchado as incompreensões geradoras de todos os medos e sofrimentos; feliz por ser hoje uma pessoa melhor do que era ontem; e, por fim, mas não menos importante, para entender que o legítimo amor jamais gera qualquer tipo de dependência, pois traz a fundamental compreensão de que o amor se completa no momento da ação sem ficar à espera de nenhuma devolução. Para muitos, uma riqueza vazia; contudo, não existe poder maior do que caminhar sob o equilíbrio e a força da própria luz. Não há escuridão que o alcance”.

Comentei que compreendia o poder e a eficácia da plenitude. Perguntei qual era o caminho para a conquistar. Ela foi suscinta: “A verdade e as virtudes. Use-as como valores na construção de si mesmo. Desconheço outro jeito”. Ponderei que vinha tentando me tornar uma pessoa melhor no decorrer dos últimos tempos. No entanto, os tropeços e as quedas eram contínuos. A médica balançou a cabeça como quem diz entender e falou: “Os erros são fatores essenciais às vitórias, pois nos levam a conhecer o que ainda está mal construído em nós. No compasso da reconstrução, a verdade como a conhecemos se modifica. O olhar se amplia, a compreensão se eleva. Faz-se necessário corrigir a rota para se manter no rumo da luz. A grande reta parecerá torta àqueles que nada sabem sobre as transformações do viajante durante a jornada”.

“Dirão que o conheceram no passado e sabem dos seus erros; tentarão lhe fechar as portas. Mas ninguém precisa da autorização de ninguém para seguir no Caminho; não se trata de uma permissão. Se a transformação pessoal é uma conquista; avançar se torna um direito natural. Ainda que a grande habilidade de se mover através das virtudes pareça desajeitada e ineficiente, receba críticas e não mereça crédito de mais ninguém, não importa. Confie em si, perdoe e siga em frente”.

Sorveu mais um pouco da sopa e acrescentou: “Diante de cada desafio, use as palavras somente se não for possível se expressar por intermédio das ações. As atitudes silenciosas têm poder infinitamente maior. A grande eloquência parece muda, mas apenas a ação chancela o viajante a atravessar os portais seguintes do Caminho. Tudo mais resta aprisionado em discursos de mera erudição e efeitos rasos”.

Concordei que havia muitas reclamações e lamentos, porém, poucas atitudes. A médica esclareceu: “De nada vale apontar o que está mal construído se falta disposição para a reconstrução, seja quanto a si mesmo, seja naquilo que estiver ao redor. Toda essa falação vazia em atitudes cria uma relação vadia entre a verdade e a realidade. A inércia barulhenta gera desorientação, desânimo e desesperança; a alma fica emburrada como se vivesse em um inverno sem fim, com a triste sensação de que a primavera jamais retornará. O movimento vence o frio da estagnação, fazendo com que a vida vença a morte antes da morte. Sempre é possível fazer algo. Por mais simples que seja o gesto, na medida da sua capacidade, ajude a erguer aquele que desabou, começando por si mesmo. Ou cale-se. O mundo não precisa de detratores, mas de jardineiros a semear vida por onde andar”.

Olhou para o acampamento que se preparava para dormir e salientou: “Contudo, nem todo movimento é luminoso. Polêmicas e discussões acaloradas dispersam a luz; debates que mais servem para alimentar a vaidade dos eruditos, sem trazer a ação que conduz ao resultado, carece de sabedoria e de amor. Acreditando-se úteis ao bem, em verdade, fazem o serviço das sombras. Gosto das atitudes mansas e das palavras silenciosas. A quietude, o solo fértil onde a alma germina ideias e vontades, move as ações com extrema eficácia; assim, supera o calor abrasivo e desnecessário dos gritos e dos discursos daqueles que tudo sabem, mas nada fazem”. Olhou para o manto de estrelas que embelezava a noite e finalizou: “Sob o céu, ou seja, no mundo e na vida, a serenidade traz consigo o poder da clareza e, assim, domina todas as situações por encontrar soluções onde antes havia apenas confusão e desânimo. A agonia, desespero ou violência, de qualquer espécie, jamais se justificam, atrapalham no equacionamento das autênticas soluções e impedem a reverberação da luz”.

Uma anciã, do grupo dos refugiados, se aproximou. Existia uma bondade indescritível em seus olhos. Havia doçura no timbre da sua voz. Ela se dirigiu à médica e aconselhou: “Está tarde. Você precisa descansar. Não existem domingos por aqui”. A jovem sorriu, concordou e se despediu. Observamos a bela mulher se afastar até desaparecer entre a barracas. Perguntei a quanto tempo a médica trabalhava no acampamento. A anciã me olhou com compaixão e disse: “Ela não trabalha aqui. Há anos vem passar as suas férias conosco”. Diante do meu olhar de surpresa, esclareceu: “Quase todos os médicos e enfermeiros que estão no acampamento possuem uma ótima condição de moradia, salário e entretenimento em seus países de residência; em sua maioria, moram em modernos centros urbanos e têm acesso ao que há de melhor em tecnologia e bens materiais. Trabalham o ano inteiro em hospitais ultra aparelhados e, nas férias, trocam os dias de descanso nas ilhas gregas ou em estações de esqui para estarem aqui, envolvidos com que há de mais precário à sobrevivência humana. Fazem o que podem; fazem por prazer”. Argumentei que faziam por caridade, nunca haveria prazer em lidar com tamanha carência e dificuldade. A anciã arqueou os lábios em lindo sorriso e me ensinou: “Todos devemos buscar o prazer. Viver com prazer é a expressão máxima da prosperidade, a riqueza imaterial de viver bem consigo mesmo. Compreender qual prazer buscamos pode se tornar um bom referencial para nos conhecermos melhor. O prazer está relacionado ao gosto, interesses e prioridades. Isso muda de uma pessoa para outra. A escolha do deleite define a intensidade da luz pessoal e o destino do próximo trecho da viagem”.

Anciã disse que precisava se recolher. Agradeceu a conversa e se foi. Afastei-me um pouco do acampamento. Deitei-me na areia para me inebriar com o céu. No deserto, as estrelas parecem estar ao alcance das mãos. Uma das constelações formava uma mandala desenhada por mil pontos luminosos. Atravessei- a num piscar de olhos.

Poema Quarenta e Cinco

A grande perfeição parece imperfeita,

Mas sua eficiência não se perde.

A grande plenitude parece vazia,

Mas sua eficiência não se esgota.

A grande riqueza parece pobre.

A grande reta parece torta,

A grande habilidade parece desajeitada,

A grande eloquência parece muda,

O movimento vence o frio,

A quietude supera o calor.

Sob o céu, a serenidade domina todas as situações.

4 comments

Rhodolfo julho 12, 2023 at 10:20 pm

Gratidão! 🙏🙏

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juju julho 16, 2023 at 10:34 pm

muito bonito

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Terumi agosto 10, 2023 at 1:54 am

Gratidão 🙏

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Maangoba outubro 18, 2023 at 8:31 pm

gratidão, meu amigo

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