TAO TE CHING

TAO TE CHING (Septuagésimo limiar – O centro do poder)

Idade Média, Espanha. Eu estava diante de um convento muito pobre se comparado aos outros da época. As monjas se vestiam com túnicas de algodão rústico e calçavam sandálias que não ofereciam proteção ao frio. Uma retirava água do poço, outra carregava uma cesta com hortaliças. Duas varriam o pátio. Olharam-me como se me aguardassem. As cumprimentei com um sorriso; elas sorriram de volta. Uma delas apontou com os olhos para onde eu deveria seguir. Passei pelo salão e subi uma escada estreita. Num cômodo circular com várias janelas, uma monja com mais idade, notadamente a responsável pelo convento, escrevia. De um lado, um maço de papel em branco; de outro, folhas repletas de palavras. De modo gentil, indicou uma cadeira para eu me sentar. Após me acomodar, indaguei sobre o conteúdo daquelas anotações. Sem se surpreender com a pergunta ou se aborrecer com a curiosidade, ela disse: “Escrevo um livro no qual um castelo, com vários aposentos, serve como metáfora ao entendimento dos muitos aspectos que compõem o interior de cada pessoa. Somos multifacetados. Somos mil e somos um. Partes de quem sou são distribuídas por entre os vários aposentos do térreo, outras habitam os diversos cômodos do andar de cima. Há um portão de entrada com um vigia e uma sala central onde as decisões são tomadas. Entender quem são os muitos que me compõem, e como fazer para que interajam harmoniosamente entre si, garantirá o bom funcionamento do castelo, fundamental à plenitude dos dias”. Comentei que a explicação me parecia complexa. A mulher esclareceu: “As minhas palavras são simples, mas poucos as compreendem. Quase ninguém as põem em prática”. Se as palavras eram simples, eu quis saber o motivo para tanta dificuldade. Ela explicou: “A simplicidade retira os enganos, arranca as máscaras, despe as fantasias e desmancha os personagens através dos quais transitamos pela existência. Rasga o véu da ilusão para nos deixar frente à verdade. Um movimento que, de início, atordoa pelo desconforto que traz. Poucos estão prontos para lidar com a verdade, uma difícil desconstrução indispensável à beleza da reconstrução oferecida. Tendo como origem as próprias incompreensões, a complexidade atordoa e impede que as mil partes de uma pessoa se reúnam e se unam em favor da integralização do ser. Desorientado, o indivíduo nega a sua essência como se a fuga de si mesmo fosse um caminho. Como pode notar, simplicidade nada tem a ver com superficialidade. A simplicidade é profunda por conduzir ao âmago de quem somos, onde não cabe mentiras nem subterfúgios. Poucos estão dispostos a se olhar sem medo diante do espelho da verdade; de se expor ao mundo sem nenhuma vergonha, apesar de todas as imperfeições, equívocos e dificuldades. Há de haver humildade e coragem para nos aceitarmos sem a importância e a perfeição que gostamos de atribuir a quem não somos”. Falei à madre que eu era um viajante em busca da verdade. Ela me lembrou do óbvio: “A estrada rumo à verdade passa pelo inevitável encontro consigo mesmo, sem o qual não será possível florescer a beleza da singularidade que nos aguarda em semente. Um movimento indispensável para despertar as virtudes ainda adormecidas pelos acalantos inebriantes das nossas sombras pessoais. Permaneceremos distante da luz”.

Pedi para que falasse mais sobre a importância das palavras para a compreensão e manifestação da verdade. A monja pontuou: “Quando expressadas em reação a uma contrariedade, ao encontro de um interesse ou na busca de um desejo, traduzem o nível de equilíbrio ou desarmonia interna, servindo como registro do quanto já conquistou ou ainda permanece subjugado pelos sentimentos desconhecidos que o dominam. As palavras possuem uma origem. Embora possam ocultar a verdade através de mentiras ou esconder as genuínas intenções no subterfúgio das entrelinhas traiçoeiras ou as confundir em alguns dos seus vários significados, as palavras demonstram o último limite alcançado pela consciência, assim como a sinceridade e o respeito contidos em nossos relacionamentos. Sim é sim, não é não, sempre falado de maneira clara, para que seja de simples entendimento; serena, evitando que seja decorrente de eventual desequilíbrio emocional; exata, sem palavras demais a esgarçar o conteúdo nem de menos a dificultar a compreensão; e inequívoca, a não permitir interpretações equivocadas”. Franziu as sobrancelhas e acrescentou: “Embora as atitudes sejam mais significativas que as palavras, não raro, estas se equivalem àquelas. São muitas as situações em que as palavras abrem ou fecham portas, erguem muros ou pontes, e quase sempre expressam sentimentos”. Fez uma breve pausa antes de continuar: “Emoções e sentimentos estreitam ou impulsionam o pensar. O cárcere inconsciente ou a autêntica liberdade resultará de quem domina quem. Se as paixões submetem os princípios e valores que me orientam, subvertendo os entendimentos que me deslocam pelo mundo, sou um escravo. Se me servem de mola propulsora para movimentar as ideias em favor das transformações necessárias ao aperfeiçoamento pessoal, conquisto um pouco mais de mim. Liberto-me. Todos os atos têm um senhor. Resta saber se estamos subjugados às emoções aviltadas ou fomentados por bons sentimentos. Irritação, raiva, mágoas e frustrações me fazem escravo das maldades a cada palavra ou escolha. De outra face, amor, perdão e renúncia me desamarram dos condicionamentos comportamentais e das experiências malsucedidas. Quem desconhece a importância e a influência da qualidade dos sentimentos e das emoções na formação do livre-pensar e, por consequência, da evolução espiritual, não conseguirá me entender. Tampouco será capaz de pertencer a si mesmo. Situações de pequena monta serão suficientes para o abalar emocionalmente e, assim, o arrancar do seu eixo de luz. Explodirá ou implodirá em impaciência, intolerância, ressentimento e ódio todos os dias. Ainda que seja agraciado com privilégio e conforto materiais, viverá a autêntica miséria existencial”. Em seguida, concluiu: “O imensurável poder de destruição e criação de todos os aspectos concernentes à própria vida reside na mente. Um coração sereno e alegre a expandirá. Se medroso e turbulento, a estreitará”. Bateu com o dedo indicador na mesa para ressaltar a metáfora e disse: “A mente é o monarca do castelo. O seu principal conselheiro é o coração. Por alterar os níveis de percepção e sensibilidade, o equilíbrio emocional se torna fundamental para determinar a força de movimento, assim como a clareza e a firmeza das decisões, todas sob a responsabilidade da consciência”. Perguntei como saberia se eu era senhor ou escravo de cada palavra proferida ou escolha realizada. A monja deu de ombros e disse: “A resposta reside na simplicidade com que você se relaciona consigo mesmo”.

Questionei se um estilo de vida pautado nessas ideias não geraria muitas rejeições. No mundo, as aparências são mais importantes que a essência; o material é mais valioso que o espiritual; a luta por posição social estabelece as relações de poder. A monja argumentou: “Vivemos no mundo. Há aspectos relativos à sobrevivência que não devemos menosprezar. Porém, estamos no mundo para evoluir, para nos tornarmos pessoas diferentes e melhores a cada dia. Podemos compartilhar o bem, os bens, as virtudes, os exemplos e o conhecimento. Tão e somente. Os passos e as transformações são personalíssimos. Ninguém poderá fazer isto por ninguém.”. Mostrou-me a paisagem vista por uma das janelas e me perguntou o que eu via. Um enorme precipício, falei. Em seguida, apontou para uma janela diametralmente oposta no cômodo circular e repetiu a pergunta. Uma ponte, respondi. Ela sorriu e explicou: “Se observar apenas por um ângulo, achará que fora do convento tudo se resume a um enorme precipício. Nada saberá sobre a existência das pontes para a superação dos obstáculos abismais”. Piscou um olho como quem conta um segredo e disse: “Viva no mundo, mas se movimente como espírito, a ponte pela qual atravessamos os abismos existenciais. Sem os movimentos internos todos os deslocamentos externos restarão vazios em significados. A cada gesto, não esqueça o que fica e o que segue. Todos os dias são perfeitos para destruir e criar quem somos na exata medida da desconstrução daquilo que não queremos mais em nós. A reconstrução daquele que queremos nos tornar é um exercício sem fim da mente e do coração”. Ela havia esquecido de abordar a questão das rejeições. Comentei que as pessoas tendem a repudiar ou se afastar daqueles que se constroem utilizando valores diversos dos adotados pelas maiorias. A mulher concordou com um gesto de cabeça e ponderou: “Ao permitir que os olhos alheios me moldem, me tornarei quem eles desejam que eu seja, não quem quero ser. Ao realizar escolhas pautadas na opinião dos outros, me afasto de quem sou, perco as minhas raízes. Prédios sem alicerces são frágeis. Cada um de nós é único. Sou criadora e criatura da obra de mim mesma. Se eu não for a autora da minha história, alguém será. Não posso permitir que isto aconteça. Esforço-me para entender quem sou e para onde quero ir. Desloco-me no alcance da verdade conforme a compreendo. Não careço da validação, permissão ao aprovação de ninguém. A incompreensão de muitos não me retira o valor, a determinação e o propósito. O imensurável valor das asas jamais será entendido por quem acredita que o poder está nos estilingues e nas pedras. Quem os outros são, pensam, dizem ou fazem não me impedirá de seguir adiante”.

Fez uma pausa antes de continuar: “Todos os dias procuro entender o que colocar ou retirar da bagagem. Todo o poder está na mente; toda a riqueza, no coração. Tudo mais se desmancha no tempo. Sei que grande parte das pessoas não entendem, mas debaixo das roupas maltrapilhas que uso, guardo um grande tesouro, a salvo dos ladrões, das traças, da ferrugem, da mudança de ventos da política ou das intempéries dos dias: a luz conquistada por intermédio do exercício das virtudes, que aos poucos agrego como ferramentas existenciais”. Ofereceu um sorriso acolhedor e concluiu: “No ritmo da evolução pessoal, a verdade se modifica. Se houver humildade, não haverá problema em fazer e refazer múltiplos ajustes na rota para se manter no rumo. Basta não se apegar ao erro, mas aprender com ele; sob nenhuma circunstância ou argumento fazer uso do mal; e jamais permitir que o medo seja empecilho ao movimento seguinte. Assim se apresentam aos viajantes os grandes mestres à disposição do Caminho”.

O sino do convento tocou convocando à oração. A mulher ergueu as sobrancelhas e sorriu. Ela tinha que ir. Era hora de eu partir. A monja sugeriu: “Feche os olhos e se deixe envolver pelo som do sino”, que continuava a badalar em ritmo compassado e constante. Obedeci. “São as trombetas dos anjos”, ela complementou. Deixei-me embalar por aquela sinfonia sagrada. Sem demora, em minha mente se formou uma mandala amarela e violeta, como se fosse uma portal árabe. E era. Segui a viagem pelo inconsciente coletivo.

Poema Setenta

Minhas palavras são simples,

Mas poucos as compreendem,

Quase ninguém as colocam em prática.

As palavras possuem uma origem;

Os atos têm um senhor.

Quem desconhece,

Não conseguirá me entender.

A incompreensão de muitos

Não me retira o valor.

Debaixo das roupas maltrapilhas,

O sábio guarda um tesouro.

4 comments

Maangoba julho 29, 2024 at 6:12 pm

gratidão.

Reply
Naly agosto 7, 2024 at 6:20 pm

Gratidão

Reply
Terumi setembro 28, 2024 at 2:27 am

Gratidão 🙏

Reply
Rhodolfo Diniz outubro 24, 2024 at 4:55 pm

Obrigado!! 🙏

Reply

Leave a Comment