TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Sexagésimo terceiro limiar – O sabor da vitória)

Jerusalém, a cidade sagrada. Eu estava dentro da fortaleza recém-recuperada pelos Cruzados. Os comentários eram de que o comandante daquelas tropas, conhecido por sua coragem, firmeza de propósitos e fervor religioso teria recusado o trono oferecido pelo Papa. Negou-se a usar uma coroa de ouro onde um homem, a quem reconhecia como o mestre dos mestres, usara uma coroa de espinhos. Não cabia outro rei naquela cidade na opinião desse guerreiro. Não tive dúvida. Fui à sua procura. Circulei pelos inúmeros cômodos do palácio. Por onde passava, as pessoas estavam enebriadas pelo vinho e pela vitória. Ninguém se importou comigo. Em uma sala desprovida de qualquer luxo, com apenas algumas poltronas e uma mesa no centro, um homem alto, de compleição robusta, com cabelos e barbas aloirados, descansava sozinho. A espada repousava sobre a mesa. Parei na porta. O guerreiro observava a arma, fora da bainha, como se avaliasse a trajetória de ambos até chegarem ali. Ao me ver, fez um gesto com a cabeça dizendo para eu entrar. Com a mão indicou uma das poltronas. Após me acomodar, comentei sobre a sua atitude de recusar algo que a grande maioria das pessoas entregaria a alma para possuir. Ele me olhou por um demorado instante, como se a resposta não fosse um júbilo, mas uma confissão dolorosa: “Lutei uma guerra para manter vivo os ensinamentos sagrados do maior de todos os mestres. Ao chegar aqui me dei conta que fiz exatamente o contrário. Conquistei pela espada algo que apenas o coração pode alcançar”.

Fez uma breve pausa antes continuar: “Não há mérito em recusar o trono. Vergonhoso seria aceitar a honraria”. Franziu as sobrancelhas e escalou tons de seriedade: “Preciso refazer a minha rota”. Perguntei o que fazer quando nos deparamos com a verdade que exige transformação, não no mundo, mas dentro da gente. O guerreiro me respondeu: “Agir sem nada fazer é o passo primordial”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “Trata-se dos movimentos internos de descobertas, encontros e conquistas em um lugar invisível aos olhos do mundo, porém, angular para modificar a realidade daquele capaz de realizar essa valiosa jornada ao interior de si mesmo. Os movimentos externos só adquirem significado se impulsionados pelas transformações interiores. Do contrário, serão apenas ações repetitivas e desprovidas de valor e sentido evolutivo. É mais do mesmo. Mudar o mundo é diferente de modificar a realidade. O mundo se altera no compasso da História; a realidade, por se revelar através do olhar de cada indivíduo, se expande ou se contrai na exata medida da verdade alcançada”. Eu tinha aprendido que a verdade é a última fronteira já desbravada pela consciência que, por sua vez, se traduz na percepção e sensibilidade que cada um tem por si próprio e a vida ao redor. Interrompi para dizer que as pessoas vivem situações diferentes, sendo compreensível que tenham percepções distintas sobre tudo e todos. O guerreiro ponderou: “Note que duas pessoas, personagens de uma mesma cena, podem ter reações diferentes para um determinado acontecimento. O fato é apenas um, mas as interpretações são duas. Logo, não é o fato que expressa a realidade, mas a consciência que faz a leitura da situação”. Ele aprofundou o raciocínio: “Há quem reaja se valendo do bem diante do mal; existe quem faça o mal mesmo tendo o bem à disposição. Quem é o tolo e quem é o sábio?”. Sem esperar pela resposta, prosseguiu: “Se prestar atenção, entenderá que todas as situações são neutras. A princípio, nem boas nem ruins”. Ele sorriu ao notar o meu espanto diante daquela afirmação e explicou: “Há quem, apesar de ter dinheiro e saúde, escreva uma história triste e miserável; existem aqueles que, embora envolvidos em pobreza e enfermidades, construam vidas memoráveis”. Em seguida, concluiu: “Como você irá elaborar cada experiência vivida definirá as derrotas e as vitórias. As mais importantes têm caráter intrínseco. Não se trata do que acontece conosco; o jeito como reagimos aos acontecimentos será o fator determinante às estagnações ou avanços no Caminho”.

Indaguei o que faria após a vitória em Jerusalém. O guerreiro me olhou como se eu me recusasse entender o óbvio e questionou: “Vitória?”. Sim, afirmei. A cidade finalmente tinha sido reaberta aos peregrinos. Ele abriu os braços e ponderou: “Nem toda vitória significa avanço, nem toda derrota se traduz em perda. Faz-se necessário aprender a saborear o que não tem sabor”. Pedi para que explicasse melhor. Era um guerreiro rude nas batalhas, mas gentil no trato pessoal: “Refiro-me à ruptura dos nocivos vícios comportamentais. Acostumarmo-nos a quem somos é um grande perigo. Evoluir é ir além de quem conhecemos em nós, é experimentar e começar a gostar de hábitos que até então não tinham nenhum sabor. Eram insossos. É começar a se encantar com o bem; tirar o mal do alforje, não para usar, mas para jogar fora para sempre. É trocar o olho por olho pela outra face, é compreender que a vitória não consiste em derrotar os inimigos, mas em vencer a si mesmo. É parar de repetir velhas práticas e buscar por soluções inusitadas, criativas e luminosas. Criar um diferente jeito de viver, se valendo de valores e práticas jamais utilizados, nos quais a solidariedade e a compaixão sejam a tônica dos relacionamentos; a humildade e a simplicidade se tornem lentes voltadas para dentro para que nunca mais nos enganemos sobre quem somos e quem podemos nos tornar se trilharmos a estrada do tempo com ética e amor. Aquilo que o mundo entende como vitórias, não raro, são fragorosas derrotas espirituais. A recíproca se aplica. Aquele que leva a pecha de tolo, por vezes, é um sábio a caminho da luz seguindo desapercebido pela multidão perdida na escuridão das próprias incompreensões”.

Eu quis saber como se constrói uma vitória. O guerreiro me surpreendeu: “É necessário preencher sem nada ocupar”. Perguntei como aquilo era possível. Ele explicou: “É fazer sem nada exigir em troca, orientar sem dominar, ajudar sem possuir, acolher sem aprisionar, enfim, preencher o outro sem nada ocupar nele”. Fez uma pausa antes de continuar: “Mas não é só. É alegrar-se pela semeadura, ainda que não possa se fartar da colheita; priorizar a prosperidade ao invés da riqueza; aceitar a grandeza da vida quando em contradição aos valores da existência. A genuína vitória se completa na melhor ação, nunca fica na dependência do resultado. Em contrapartida, a glória no mundo nem sempre simboliza a ação correta”, e ergueu as sobrancelhas para indicar que falava de si e do momento que vivia. Depois, pontuou: “A ação depende apenas de você; o resultado quase nunca, pois, sempre haverá fatores externos que influenciarão, permitindo ou não que aconteça. Quando acreditamos que a vitória reside no resultado, a agonia ocupa um lugar dentro da gente por aguardar por algo alheio ao nosso controle. Com o passar dos dias, acaba por ocupar um espaço tão grande que pode não caber mais nada. O peso fica insuportável”.  Indaguei como poderia haver vitória sem o resultado esperado. O guerreiro arqueou os lábios em sorriso como se esperasse por aquele questionamento e esclareceu: “Em verdade, as vitórias são internas. Importa que você tem consciência daquilo que realizou. O valor do jardineiro não se perde se alguém arrancou as sementes do solo ou queimou a plantação. Quando se entende isto, a vitória se completa na melhor ação possível, livre da autorização, entendimento ou aplauso de ninguém. Isto é se preencher sem nada ocupar dentro de si”.

Perguntei quais os demais requisitos para consolidar uma vitória. O guerreiro explicou: “É ter por grande o pequeno”. Ele se adiantou em esclarecer: “Não espere que grandes momentos e solenidades o tornem uma grande pessoa. Não é assim que funciona. Nem que o mundo mude a sua vida. Jamais acontecerá. Não aguarde por aquele que irá modificar quem você é, ele não existe fora de você. Apenas você poderá alterar o próprio rumo e destino. Os dias considerados comuns, e até mesmo os modorrentos, são perfeitos às grandes transformações. O templo da evolução é a própria alma; não o procure em nenhum outro lugar enquanto não for capaz de se conciliar com o divino que o habita. Compartilhe o melhor de si com o mundo através de gestos miúdos, imperceptíveis para as multidões, mas iluminados para as almas acolhidas quando perdidas nos labirintos da existência. Todos os dias são bons para isso. O que nos torna divinos são os gestos humanos repletos em pureza e simplicidade. Ainda que ninguém note”.

Questionei como uma pessoa sem acesso às complexidades e requintes do mundo poderia se tornar vitoriosa. O guerreiro tornou a sorrir e disse: “Os mestres se escondem por trás das situações simples e banais do cotidiano, a sabedoria se revela através das relações difíceis e problemáticas. As dificuldades são desafios evolutivos e fontes de aprendizado por nos instar a sair do lugar e buscar pontos de equilíbrio e força cada vez mais aprimorados. Mas não é só. O sagrado costuma se esconder no mundano, o especial dentro do comum. Acostume-se a tentar o difícil no fácil, a encontrar o bonito no feio. É necessário quebrar os muros do olhar. As situações aparentemente banais costumam oferecer maravilhosas oportunidades de acesso a belezas improváveis. São tesouros acessíveis, porém, desprezados. Habitue-se a encontrar profundidade nas situações simples do cotidiano. Pode haver mais amor num casebre do que em um palácio; um homem do povo pode ocultar um sábio incompreendido pelos mais letrados conselheiros do rei”.

A voz modulou para um tom de maior seriedade e ponderou: “Volume não significa grandeza. Resgatar o pequeno possui mais valor do que enaltecer o grande. Admirar obras faraônicas qualquer tolo é capaz. Encantar-se com a grandeza de uma rosa, que, embora frágil, perfuma e embeleza a vida de todos, sem nada pedir em troca, demonstra o poder incomensurável contido no olhar dos sábios. As maravilhas da vida residem nos pequenos e silenciosos gestos praticados com amor, ainda que imperceptíveis aos olhos das multidões. Assim, a cada ato, ao intensificar a própria luz, conseguirá realizar muito com pouco, fará o grande no pequeno, moverá o pesado através de movimentos leves, atravessará por entre os brutos com suavidade. O quilate de um diamante não está no brilho, mas na pureza. A magnitude de um vulcão não está no tamanho da montanha, mas na intensidade da sua força interna”.

Pela janela olhou por instantes o povo eufórico nas ruas e comentou: “As multidões associam as vitórias à dominação e ao acúmulo de riquezas. No entanto, a vitória reside na evolução da alma, na batalha do bem contra mal que é travada dentro de si. Nada mais. De todas as conquistas que cabem na bagagem, nenhuma delas é sólida nem pode conter resquícios do sofrimento de ninguém. Tudo se traduz em luz”. Lembrei a ele que temos necessidades físicas de sobrevivência. Teto, roupas, alimentação, entre outros itens indispensáveis à existência. Para muitos são duras batalhas diárias. O guerreiro disse sim com a cabeça e ponderou: “Sem dúvida. A luta pela sobrevivência, além de necessária, é importante no processo de transcendência. Ensina muito sobre dignidade, dedicação e compromisso. Um processo que acrescenta muito à bagagem. O perigo está em acreditar que a conquista da fortuna determina uma vitória. Não há garantia, salvo se através dela se consiga gerar situações maravilhosas, capaz de espargir luz indistintamente. Para o bem-estar, tenha o suficiente como bastante. Nada faltará no aspecto material para as vitórias essenciais à vida”.  

Considerei que ele, por tudo que viveu e enfrentou, deveria ter enfrentado muitas oposições e adversidades. O guerreiro me desconcertou: “Um soldado não é mais forte que um monge. Mais agressivo e violento? Sem dúvida. Brutalidade significa força? De jeito nenhum. Não há vitória maior do que dominar os próprios instintos, desejos e paixões. Antes disso, estaremos incapazes de discernir o bem do mal que nos habita”. Fechou os olhos, passou a mão na barba, como quem revisita uma lembrança, e revelou: “Só entendi isso quando atravessei os portões de Jerusalém com um exército de milhares de homens sob o meu comando. Se a alegria de uns significar o sofrimento de outros, aqueles que comemoram são os derrotados. As adversidades não são convites ao conflito, mas à evolução, por nos oferecer a oportunidade abrir portas que, ao contrário do que muitos acreditam, são inacessíveis à força bruta. Refiro-me a uma força suave, mansa e poderosa, as virtudes. Aliada à verdade, na confluência do amor com a sabedoria, a virtude desarma a animosidade. A paciência desmonta a irritação, a humildade desmancha a soberba, a simplicidade desconstrói a vaidade, a delicadeza derruba a intolerância, a compaixão se desvia da ofensa, a pureza evita o mal e a firmeza o estanca. Há mil outras possibilidades. A virtude é o avesso da espada. Enquanto a espada obriga e sangra, a virtude cicatriza e conduz”.

Levantou-se, colocou a água de uma jarra em duas taças estanho, me ofereceu uma, se sentou, bebeu um gole e disse: “Por todo canto, as grandes conquistas são muito desejadas. Contudo, conquistas e desejos precisam de entendimento mais apurado. A princípio, nada há de errado com uma nem com o outro. A questão é compreender a profundidade daquilo que se quer e busca. Observe o que uma pessoa deseja e como age para o conquistar. Não falo do discurso fácil, mas das ações que revelam as intenções. Entenderá o quanto de luz ou sombra comanda aquela consciência. Note se a prioridade são os pedestais da glória para se colocar em evidência ou se são prazeres silenciosos pelos movimentos de avanço interno, nos quais o bem conquista um pouco mais do território que até então estava sob o domínio do mal”. Virou-se para mim e perguntou: “Qual dessas vitórias é maior, a que alavanca a fama, arranca aplausos da multidão, concede os privilégios da fortuna, permite as regalias do poder e autoridade para governar o povo ou simplesmente aquela capaz de iluminar a alma?”. Sem esperar pela resposta, comentou: “O sábio nunca busca coisas grandes. Ele não tem como prioridade as conquistas que em geral alimentam os sonhos das multidões. Entre derrotar o Império Otomano ou superar a si mesmo para se tornar uma pessoa diferente e melhor dia após dia, sem dúvida o sábio priorizará a batalha da evolução pessoal. Isto não significa que os outros não tenham importância, tampouco que ele renuncia às dificuldades. Uma guerra entre nações demora dias, talvez alguns anos. O esforço de aprimoramento espiritual é trabalho para milênios. No mais, qualquer transformação coletiva somente ocorre por intermédio da transformação do indivíduo. De dentro para fora. Qualquer mudança por imposição da espada é obediência e medo, jamais uma escolha madura e eficaz. No processo de lapidação pessoal, as relações adquirem suavidade por se tornarem menos conflituosas na medida das descobertas, encontros e conquistas internas. Servem ainda para desmontar as cargas dos ressentimentos que tanto pesam e atrapalham a viagem. Adquire-se leveza. No mais, um indivíduo forte e equilibrado é sereno, sensato e pacificador. Esse pouco é muito. A origem das guerras reside nas incompreensões e medos que, por sua vez, geram sofrimentos, emoções densas e desejos desvairados como cobiça e dominação. Assim, ainda que muitos não compreendam, o sábio realiza grandes obras, embora o povo acredite que ele nada faça. Insistem em associar obras à prédios de pedras. Em verdade, obras são construções de luz. Imateriais, porém, transformadoras. Como o amor compromissado com a paz e a liberdade”.

Perguntei o que ele faria a partir daquele dia. Ele se levantou e disse: “Vou conhecer vitórias de outros sabores”. Indaguei quais. O guerreiro apenas sorriu em resposta. Em seguida, quis saber se eu gostaria de cavalgar um pouco. Aceitei o convite. Ao sair, notei que espada ficara sobre a mesa. Como se adivinhasse o meu pensamento, ele se limitou a dizer: “Não mais”. Descemos até a estrebaria. Dois cavalos foram selados. Atravessamos os portões de Jerusalém e seguimos em ritmo lento por um longo tempo sem dizer palavra. Em determinado momento, ele instou os cavalos a galopar cada vez mais rápido até nos depararmos com uma bifurcação. Sem diminuir a velocidade, o guerreiro sinalizou para que eu fosse por um lado e seguiu na outra direção. Uma mandala em forma de cruz me aguardava.

Poema Sessenta e Três

Agir sem nada fazer,

Saborear o que não tem sabor,

Preencher sem nada ocupar,

Ter por grande o pequeno,

Tentar o difícil no fácil,

Fazer o grande no pequeno.

O suficiente como bastante.

A virtude desarma a animosidade;

Debaixo do céu,

As grandes conquistas são muito desejadas.

O sábio nunca busca coisas grandes,

Tampouco renuncia à dificuldade.

Assim, ele realiza as grandes obras.

1 comment

SCHWEITZER março 17, 2024 at 3:35 pm

Do todos as passagens, essa é a que eu gostei mais.

Expetacular.

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