MANUSCRITOS II

De volta ao topo do mundo

Falei ao Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, que passaria o meu aniversário no mosteiro de Takshang, próximo à cidade de Paro, no Butão. Queria o silêncio e a energia desse mosteiro budista, de difícil acesso, encravado no Himalaia, para meditar e refletir sobre o momento em que me encontrava, mais precisamente a respeito da empresa em que eu era sócio. Tínhamos recebido uma proposta de outra firma, bem maior e de âmbito internacional, para uma fusão que geraria, além de um grande ganho financeiro e uma mudança angular em meu estilo de vida. Desde a ter que usar terno no dia a dia até morar em outra cidade, fora as incontáveis reuniões e rotinas típicas das grandes empresas. Os meus sócios, éramos três, estavam animadíssimos com a possibilidade que se apresentava. O meu coração não me deixava compartilhar de tamanho entusiasmo. A nossa empresa navegava com tranquilidade, não éramos ricos, mas tínhamos uma vida confortável e, acima de tudo, havia tempo para eu me dedicar a outras atividades que me eram valiosas, como a Ordem, os estudos, a escrita, os encontros com os amigos, a convivência familiar, entre outros bens intangíveis. No entanto, não é toda hora que surge uma oportunidade para subir de patamar financeiro e todos me pressionavam para que eu decidisse logo. A mudança no jeito de viver era o que agoniava. A dúvida me corroía.

O Velho me aconselhou: “Gosto das transformações, pois são bons indícios de evolução. No entanto, nem toda fruta é doce assim como nem toda regra é absoluta. Quando sair do Butão, pegue a estrada que desce o Himalaia pelo lado chinês. Você encontrará uma agradável vila. Lá, procure por Li Tzu, o mestre taoista. Se deixe encantar por tudo que acontecer”. Agradeci e parti sem entender exatamente ao que o monge se referia.

Quando estava de saída de Paro, pensei em desistir de procurar o amigo do Velho, porém acabei me deixando levar pelo fluxo dos acontecimentos e segui ao encontro de Li Tzu. A primeira boa surpresa foi a pequena vila chinesa. Bonita e agradável, trazia uma estranha sensação de conforto, apesar da extrema simplicidade. As pessoas eram gentis e pareciam não ter pressa. Além da enorme quantidade de flores por todo o canto, notei muitos ocidentais pelas ruas e, para o meu espanto, tive dificuldade em conseguir uma vaga na única hospedaria da cidade, sendo salvo, a última hora, por um dinamarquês que teve de retornar ao seu país em razão de um imprevisto. Todos aguardavam ser atendidos pelo mestre taoista. Soube, então, que Li Tzu era formado em botânica por uma prestigiosa universidade inglesa e exercia a tradicional medicina chinesa com tratamentos a base de acupuntura, chá de ervas e o Tao, a milenar sabedoria oriental escrita por Lao Zi no Tao Te Ching, o Livro do Caminho e da Virtude. Ele usava agulhas, ervas e as palavras para a cura do corpo e da alma.

A casa de Li Tzu era um dos lugares mais encantadores que conheci. Plantas por todos os lados, o que era esperado, toda a construção em madeira, um formoso lago na frente e o um belo jardim de bonsais no quintal dos fundos. Um elegante gato se comportava como o dono do lugar. A música que brotava por todos os lados era o som do silêncio harmonioso. O botânico se movimentava com extrema serenidade, a sua voz era baixa, seus gestos revelavam tranquilidade. Quando me apresentei, ele me ofereceu um sorriso sincero e disse que me esperava. Acrescentou que possuía enorme admiração pelo Velho, a quem conhecera há muitos anos, quando jovens, na universidade, embora frequentassem diferentes cursos. “A lei da afinidade é inexorável”, falou na certeza de ter me dado uma explicação óbvia. Calculei que deveriam ter mais ou menos a mesma idade. Em seguida ele me ofereceu um chá e sentamos em confortáveis poltronas. Expliquei a razão pela qual o tinha procurado. Ele apenas balançou a cabeça como quem diz ter entendido. Falei que admirava muito a tranquilidade que reinava naquele lugar. Li Tzu me explicou: “Toda casa reflete a alma do dono. Fiz as pazes com o tempo e com as minhas emoções para que a felicidade encontrasse a morada definitiva”. Em seguida me deu um pequeno papel com o capitulo quarenta e quatro do Tao:

“A fama ou a pessoa, qual a mais importante,

a pessoa ou o dinheiro, qual mais precioso?

Ganhar ou perder, qual é pior?

Quem muito se apega, muito vai sofrer.

Quem muito poupa, muito mais perder,

quem se satisfaz com pouco não tem que recear,

quem sabe quando parar não corre perigos.

Assim perfumamos a vida”.

E pediu: “Leia atentamente por muitas vezes e retorne amanhã”. Agradeci e fiz conforme a orientação. Nos dias que se seguiram, ora ele me oferecia um chá, noutros fazia uma sessão de acupuntura, sempre com o pedido para que continuasse a ler e voltasse no dia seguinte. Isto aconteceu por uma semana. Em geral, eu teria perdido a paciência e, com certeza, partiria lamentando o tempo perdido. Mas não daquela vez. Lembrei das palavras do Velho e fui me deixando contagiar pela agradável energia que me envolvia e toda aquela serenidade se mostrou possível para mim sem esforço maior. Embora, naquela altura, já conhecesse o texto de cor, me neguei a ter pressa ao dominar conscientemente a ansiedade. Por que perderia a paciência se a calma era o que eu mais apreciava naquele lugar? Tive a estranha percepção de que, ao contrário do que imaginava, o tempo também pode esperar. A consequência imediata foi a clareza do raciocínio, que lentamente fortalecia as escolhas que me aguardavam. Aos poucos, eu abandonava os tambores do mundo para ouvir a doce flauta do coração. Passei a me divertir tentando adivinhar se no dia seguinte eu seria recebido por ervas ou agulhas. O sétimo dia foi de palavras.

Li Tzu se sentou ao meu lado e pediu para eu interpretar o poema. Falei que percebia ritmo e sonoridade nos versos, mas os achava confusos, pois falavam de várias coisas ao mesmo tempo sem muito esclarecer. O taoista disse com a voz suave: “Esse capítulo fala de um assunto crucial: uma importante escolha que define o destino próximo”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Fala do sentido que o indivíduo dará a própria vida. Uma bifurcação onde por um lado se apresenta a fortuna e a fama, que tanto lustram o ego e se apresentam como diploma de sucesso e vitória; por outro, a evolução pessoal em busca da plenitude e da integralidade do ser, tendo a paz como consequência natural da evolução”. Interrompi para questionar se dinheiro e espiritualidade se confrontam ou se anulam. Li Tzu me olhou como a uma criança e esclareceu: “Claro que não. É possível fazer muitas coisas boas com o dinheiro. É um instrumento maravilhoso que pode animar sorrisos em toda a gente. Porém, também pode alimentar as sombras da humanidade. É como uma faca que pode auxiliar ao cozinheiro a preparar um gostoso guisado ou ser usada por um assassino para espalhar a dor”. Franziu as sobrancelhas e disse com seriedade didática: “Veja a internet e as suas redes sociais, apenas para ser mais atual, podem aproximar as pessoas e criar pontes ou semear a discórdia e construir muros. Facas, internet, dinheiro ou tudo mais são apenas ferramentas. Cada um define a obra que construirá com elas. Podemos enfeitar uma bela praça onde todos serão convidados para um alegre baile ou erguer um castelo fortificado para abrigar o ego inseguro”. Calou por instantes e disse: “Cada qual decide a função e o poder que o dinheiro terá em sua vida. Isto desenha o próprio destino e revela o seu atual estágio de consciência e capacidade amorosa”.

“Em seguida o poema fala em ganhar ou perder. Estamos condicionados a entender que ganhar nos torna vitoriosos, certo? Mas nos referimos as riquezas do ego ou da alma? Vale a pena ganhar dinheiro e desperdiçar a oportunidade de consolidar as virtudes no espírito? De que vale ganhar uma luxuosa prisão sem grades e perder a simplicidade das asas para voos inimagináveis? É preciso entender o limite e o sentido da força do dinheiro dentro de nós a cada escolha que fazemos. A todo instante ele pode oferecer um banquete para o ego ou uma festa para alma. Cada qual escolhe onde comparecer”.

“Em seguida o escritor esclarece sobre a importância do desapego”. Fechou os olhos como se procurasse as melhores palavras e disse: “O indivíduo que ainda tem o ego desalinhado à alma traz uma fragilidade que precisa compensar com a admiração de quem o cerca. O dinheiro, sem falar em um sem número de ideias e conceitos, em razão de condicionamentos culturais, acaba por ser o objetivo raso a ser alcançado na ilusão da felicidade. Acabamos por criar uma infinidade de dependências, que se iniciam por materiais, mas por não se sustentarem, desaguam em crises emocionais. Qualquer dependência, seja material ou emocional, é uma ilusão e absolutamente desnecessária. Tais apegos formam as raízes de todas as dores. Então, mutilamos o espírito para manter intacto o patrimônio; permitimos que a paz morra de inanição para engordar a conta bancária; agigantamos o egoísmo para que o outro ceda a nossa vontade; atropelamos a tudo para que a nossa razão prevaleça. Quantas vezes, por ter medo do amanhã, nos desviamos do caminho para pegar mais e mais frutos, dos quais comeremos alguns, muitos apodrecerão, mas que manteremos no cesto, tornando-o tão pesado que nos impedirá de seguir adiante”?

Em seguida concluiu: “Tudo aquilo que temos ou somos, mas não conseguimos compartilhar, não se traduz em luz”.

“Então, o texto milenar oferece valiosas indicações ao andarilho ao dizer que ‘quem se satisfaz com pouco não tem o que recear’. Bebeu um gole de chá e explicou: “Claro que ninguém deve se maltratar, impor privações ao corpo, virar um asceta, viver como um mendigo ou abrir mão do mel da vida. Isto é uma afronta ao espírito, a essência de cada um e a todo o universo, da qual fazemos parte, que se expande a cada segundo e trabalha em prol da evolução e do bem-estar. Apenas é preciso harmonia e equilíbrio, pois são instrumentos poderosos da luz. Conhecer as fronteiras de si mesmo significa entender a virtude da leveza: de quanto menos você precisar maior será a sua liberdade”.

“Toda dependência, por ser uma criação mental do ego, endurece o cárcere que cada qual se aprisiona. Todo desejo é um carcereiro que oprime”. Me olhou nos olhos e quis saber: “Entende um pouco mais das lutas que deve travar? Percebe onde está o seu campo de batalha? Para ser grande aos olhos do mundo não podemos nem precisamos perder a grandeza que floresce no coração”.

Olhou-me de jeito profundo antes de falar: “Somente os pequenos querem conquistar o mundo. Os grandes sabem que a fortuna está na conquista de si mesmo”. Em seguida, finalizou: “Assim perfumamos a vida”.

Quando desci a montanha parecia que meus pés nem tocavam no chão. Nunca me pareceu tão simples uma decisão.

 


yoskhaz

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5 comments

Eliane novembro 26, 2016 at 9:29 pm

Somente os pequenos querem conquistar o mundo. Os grandes sabem que a fortuna está na conquista de si mesmo”. Em seguida, finalizou: “Assim perfumamos a vida”…Gratidao Yoskhaz! Era tudo que eu precisava hj!!!

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Rafael novembro 27, 2016 at 7:57 pm

Sabedoria em palavras!
Te amo

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Rodrigo novembro 30, 2016 at 3:42 am

Mais um ótimo texto, muito obrigado pelas palavras, há muito sabedoria contida nos seus textos.

Grato!

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Christina Mariz de Lyra Caravello novembro 30, 2016 at 3:28 pm

” Interrompi para questionar se dinheiro e espiritualidade se confrontam ou se anulam. Li Tzu me olhou como a uma criança e esclareceu: “Claro que não. É possível fazer muitas coisas boas com o dinheiro. É um instrumento maravilhoso que pode animar sorrisos em toda a gente. Porém, também pode alimentar as sombras da humanidade. É como uma faca que pode auxiliar ao cozinheiro a preparar um gostoso guisado ou ser usada por um assassino para espalhar a dor”.

Ou seja, pode ser uma benção ou um castigo.

Creio que essa situação não pode ser interpretada de forma radical, principalmente se envolve mais de uma pessoa. Os sócios devem analisar todas as possibilidades, todos os ganhos, todas as perdas, colocar na balança e decidir, de comum acordo.

Principalmente, se a espiritualidade de cada um, seu desejo de evolução, seu lugar no Caminho, é muito diferente de um para outro.

O dinheiro, dependendo do que se pretende fazer com ele, é um instrumento maravilhoso que pode proporcionar o bem estar de nosso próximo menos favorecido em tantos projetos.

Mas, em primeiro lugar, temos que analisar quais mudanças poderão ocorrer com nosso ego, com nossa personalidade. Se iremos ser donos ou escravos dele.

“Os grandes sabem que a fortuna está na conquista de si mesmo”

E só quando alcançamos essa vitória, podemos projetar esse benefício ao nosso próximo.

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Jailson dezembro 1, 2016 at 7:55 pm

“PARA SER GRANDE AOS OLHOS DO MUNDO NÃO PODEMOS NEM PRECISAMOS PERDER A GRANDEZA QUE FLORESCE NO CORAÇÃO”
A grandeza das palavras que se transformam em essência para a evolução.
Obrigado!

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