TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Décimo limiar – O tesouro do Caminho)

POEMA DEZ – O TESOURO OCULTO DO CAMINHO

O silêncio era absoluto, a ponto de parecer uma sinfonia. Os detalhes do prédio, principalmente as linhas curvas dos telhados, não deixavam dúvida de se tratar de um templo oriental. Caminhei pelo amplo terraço até uma murada onde, ao longe, era possível avistar um lindo monte rodeado de bosques que se estendiam àquele mosteiro. Abaixo, vários monges, sem dizer palavra, se postavam em filas. O mais velho deles, com os cabelos brancos, estava de frente para os demais. Apesar da idade avançada, tinha um corpo magro, ereto e ágil. Ao primeiro toque do enorme tambor, apoiado sobre um robusto suporte de madeira, todos entraram em posição de prontidão. Em seguida, veio uma sucessão compassada de sons. Como em um belo espetáculo de balé, os monges se moviam ao ritmo do rufar do tambor. Muito bem sincronizados, os movimentos simulavam uma luta contra um adversário imaginário. Observei-os por um tempo que não saberia precisar. Ao final, após o último som, juntando as palmas das mãos e curvando o dorso em reverência, cumprimentaram o monge de cabelos brancos. Todos se retiraram, a exceção do mestre, que olhou para o terraço de modo a mostrar que estava ciente da minha presença. Em seguida, sem dizer palavra, fez um gesto para eu o acompanhar.

Desci as escadas o mais rápido que pude. Encontrei o monge em um jardim interno no centro do mosteiro. Ele me entregou um pequeno punhal para eu o auxiliar na retirada de algumas ervas daninhas que nasciam entre as flores. Após alguns instantes sem nada dizer, apenas cuidando das plantas, questionei a razão da prática das artes marciais em um templo dedicado à elevação do espírito. Ponderei se o estudo dos textos sagrados, a oração e a meditação não seriam suficientes. O velho monge me olhou com doçura, como se já tivesse respondido essa pergunta um sem número de vezes, e disse: “Se você realiza uma longa viagem a cavalo, mas não cuida da sua montaria, qual a chance de a jornada restar prejudicada?”. Falei que eram grandes, mas argumentei que teria acesso a outros aprendizados ao realizar o percurso a pé. O monge sorriu e esclareceu: “Sem dúvida, o principal deles é que teria se cansado menos, além de ter percorrido distâncias maiores, caso tivesse tido os cuidados básicos. Haveria mais tempo e não ficaria tão desgastado, podendo melhor usufruir os benefícios da viagem”.

Pediu-me de volta o punhal, porém, disse para continuar o meu trabalho. Falei que ficaria bem mais complicado e demoraria mais tempo para concluir o serviço. “É isso que acontece quando desperdiçamos as ferramentas que temos à disposição”, explicou o monge. Em seguida, acrescentou: “Quando cheguei aqui, alguns anos atrás, encontrei o mosteiro repleto de monges preguiçosos e desleixados. Ao aprenderem a usar o corpo, melhoraram o ânimo e, por consequência, o desempenho nos estudos. O comportamento do corpo causa impacto na mente e no coração. A indolência cria emoções turvas que, por sua vez, furtam a clareza do pensar. Corpo, mente e coração são essenciais ao aperfeiçoamento do espírito, sejam como montarias, sejam como ferramentas essenciais. Não inertes, mas vivas e pulsantes. Como tal, vibram e geram energia. Se faz necessário, que todas as partes estejam harmonizadas, sem incoerências, sem nada dispersar. Quando desalinhadas, as energias são desperdiçadas. De pouco adianta a mente conhecer o valor do amor se o coração pulsa em amargura. A vida ficará apequenada pelas mágoas. O corpo será envenenado. O movimento do espírito, objetivo final da existência, restará prejudicado”. Fez uma pausa para me lembrar: “O equilíbrio entre mente, coração e corpo é fundamental para impulsionar o espírito ao encontro da luz. Quando acontece, esse avanço é fonte de pura força e enorme equilíbrio”. 

Admiti que o raciocínio estava coerente, mas disse ainda não entender a razão da prática de artes marciais no mosteiro. O ancião explicou: “Não treinamos luta para enfrentar outros homens; algo grotesco por estimular o confronto desnecessário. Trata-se de um exercício físico, importante para a manutenção do corpo saudável, além de servir para lembrar da luta diária e inadiável: a batalha entre o bem e o mal que ainda existe dentro de cada um de nós. Este é o bom combate, aquele que todos os indivíduos devem travar, cada qual consigo mesmo”. Retirou uma erva daninha que sufocava uma rosa, restabelecendo as suas condições para florir, e disse: “A todo momento, à menor distração, somos instigados por pensamentos destrutivos e emoções insalubres, nos afastando da luz”. Franziu as sobrancelhas e perguntou: “Você não sofre tal assédio todos os dias?”. Abaixei os olhos em confissão. 

O ancião sussurrou como quem revela um segredo: “Se me movo por influências deletérias deixo de ser senhor de mim. Quando reduzo a amplitude das minhas escolhas, deixo de me pertencer. Se não me possuo, alguém me domina. Todo aquele que não é imperador de si mesmo não passa de um escravo cujo feitor nem mesmo ele é capaz de reconhecer”.

Franziu as sobrancelhas e alertou: “A insalubridade das ideias e das emoções limitam as escolhas. Deixo de entender mil outras oportunidades, sempre possíveis quando os pensamentos desenvolvem asas e os sentimentos se tornam ventos propulsores. As portas da vida se fecham sem nos darmos conta; rotas desaparecem quando os olhares ficam turvos. As fronteiras da realidade se encolhem; a liberdade se torna uma ficção. Torno-me prisioneiro das minhas incompreensões”. Deu de ombros e disse: “As sombras montam as mil faces ignorância, um carcereiro comum e pouco perceptível”. 

Argumentei que eu não sabia como ficar muito tempo sem me envolver com ideias e emoções nocivas. O ancião esclareceu: “Temos por vício usar o mal para combater o mal. Isto os brutos e os tolos fazem quando disputam domínios e medem poderes. Sem se dar conta, revelam os seus medos e ampliam a escuridão ao redor. Combater as sombras usando as virtudes como armas é tarefa destinada aos verdadeiramente fortes; aqueles que no silêncio das escolhas guerreiam em favor da luz. Um exercício fundamental para desmanchar o mal, seja por inanição, seja por desuso”.

Suspirou como se quisesse chamar a minha atenção e lembrou: “Quando solto, o mal ocupará a sua mente e o seu coração, territórios sagrados do ser. Então, os dias vividos não serão mais seus. Você perderá a si mesmo antes mesmo de entender a verdadeira batalha. Conheça o mal em todos os seus aspectos, até para não cair em uma das suas inúmeras armadilhas. No entanto, assuma o compromisso vital de, mesmo tendo-o à disposição, jamais fazer uso de tal elemento como instrumento de conquistas. Isto define uma valiosa virtude conhecida como purezaSer forte é viver com a pureza de quem se recusa a usar o mal em nenhum aspecto da vida”.

Agradeci o olhar inusitado que ele me oferecera sobre essa importante virtude. O monge acrescentou: “A pureza atua como filtro, inicialmente na mente, ao selecionar os pensamentos que agregam valor, os separando das ideias que precisam de descarte pelo conteúdo insalubre que possuem. Depois, a pureza se expande ao coração, fazendo a perfeita distinção entre os sentimentos sutis e as emoções densas. O trigo separado da palha. Aprendemos a não nos enganar. Assim a ética se torna um trilho cujo destino é o amor. Aos poucos, será possível purificar a visão até enxergar a mais pura luz que existe”.

Perguntei sobre a importância do amor nesse processo. Ele esclareceu: “Evoluir é amar mais e melhor. Todas as virtudes, a pureza entre elas, se caracterizam como diferentes tipos de amor, com os quais iremos nos relacionar conosco e com o mundo. Não existe virtude sem amor, assim como não há evolução fora da luz. Ame a si mesmo e as pessoas até que consiga governar o império sem atuar”. Interrompi para pedir que explicasse melhor a última frase. O monge foi didático: “Nos templos iniciáticos do Oriente, utilizamos o termo império como uma analogia a complexidade de todos os elementos que coexistem, convivem e habitam em uma pessoa. Sou ego e alma, sombras e virtudes, lembranças tristes e memórias alegres, frustações e conquistas, medo e determinação, prudência e desejo, ideias e emoções, intuição e instinto; são muitos que dialogam por todo tempo em mim. Sou muitos em um. Todos somos. Pacificar o império é primordial para prosseguir na construção de si mesmo. A obra da vida”.

Olhou-me para ver se eu entendia e continuou: “À medida que os conflitos internos arrefecem, o império se pacifica; o esforço do raciocínio à prática do bem se suaviza, tamanha a harmonia criada e a força gerada. Os conflitos desaparecem. As melhores decisões se tornam simples e naturais, retroalimentando esse novo poder. As relações se suavizam. O bem é exercitado sem nenhum sacrifício, sem qualquer cansaço. Chamamos isso de governar sem atuar”. 

Comentei como era difícil avançar nesse processo. O monge esclareceu: “Abra e feche as portas do céu e caminhe nas quatro direções”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “O céu é o despertar da consciência para a luz. Yang e o Yin são os movimentos essenciais de transmutação que, por sua vez, são indispensáveis à evolução. Viva no mundo as valiosas e inusitadas situações; em seguida, as traga para serem elaboradas dentro de si mesmo. Então, conseguirá agregar equilíbrio, força e valor a si. Retorne ao mundo para repetir o movimento, tendo o cuidado de viver novas e diferentes experiências. Volte com elas para as necessárias elaborações intrínsecas. Trata-se de expansão e contração incessantes. Com esses movimentos, as sombras arrefecem dando lugar às virtudes. Assim funciona o Yin e Yang; o exercício da evolução.  O império próspera”. 

O ancião prosseguiu com a explicação: “Caminhar nas quatro direções é observar todas as situações sob todos os pontos de vista; nenhum olhar ficará de fora. Isto amplia a percepção e aprofunda a sensibilidade. O olhar limitado é avesso à verdade”. Fez uma breve pausa antes de continuar: “Significa, também, avançar nas quatro fases de cada um dos infinitos ciclos evolutivos: aprender, transmutar, compartilhar e seguir”. 

Balancei a cabeça para dizer que compreendia as suas palavras. Eu percebia que os ensinamentos obtidos naquela estranha viagem se alinhavam e se complementavam como etapas de uma grande construção. Eram como degraus de uma enorme escadaria. O monge alertou: “Trata-se de uma jornada indispensável para se conquistar a capacidade de ver no escuro, onde os olhos não se fazem necessários. O escuro é um lugar onde pouquíssimos já conseguem enxergar. Para tanto, se faz necessário já ter acendido a própria luz. A luz interna são os olhos da alma, a única maneira de enxergar a essência e o essencial. As virtudes estabelecem a intensidade da luz pessoal. Isso permite nos libertarmos do efeito manada, um movimento estéril no qual muitos seguem o fluxo em razão de saberem para onde ir. Uma cansativa maneira de não chegar a lugar nenhum. Não há duas estradas iguais; cada indivíduo deve encontrar a própria rota”. 

Comentei que a vida naquele mosteiro era rica em lições. O monge me alertou: “Não basta. Conhecimento sem ação é como pão que deixamos mofar sem que seja usado para alimentar. É preciso movimento para que o aprendizado se torne sabedoria. Uma existência sem a criação de algo que acrescente conteúdo a si e as pessoas ao seu redor é uma vida abandonada de sentido e pobre em valor. Ao acender a própria luz, você se torna dono de si e assume o poder da sua vida. A luz irradia, auxiliando a muitos que, perdidos na escuridão, estão desorientados. Isto significa produzir e fazer crescer”. 

O monge franziu as sobrancelhas e esclareceu: “As virtudes são os necessários pilares para a construção da obra de si mesmo. Ao produzir e fazer crescer, você terá de seguir adiante, pois a jornada não tem fim. Diferentes curvas, inusitados aprendizados”. Fez uma pausa para alertar: “Há lugares onde não existem pontes. Não se atravessa os grandes precipícios sem asas. O excesso de peso é contrário ao voo”.  Esperou para que eu concatenasse a ideia antes de prosseguir: “Voar exige leveza, a virtude de priorizar os valores da alma em detrimento aos interesses do ego, quando ainda imaturo, desejoso das coisas do mundo, as quais não pode carregar às Terras Altas. Será preciso abdicar de toda desnecessidade contida na bagagem. Para tanto, terá de aprender a ter sem possuir. Ou seja, entender que os únicos bens que são verdadeiramente seus são as conquistas que se agregam ao ser, pelos atributos evolutivos acrescentados no viver. Todo resto, embora seja seu, você não possui”. 

Ao perceber o encanto em meus olhos, acrescentou: “O segredo do voo está conectado ao enigma da liberdade. Ninguém é livre ao possuir servos ou devedores. O carcereiro é um prisioneiro sentado do lado de fora da cela, que não pode partir para não perder o nefasto domínio sobre o prisioneiro. Todos já vivemos situações parecidas. As armadilhas são muitas. Não podemos esquecer que ajudar não concede o poder de escravizar; oferecer as mãos em ajuda não permite a ninguém o direito de acorrentar as escolhas do necessitado. Cárceres econômicos, políticos, existenciais, intelectuais e emocionais são mais deploráveis e densos do que aqueles que possuem grades de ferro. Orientar sem dominarsão características típicas dos espíritos livres. Somente estes estão aptos a voar”.

Argumentei que aquelas ideias eram desconcertantes para muita gente. O ancião me lembrou: “Cada um é responsável pela própria trajetória, assim como pelo conteúdo da sua bagagem. No mais, cuide de trabalhar com alegria. O trabalho é um bem precioso diante das inevitáveis intempéries da vida. Use os seus dons e faça valer os seus sonhos. Eles pertencem ao seu espírito e o habilitam à vida de maneira singular. Lembre que a verdade pessoal precisa estar harmonizada à sua existência no mundo. A incoerência entre essas realidades implode em tristeza ou explode em violência. A alegria é a virtude de encontrar o lado bom de todas as coisas. Creia, elas existem; são parte da arte que nos cabe na mestria dos dias”.

O monge apontou para o próprio peito e perguntou: “Entende onde se localiza a arena na qual travamos o combate essencial?”. Balancei a cabeça para dizer que compreendia. O monge acrescentou: “Precisamos nos lembrar disso todos os dias”. Em seguida, concluiu: “O centro de poderque, desde tempos imemoriais, por se localizar nas conquistas mundanas, ficou equivocadamente estacionado fora do alcance da maioria dos indivíduos, motivo de tantos conflitos e frustrações, precisa ser deslocado para um novo centro de poder, situado no âmago das pessoas. A alma e as virtudes que a iluminam. Por serem fontes de força e o equilíbrio, são capazes de descontruir sofrimentos e desmanchar medos. Eis a mistério da virtude. Toda a riqueza da vida, a qual fomos condicionados a procurar no mundo, em verdade, nos aguarda dentro de casa”. 

Fiquei sem dizer palavra. Esforçava-me para alocar aqueles ensinamentos dentro de mim. Eu reconhecia a sua imprescindibilidade. O ancião se dirigiu até o grande tambor e o fez rufar em ritmos compassados. A música me envolveu com tal encantamento que, quando olhei para o portão do mosteiro, uma colorida mandala me convidava para seguir a viagem. Agradeci ao monge com um olhar sincero. E caminhei.

Poema Dez

Todas as partes harmonizadas,

sem incoerências, sem nada as dispersar.

Ser forte é viver com a pureza 

De quem se recusa a usar o mal.

Purificar a visão até enxergar a pura luz.

 Ame a si mesmo e as pessoas

Até que consiga governar o império sem atuar.

 Abra e feche as portas do céu

e caminhe nas quatro direções.

Conquiste a capacidade de ver no escuro,

onde os olhos não se fazem necessários.

 Produzir e fazer crescer,

Ter sem possuir, 

Orientar sem dominar,

Trabalhar com alegria.

.

Eis o mistério da Virtude.

4 comments

Terumi dezembro 21, 2021 at 10:30 pm

Gratidão 🙏

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Maria Rutiney Martins dezembro 26, 2021 at 4:05 pm

Gostaria de adquirir outros livros do,YOSKHAZ

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Yoskhaz janeiro 1, 2022 at 3:41 pm

Maria, basta acessar o site da editora http://www.significado.xyz
Obrigado pelo carinho e interesse!!!

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Fernando dezembro 27, 2021 at 9:11 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas , sem fim…

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