MANUSCRITOS IV

A escolha certa

Tinha algum tempo que eu não encontrava com o Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos. Os de filosofia e os tintos eram os seus preferidos. O artesão possuía uma incomensurável habilidade em costurar tanto o couro dos sapatos quanto as ideias que nos conduzem na vida e à vida. A sua oficina era lendária na pacata cidadezinha localizada no sopé da montanha que abriga o mosteiro pelos horários incertos e inusitados de funcionamento. Sempre que eu cumpria o período anual de estudos na Ordem passava em sua oficina para uma boa conversa. Regada a vinho ou café, a depender da hora. Como eu gostava de pegar um trem que me deixava na estação ainda pela madrugada, flanava pelas ruas estreitas e sinuosas com calçamento de pedras seculares, na expectativa de encontrar a oficina aberta. Quando eu virava a esquina e avistava a sua clássica bicicleta encostada no poste em frente sabia que era um dia de sorte. Assim foi naquele dia. Como a minha carona até o mosteiro era para a hora do almoço, eu tinha toda a manhã livre para conversar com o sapateiro. Fui recebido pelo elegante artesão com um sorriso largo e um forte abraço. Acomodado ao lado do antigo balcão de madeira do atelier, esperei que o Loureiro passasse um bule de café fresco para animar o dia e ajudar a ativar a mente, sempre preguiçosa pela manhã. Com duas canecas fumegantes à frente, iniciamos uma animada atualização dos últimos meses. Falávamos de trabalho, filhos, viagens, livros, filmes, projetos de curto e longo prazos, todos os assuntos misturados, como acontece na alegria de dois amigos que se reencontram depois de algum tempo, quando fomos interrompidos pela Dayse. Ela era uma mulher muito bonita e culta, amiga de longa data do Loureiro, proprietária da charmosa livraria da cidade, sempre repleta com bons títulos. Como muitas vezes passávamos na livraria atrás de novidades, costumávamos nos sentar em uma cafeteria que ficava em um agradável terraço florido nos fundos da loja para uma taça de vinho ou xícara de café. Por várias vezes Dayse se sentou à mesa conosco para conversar. Portanto, embora não fossemos íntimos, eu a conhecia e a admirava. Sempre educada, a livreira pediu licença para interromper a nossa conversa. Ela precisava desabafar e ouvir uma opinião; os seus olhos estavam molhados.

Sem demora a acomodamos ao nosso lado e uma terceira caneca com café foi colocada sobre o balcão. A livreira bebeu um gole de café e iniciou a narrativa. Contou que a sua mãe, uma simpática anciã que, embora tivesse ultrapassado aos oitenta anos de idade, sempre teve ótima saúde, levara um tombo e começara a sentir fortes dores em uma das pernas. As suspeitas iniciais de fratura no fêmur foram descartadas pelo exame radiológico. O médico ainda não conseguira diagnosticar a causa da dor e as doses de analgésicos vinham sendo intensificadas, o que trazia alguns desconfortos colaterais. Havia suspeita de uma hérnia lombar que dependia do laudo médico de uma tomografia a ser realizada em uma cidade vizinha. Conforme o resultado, algumas possibilidades de tratamento seriam sugeridas. Os dias se passavam, a mãe se queixava das dores crescentes e como estava com uma enorme dificuldade de locomoção, Dayse abdicara de toda a sua rotina, seja pessoal, seja profissional, para se dedicar a mãe, que sempre morara sozinha e agora estava hospedada na casa da filha. Tudo se acumulava rapidamente como uma bomba que aguarda chegar ao limite para explodir. A demora pelo diagnóstico preciso, as dores crescentes da mãe, a falta de paciência originada das dores, a perda da privacidade, ainda que temporária, o abandono das suas atividades na livraria para cuidar da mãe eram os ingredientes que se misturavam com perigo. Como não se permitia explodir, sentia que implodia um pouco a cada dia.

Tudo piorava pela enorme quantidade de opiniões diferentes que ouvia dos amigos sobre a atitude que deveria tomar para melhor resolver o problema. Trocar de médico, embora fosse o profissional que acompanhava a mãe há anos; levá-la para o atendimento em uma grande cidade, onde os recursos tecnológicos são maiores; internar em um hospital até que o problema sanasse, apesar das dificuldades causadas pelo confinamento e da resistência da mãe em proceder desta maneira. Uns diziam que uma infiltração de cortisona resolveria o problema; outros garantiam que apenas uma cirurgia acabaria com as dores. Havia os que asseguravam a cura com o repouso absoluto ou, ao contrário, com sessões intensivas de fisioterapia. Todos apontavam uma situação similar como exemplo para os argumentos. Enfim, apesar das muitas opiniões oferecidas por pessoas próximas e amigos, ela queria ouvir alguém que admirasse pela sensatez. Esta pessoa era o Loureiro.

O sapateiro, sempre generoso, iniciou pelas margens da questão. Da periferia ao centro, para melhor entendimento, ele costumava conduzir o seu raciocínio: “A primeira coisa que me chama a atenção é como as rotinas são importantes em nossas vidas. Não raro, a amaldiçoamos. Levam a culpa pela chatice de nossos dias. Então, viajamos para fugir da rotina. Os gregos antigos, em sua construção filosófica, ensinavam que ‘não há liberdade na fuga’. A fuga não passa de uma prisão camuflada em liberdade. Se é fuga, por definição, nunca é a melhor escolha por não ser uma livre escolha.”

“Sem notar, passados os dias iniciais da viagem, aquele período onde tudo é novidade, mas quando nada, em verdade, é novo, começamos a sentir falta da nossa casa.” Fez uma pausa proposital para acrescentar: “A nossa rotina nos faz falta. O motivo é simples. Inserimos em nosso cotidiano as atividades que nos faz bem e nos alegram a vida.”

“Uma viagem é sempre bem-vinda pela renovação de ares e olhares que traz, pela possibilidade de conhecimento que agrega quanto às diferentes culturas. Distintas maneiras de ser e de viver de outros povos nos amplia o entendimento sobre a vida. Todavia, uma viagem é também um bom teste. Se não sentirmos saudade de casa depois de alguns dias, existe um forte sinalizador de que a viagem pode se tratar de uma fuga da prisão que se tornou a nossa casa. Uma casa tem que ser um lugar sagrado de paz e bem-estar, nunca um local de opressão e angústia.”

Interrompi para lembrar que uma casa costuma ser um fiel retrato dos seus moradores: “Se nos sentimos tristes ou entediados dentro de casa algo de angular precisa ser modificado em nossas vidas”, ponderei. Loureiro concordou e concluiu o preâmbulo dizendo para a Dayse: “Em seu caso, como você ama a vida que criou para si, se afastar compulsoriamente dela está lhe fazendo falta e tornando os dias ainda mais difíceis. Ainda que por amor à sua mãe, que nesse momento necessita dos seus cuidados, o fato de não conseguir vislumbrar uma data exata para o fim do sofrimento agrava a angústia e gera desequilíbrio.”

Bebeu um gole de café e, aos poucos, seguia rumo ao cerne do problema: “Porém, isso é apenas mais um tempero para apimentar o caldeirão. A questão central são as escolhas, este incomensurável poder de transformar a vida que temos, mas que raramente usamos com sabedoria.”

A livreira interrompeu para dizer, com modos polidos, que conhecia a teoria sobre o poder das escolhas. O artesão comentou: “Sim, muitos a conhecem; poucos a praticam de modo devido. Justamente por ser um poder de tamanha força, que define tantos aspectos fundamentais da vida de uma pessoa, com as dores e as delícias de suas consequências, a maioria das pessoas se sente mais à vontade e convicta em opinar sobre a vida dos outros do que em decidir sobre as próprias questões. A razão disto são os diversos efeitos diretos que invariavelmente nos causam as decisões que nos atingem. Por isto costumamos ser tão seguros quanto as decisões sobre a vida alheia; em contrapartida temos muitas dúvidas e dificuldades quanto às escolhas que dizem respeito à nossa própria vida.”

“Escolher pelo outro sempre terá uma aparência mais fácil por não recair sobre as nossas costas o eventual peso de uma decisão equivocada.” Deu de ombros e disse: “Grosso modo, a conta será paga pelo outro. Por ironia, as pessoas que mais gostam de opinar sobre as escolhas alheias são as mais inseguras quanto às decisões pertinentes às suas próprias vidas. Quando extravasam esse comportamento revelam o medo da responsabilidade perante a própria vida.”

“No entanto, há aqueles que necessitam de alguém que decidam por eles. A razão é outra, embora seja uma sombra próxima: transferência de responsabilidade. Acreditam que terão a quem culpar caso a escolha não se apresente como a mais apropriada. Ledo engano. Deixar de escolher será sempre uma péssima escolha.”

“Ambas são ilusões que nos afastam do processo evolutivo. A responsabilidade por cada escolha possui um enorme valor no entendimento de quem somos e do quanto ainda nos falta ser. Nos permite entender quem ainda não somos. Nessa jornada não existe um mestre melhor do que as escolhas. As escolhas, em suma, são a aplicabilidade da teoria na prática. Um exercício do que sabemos ou ainda não sabemos. É a régua da inteligência espiritual de um indivíduo. Importante ressaltar que escolheremos ora certo, ora errado, invariavelmente. Se não funcionou temos a oportunidade de tentar fazer diferente e melhor em uma próxima oportunidade. Nunca amaldiçoe um erro. O erro, quando bem aproveitado, será o guia que nos levará ao acerto. Assim agregamos sabedoria, sempre em forma de virtudes, ao ser. Isto modifica todo o viver.”

A livreira comentou que ainda não sabia qual decisão tomar. Todas envolviam uma margem de risco entre o certo e o errado. A cada pessoa que ouvia era abastecida com fatos e situações que modificavam a sua opinião. Ressaltou que não queria errar. A decisão errada agravaria a situação da sua mãe. Confessou que a decisão errada deixaria mais distantes tanto o seu retorno à livraria quanto a rotina que tanto gostava. Admitiu que esse sentimento a fazia se sentir egoísta.

O sapateiro franziu as sobrancelhas, gesto característico quando percebia a seriedade da situação se aprofundar, e explicou: “Temos duas sombras importantes que precisam de esclarecimento. O egoísmo e o medo.”

“O indivíduo quando atinge um determinado nível de evolução tem plena consciência quanto a importância da empatia, do valor do outro em sua vida, da compaixão. Isto o faz transmutar o egoísmo em misericórdia e amor. Na eterna e indispensável vigilância sobre si mesmo, muitas vezes perde a medida quanto à generosidade dispensada ao mundo. Até onde devo me doar ao outro? Não quero me sentir egoísta, mas qual o limite que determina o ponto em que estarei abdicando da minha vida em prol de outra pessoa? Afinal, se eu me anulo individualmente, se abandono os meus sonhos ou abdico por completo da minha vida em deferência a alguém dificilmente conseguirei me sentir bem para prosseguir.”

“Amar o outro como a si mesmo é o resumo de toda a lei espiritual. Mas como fazer o bem se não me sinto bem? Qual o valor quando uma atitude é realizada por obrigação ao invés de por amor? Como consigo amar alguém se não sinto amor por mim?”

A livreira interrompeu para dizer que aquele discurso era um equívoco, pois amava muito a sua mãe e estava disposta a fazer de tudo para que ela ficasse boa. Loureiro não se abalou: “Não tenho dúvida quanto ao amor que você nutre pela sua mãe e o bem que deseja a ela. Porém, neste momento você também tem que estar ciente do amor que precisa sentir por si mesma. Doe a ela todo o seu amor sem abrir mão de amar a si mesma.”

“Caso contrário a existência se tornará um fardo desagradável e pesado. Ao passo que, caso consiga o equilíbrio de cuidar da sua mãe sem descuidar de você mesma, os dias lhe serão leves e prósperos. Haverá a preocupação pelo tratamento da sua mãe, mas será mais facilmente suportada pela força da sua própria vida em circulação a lhe alimentar de amor e das demais virtudes.”

“Ninguém pode amar o amor que não possui. Será uma tentativa cruel e dolorosa para si mesmo. Ame o amor possível para hoje.” Piscou um olho para a livreira e acrescentou: “Amanhã tente um pouquinho mais. Seja carinhosa com o mundo sem deixar de ter carinho para consigo mesma.”

“O egoísmo e o suicídio são as duas extremidades de uma mesma sombra. Ambos esgotam com a vida do ser.”

Suicídio? Dayse disse que não entendia aquele discurso. Loureiro foi didático: “Quando falamos em suicídio logo pensamos em situações mais perceptíveis como pular da ponte, se jogar no trilho do trem ou tomar veneno. São os suicídios evidentes. Sabemos também que os vícios e as drogas são formas de suicídio; apenas mais lentas e nem sempre conscientes. São os suicídios disfarçados. Contudo, todas as formas de abandono da vida são também práticas suicidas. Quando abdicamos de fazer as coisas que amamos, deixamos de lado as rotinas que nos alimentam a alma, as atitudes que nos alegram o coração estamos em rota de suicídio. São os suicídios conduzidos pelo medo.”

“Temos que ter tempo e amor para a família, para os amigos e para o planeta sem deixar de ter tempo e amor para nós mesmos. Viver nesse equilíbrio, nem sempre fácil, porém necessário, é exercitar a virtude da harmonia, indispensável como as demais virtudes.”

“Cuide do mundo sem esquecer de cuidar de si. Cuide bem de você sem deixar de cuidar de todos.”

“Apesar da responsabilidade que devermos ter com o mundo, ninguém deve se sentir culpado por cuidar de si.”

A livreira esvaziou a xícara e pediu para o artesão tornar a completá-la com café. Em seguida admitiu que talvez fosse essa a razão de se sentir mais fraca e desanimada a cada dia. Tinha parado de alimentar a própria alma. Começava a entender aquilo que precisava ser modificado para que a vida, apesar das dificuldades, não deixasse de iluminar os seus dias. Aliás, precisava dessa luz para tomar a decisão certa quanto às diversas possibilidades de hospitais, médicos e tratamentos que existiam como opção. Loureiro ponderou: “Já pensou que, por excesso de zelo, você pode estar subtraindo da sua mãe o direito de decidir sobre a própria vida?”

“Ajudar é uma arte. Temos que ter o cuidado de não impor as nossas escolhas nos cuidados oferecidos. Lembre, cada um possuí o inalienável direito de escolher aquilo que entende melhor para si.”

Dayse olhou assustada para o sapateiro; não tinha pensado nessa hipótese. Loureiro ampliou o raciocínio: “A sua mãe está perfeitamente sã. Ela ouviu os médicos e entende o que se passa com o seu corpo. Converse com ela, pondere, argumente, mas acima de tudo, escute a vontade dela. Afinal, a ela caberá as maiores consequências da decisão. Será justo com ela e contigo.”

A livreira levantou a hipótese, bastante provável, de a mãe se declarar sem condições de tomar essa decisão. O sapateiro considerou: “Caso você concorde com essa argumentação e, mais importante, queira trazer para si essa responsabilidade, aceite-a. Mas faça sem medo. Erros e acertos são inerentes à vida e quando bem aproveitados se tornam excelentes mestres. O importante é não escolher conduzido pela opinião de ninguém, mas pelas suas próprias convicções. Somente assim o sofrimento se torna lição; caso contrário será mera aporrinhação. Não existe evolução sem responsabilidade.”

“Escute a voz da sua alma. Ela lhe dirá qual a escolha certa, mesmo que mais à frente não se mostre a mais adequada. Não importa. Aprendemos na caminhada ao ritmo das nossas escolhas. Se nos negarmos a entender cada uma das nossas escolhas em toda a sua intimidade, em seus pormenores, não haverá evolução.”

“A escolha é o mago da transmutação, o guia no Caminho e o senhor de cada destino. As escolhas são as estradas para a plenitude.”

Dayse comentou que a escolha errada era como um espectro a assombrar a existência. Loureiro resumiu o raciocínio: “Não há escolha errada quando realizada de acordo com a própria consciência. Errado é não escolher; é abrir mão de definir o próprio destino ao sabor da opinião do mundo. Então, se perde o gosto pela vida.”

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. As lágrimas escorriam pelo rosto da livreira. Eram lágrimas de encanto. Ela quebrou o silêncio para dizer que tinha ido à oficina em busca de uma opinião. Entretanto, encontrou o modo de resgatar a vida e a alegria que lhe escorriam pelos ralos da existência.

Amanhecia. Ela disse que antes de voltar para casa passaria na livraria para se inteirar dos negócios. Estava com saudade. Amava aquele universo de livros e café que havia construído. Não, não estava sendo egoísta. Só de pensar já sentia que voltaria mais bem-disposta para prosseguir nos cuidados com a mãe. Confessou que uma agradável sensação de coragem substituía o medo e lhe enchia de confiança. Pegou um caderninho de anotações que Loureiro deixava em cima do balcão e escreveu: “Quando mudamos o olhar, alteramos a consciência. Assim transformamos a vida e colorimos o mundo. De coração, obrigada!” Deu um beijo estalado na bochecha do amigo, se despediu de mim e foi. A mulher que saiu da oficina era muito diferente daquela que ali entrara.

 

 

8 comments

Zilda oliveira novembro 25, 2018 at 1:24 pm

“Quando mudamos o olhar,alteramos a consciência.Assim transformamos a vida é coloridos o mundo.”Grata!

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Joane Faustino Araújo novembro 25, 2018 at 2:34 pm

Gratidão 🌹♥️

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Hugo lima novembro 26, 2018 at 5:44 am

Fantástico como sempre

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Claudia Pires dezembro 5, 2018 at 11:02 am

Maravilhoso. …. grata!

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Adélia Maria Milani janeiro 7, 2019 at 9:45 pm

Gratidão! ♡ ♡ ☆

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Osvaldo fevereiro 12, 2019 at 2:45 pm

Realmente maravilhoso!! Gratidão!!

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Márcia Campos janeiro 7, 2022 at 6:12 am

Grata Sempre
Aprimorar o olhar é uma decision

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Michelle janeiro 26, 2023 at 12:28 pm

Emocionada…Gratidão!

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