MANUSCRITOS VII

A paz desconhecida

Quando a paz me abandona, Sedona é um dos refúgios a que recorro, uma autêntica trincheira existencial onde posso me restabelecer em segurança antes de voltar ao combate. Não se trata de estar em guerra contra ninguém, um olhar equivocado e ingênuo sobre qualquer tipo de relação com o mundo. Refiro-me à luta interna para chegar aonde nunca estive dentro de mim. Tudo que me irrita ou entristece carece de melhor compreensão e consequente transformação. Para ir além de quem sou, preciso conquistar cada palmo de quem desconheço em mim. Como dizia um antigo sábio, não há adversários mais renhidos do que os nossos adoráveis demônios internos. Adoráveis porque nutrimos enorme paixão e admiração por alguns deles. Não raro, confundimos orgulho e empáfia com dignidade e respeito; sem conhecer os exatos limites entre respeito e generosidade, embaralhamos tolerância com permissividade; misturamos em um mesmo pacote conceitos díspares como vaidade e amor-próprio. Perdemos o foco dos aprimoramentos necessários à evolução. Se formos honestos ainda encontraremos resquícios de prazer nas vezes que nos sentimos maiores ou melhores do que alguém. Vivemos dias confusos por não conseguir identificar os exatos sentimentos que moldam nossas percepções. Desconhecemo-nos. Não existe melhor cenário para os nossos demônios pessoais continuarem a reinar. Sim, são demônios por nos aprisionarem em vícios comportamentais – as nossas sombras – que tanto nos desequilibram e afastam da paz, tão necessária e valiosa. Vale salientar, para não restar nenhuma dúvida, esses demônios a que me refiro são partes indissociáveis de quem somos. Ninguém os colocou dentro da gente contra a nossa vontade. Eles sempre nos pertenceram. Aceite-os sem revolta ou mentiras. Quando os negamos, campeiam soltos por entre ideias e sentimentos, adquirindo maior autonomia para nos dominar. Na ingênua tentativa de meramente os afastar, eles nos enganam. Apenas fingem que foram, quando, na verdade, permanecem escondidos ou disfarçados. Por acreditar que não mais nos habitam, ficamos invigilantes e permitimos a eles um enorme poder de influência sobre as nossas compreensões e escolhas. A mais cruel das prisões é aquela que não conseguimos enxergar as grades. Como fantoches, somos manipulados sem o menor controle sobre os próprios movimentos. Para se libertar desse jugo se faz necessário transmutar sombras em luz, demônios em anjos, para que não haja margem para falsos avanços. Eis o bom, difícil e lindo combate. É preciso algum nível de paz para travar esta luta. A falta de serenidade impede a clareza necessária para entender e realizar os movimentos internos corretos, sem os quais os deslocamentos externos restarão vazios. Uma paz contínua e crescente será o imensurável prêmio da vitória.

Canção Estrelada, o xamã cujo dom é perpetuar a filosofia ancestral do seu povo, me aguardava na varanda, sentado em sua cadeira de balanço. Ele me recebeu com um sorriso sincero e um forte abraço. Acomodei-me no sofá. Enquanto ele preenchia o fornilho de pedra vermelha do seu indefectível cachimbo, perguntou o que me arrancava do meu eixo de luz e acrescentou: “Quando acontece, a paz é a primeira perda sentida”. Havia algum tempo, comentei, que a relação com o principal autor da editora andava de mal a pior. Ele era o autor mais importante no quesito vendas. Os seus livros se tornaram bestsellers internacionais, sendo os valores auferidos muito importantes para a contabilidade da empresa. Entretanto, nem sempre fora assim. Quando o descobrimos, ele havia sido rejeitado por inúmeras outras editoras. Ninguém se interessara em o publicar. Encontramos nos seus textos um diamante ainda não lapidado. Havia um tesouro escondido debaixo de muita terra. Foi preciso um enorme e invisível trabalho de editoração. Não apenas de revisão gramatical e ortográfica, mas na reescrita de parágrafos inteiros para tornar a leitura mais agradável, com o cuidado de não alterar o estilo singular do autor. Foi necessário suprimir trechos que nada acrescentavam, assim como pedir para o autor acrescentar outros tantos na exigência de melhor explicar algumas cenas e diálogos. Depois de cuidarmos do conteúdo, fizemos um trabalho primoroso de artes gráficas com a participação incansável de ilustradores e diagramadores. O resultado foi uma obra fabulosa que merecidamente encantou os leitores. No início, houve uma agradável lua de mel entre autor e editora. Com o passar do tempo, o autor foi depreciando o esforço e o carinho da editora até a relação se tornar bem desagradável. As suas exigências eram cada vez maiores e, algumas beiravam à insensatez. Nunca se dava por satisfeito. Como o contrato estava próximo ao vencimento, havia da parte dele a ameaça velada de nos preterir para assinar com outra editora de maior tamanho. Como os lucros auferidos dos seus livros eram muito importantes para vários compromissos financeiros assumidos, embora a contragosto, a editora terminava por ceder às exigências do escritor. A cada exigência o autor nos espremia um pouco mais, como se testasse até onde iríamos. Tínhamos chegado ao nosso limite. A depender da sinceridade do olhar, o limite já havia sido ultrapassado havia algum tempo. Contudo, romper com o autor, afinal éramos uma editora de pequeno porte, poderia nos trazer complicações contábeis.

Sem nenhuma pressa, Canção Estrelada acendeu o cachimbo, baforou algumas vezes, e depois comentou: “Na semana passada uma sobrinha veio me contar uma história parecida”. Perguntei se ela era autora ou editora. O xamã sacudiu a cabeça em negativa e disse: “Nem uma coisa nem outra. Ela veio conversar sobre o seu casamento. Embora os aspectos aparentes sejam distintos, essencialmente é a mesma história de falta de limites, respeito e amor-próprio. Abusos, ameaças veladas e medo. O marido se nega a admitir a importância que ela sempre teve em estruturar a casa e a família, permitindo a ele se dedicar integralmente à sua carreira profissional. Desconsidera que o lar bem estruturado tenha sido importante para alcançar cargos e salários exponenciais na empresa na qual trabalha desde o início do casamento. Agora desmerece a esposa, se comportando como um eterno e insatisfeito credor que lamenta o muito que entrega para o pouco que recebe. Por mais que ela o agrade, ele nunca está satisfeito. Paira no ar uma ameaça de que poderá ir embora a qualquer instante”. Questionei por qual razão os relacionamentos chegam a esse ponto. Canção Estrelada explicou: “Quando há falta de humildade e gratidão de uma parte e ausência de amor-próprio e coragem da outra, os relacionamentos se tornam abusivos e desonestos”. Bateu com o dedo indicador no braço da cadeira para ressaltar: “Ninguém tem a obrigação de caminhar ao lado de ninguém. Seja afetiva ou profissionalmente. Todos podem ficar ou partir conforme a consciência os aprouver. Contudo, jamais pode faltar respeito para que não haja desonestidade e abusos. Ninguém deve se tornar objeto de maus tratos ou até mesmo de inconscientes torturas emocionais de ninguém”. Argumentei que dificuldade financeira é assunto sério. Assusta demais. Alguns passos são muito difíceis. Muitas vezes, ficar ou partir restam atrelados a esse tema. O xamã anuiu e retrucou: “Sem dúvida, as questões de sobrevivência costumam pesar bastante na decisão. Porém, a dignidade, a paz e a liberdade deveriam ter um peso ainda maior ou até mesmo absoluto. Podemos ser felizes com pouco dinheiro, nunca com pouca dignidade. Ao deixarmos a luz interna se apagar, a felicidade e a paz se tornam lugares de ficção”. Baforou o cachimbo e expandiu o raciocínio: “Questões financeiras são de enorme importância, mas não se aplicam em todos os casos e nem sempre são determinantes. Dependências emocionais são barreiras ainda mais comuns do que as econômicas e obstáculos mais difíceis de transpor. Não raro, se usa o dinheiro como argumento de sujeição, quando, em verdade, o impedimento está atrelado ao medo, à crença quanto à própria incapacidade de superar as dificuldades inerentes ao crescimento pessoal. Como há muito medo em partir na viagem em busca de um céu desconhecido, muitos preferem permanecer no inferno conhecido. Habituaram-se a viver ali. Embora bastante desagradável, acreditam não ser possível dias diferentes e melhores. Adaptaram-se às dores emocionais como se a cura fosse impossível. Acostumaram-se às péssimas condições e aos sofrimentos que, de tão antigos, os têm como se fossem parte de um inevitável destino. Grandes tolices, tristes hábitos. Negam o céu, sempre à disposição, por se sujeitarem às regras do inferno. Por serem avessas aos riscos, perdem as maravilhas da vida e desperdiçam as delícias de viver. Abdicam das mudanças por temer o desconhecido. Não merecerá a paz todo aquele que se recusar à aventura de encontrá-la”.

Discordei. Ele falava como se o entendimento conduzisse a um movimento óbvio e fácil. Canção Estrelada pontuou: “Óbvio, sim. Fácil, jamais”. Em seguida, esclareceu: “Diz-se óbvio a compreensão que salta à vista. De tão evidente, esgota todas as dúvidas e incertezas. A clareza no olhar é indispensável para alcançar tamanha percepção. Quem a possui tem acesso a uma verdade transformadora, sendo quase impossível recuar a partir do momento que a vislumbra na consciência. Esta é a irrefreável força que move as mudanças angulares, nas quais algo até então considerado essencial à sobrevivência, ao conforto ou ao prazer terá de ficar para trás para que seja possível alcançar uma conquista existencial ainda maior e de valor imensurável. A vitória sobre o medo é fundamental à paz. Esses movimentos se tornam viáveis quando percebemos que aquilo que mais temíamos perder é justamente o que nos furta a paz e impede de sermos livres e dignos. Falo em relação ao respeito que cada indivíduo precisa ter por si mesmo, sem o qual a cura e a evolução se manterão inacessíveis”. Soprou no fornilho do cachimbo para que o fogo não se apagasse e ponderou: “Como essa clareza nem sempre está disponível, as multidões tratam os visionários como se fossem desmiolados. Do mesmo modo, os ousados, que por fazerem o que poucos têm coragem de fazer, são tratados como irresponsáveis. O poder da verdade é revolucionário por conceder o quinhão de confiança necessário para conseguirmos ir além de quem somos. A escala de prioridades se altera. As transformações internas alicerçam um novo jeito de se mover pela vida. Um poder tão arrebatador que não permite ao seu portador esperar pelas supostas condições ideais. Ele as criará a cada momento dali por diante. Na recusa pelo movimento, restará um sofrimento crescente e uma falta de respeito demolidora por si mesmo”.

Baforou o cachimbo e alertou: “Lembre-se que ninguém é obrigado a mudar para se adequar aos nossos gostos, interesses ou verdade. Todos têm o direito de realizar as suas escolhas, definir a própria rota e destino. Do mesmo modo, não somos obrigados a acompanhar ninguém quando os rumos se desalinham. As rupturas não precisam ser bruscas nem conflituosas. Desde que haja o equilíbrio proveniente da clareza do olhar e os movimentos forem virtuosos, sempre caberá leveza e suavidade aos devidos encerramentos de ciclos existenciais. Jamais deixe de fazer o que for essencial à sua luz. Se for o caso, deixe o outro ir, porém, jamais permaneça parado, se sinta abandonado ou permita que o comportamento alheio o mantenha aprisionado em sensações de impotência, insegurança ou perda. Perdoe as incompreensões, confie em si e siga em frente. A vida tem mais a oferecer. Falo das descobertas permitidas nas vezes que precisamos despertar capacidades adormecidas, encontrar a paz desconhecida e conquistar a autonomia de caminhar com os próprios pés. Somente assim nos tornamos maiores que o maior dos nossos medos. Os sofrimentos se amiúdam por inconsistência e desnecessidade até desaparecerem”.

Perguntei se ele tinha tido a mesma conversa com a sobrinha. Canção Estrelada disse: “Foram palavras parecidas, adequadas a um modo inadequado de se relacionar com as próprias emoções e incompreensões. A falta de respeito e coragem em entender e aceitar o que é melhor para si embaça a realidade e deforma a própria identidade. A admiração é um aspecto valioso aos relacionamentos, mas quando esse sentimento transborda para a idolatria ou gera dependência, ocorre abusos, subjugação e faz a alma adoecer. Ninguém coloca ninguém nessa situação. Por descuido ou medo, permitimos que aconteça. Os relacionamentos precisam ser justos, amorosos e saudáveis. Do contrário, sugam ao invés de irrigar. Subserviência não se confunde com humildade. Enquanto aquela registra a anulação da autonomia e da vontade na submissão à absurdos desmandos, esta ilustra uma fantástica resiliência e abnegação fundamentais ao aprendizado e à evolução. Naquela prevalece o desrespeito, enquanto nesta há um profundo respeito por si mesmo, assim como por todos ao redor”. Fez uma pausa antes de concluir: “Nada nos faz perder tanto como a recusa em romper com o que nada mais acrescenta à nossa luz”.

Eu quis saber como aplicar aquelas palavras ao cotidiano. O xamã explicou: “Mente e coração tanto se envenenam em simbiose de desvios, enganos e estagnação como se retroalimentam em processo contínuo de vigilância, correção e avanços. Identifique as ideias e os sentimentos utilizados na elaboração das experiências vividas, como maneira de entender se não há outros mais aperfeiçoados para melhores soluções e escolhas. Se há sofrimento, desânimo ou mágoa, estamos utilizando os elementos errados na equação da vida. Existe a necessidade refazer os movimentos internos. É o início da conquista do equilíbrio e da clareza consciencial, fundamentais aos deslocamentos externos seguintes. Tenha a ética como aliada ao separar o certo do errado. Faça uso das virtudes para não permitir que o mal se sobreponha ao bem nas escolhas que lhe forem concernentes. Compreenda a beleza do sim e o valor do não, o momento de ficar e a hora de partir. Contudo, conceitos sem bons sentimentos são como jardins sem flores. Sirva-se do amor para que o olhar ultrapasse o lugar-comum, sem jamais esquecer que sem amor-próprio não restará amor nenhum. Do contrário não haverá acesso à melhor leitura de todas as situações, coisas e pessoas. Inclusive, e principalmente, de nós mesmos”. Fez uma pausa antes de finalizar a conversa: “Quem não for senhor das suas escolhas e reações, viverá como escravo delas. Ainda que não saiba ou admita. Enquanto estiver surdo à voz da alma, se manterá em constante desequilíbrio, sem a percepção e sensibilidade aguçadas para usufruir da clareza oriunda da verdade. O acesso a todas as possibilidades de movimento ficará restrito. Desperdiçará as melhores oportunidades pelo simples fato de não as enxergar. A vida se amiudará”.

Fiquei alguns dias em Sedona. Não houve mais nenhuma palavra sobre o assunto. Participei de um cerimonial na montanha. Rezamos e meditamos. Pescamos em um lago tranquilo e passeamos pelo silêncio do deserto do Arizona. Fomos a um show de música. Cantei e dancei até o dia amanhecer. Sem que eu me desse conta, Canção Estrelada me distanciou do problema, não como fuga, mas como maneira de me afastar de ideias e emoções viciadas que, baseadas em experiências anteriores, teimavam em reduzir a um único modelo de elaboração a solução de todas as minhas dificuldades. Eu precisava pensar e sentir diferente. Em verdade, sempre existem impensadas possibilidades de ver e fazer. Na exata dimensão da coragem, do respeito e do amor que eu tiver por mim e pela vida. Canção Estrelada me ofereceu as condições de criar o lugar interno onde as modificações aconteceriam. Assim consegui observar, compreender e enfrentar o problema através de outro viés.

Ao retornar ao Rio, a postura era outra. Eu trazia comigo uma confiança tranquila. Ocorrera um movimento interno que alicerçava os deslocamentos externos que eu estava determinado a fazer. Sentia-me seguro. A vida nunca desampara quem se move em busca da luz. Convidei o nosso principal escritor para um almoço. Com sinceridade, admiti o quanto ele era importante para a editora. Disse que faria muito gosto em renovar o seu contrato. Ofereci as melhores condições possíveis, dentro do nosso alcance. Fui honesto sobre os limites da editora. Evitei abordar o incrível trabalho que havíamos feito nos livros dele. Cabia a ele reconhecer isto sem que fosse preciso falar ou mostrar. Se não fosse um gesto de gratidão, jamais seria de convencimento. O autoelogio, além de cabotino, não me parece ético como elemento de negociação. Com delicadeza, expliquei que qualquer que fosse a sua decisão, restaria respeito e alegria por todas as conquistas realizadas em conjunto. Tínhamos uma bela história que não se macularia por diferenças de olhares ou vontade de mudar de ares e rumos. Todos têm direito a isto, ressaltei. O escritor fez uma contraposta de imediato. Expliquei que estava sendo franco. Tínhamos oferecido as melhores condições que nos eram possíveis. Senti nele uma irritação contida, comum a quem se acostumou a não ser contrariado. O autor comentou, sem ocultar o desdém, que eu estava diferente. Embora não fosse a sua intenção, recebi como elogio aquelas palavras. Eu sabia o que havia mudado. Ele se despediu, dizendo que ligaria em alguns dias.

A editora também passava por importantes mudanças. Ao chegar de viagem, eu reunira a nossa equipe para criar um desafio de superação. Não dependeríamos mais de qualquer obra ou autor para nos manter no mercado. Novos títulos, segmentos e talentos seriam publicados com o nosso indefectível selo de criatividade e qualidade. Se tínhamos feito uma vez, sabíamos que mil outras vezes seriam possíveis. A vida nasce e se renova na criação. A vida impulsiona quem tem respeito, coragem, ousadia e amor-próprio para se reconstruir. O processo de criação surge como efeito da necessidade de desconstrução do que nos impede de seguir adiante. A semente rompe a casca para se tornar árvore por não mais se sujeitar ao peso da terra. Aquilo que a oprime e esmaga termina por dar causa ao seu crescimento. Entretanto, ela conhecerá o sol apenas quando não mais se conformar em viver na escuridão do subsolo. Alguns dias depois, quando o escritor comunicou a decisão de não renovar o contrato, estávamos envolvidos com tantos movimentos de criação que a notícia foi recebida com tranquilidade e sem causar nenhum arranhão emocional. Havia muitas coisas maravilhosas sendo criadas para ir ao prelo e ganhar vida. Eu estava animado pelo trabalho e feliz pelo renascimento. Eu estava em paz. Somente novos sentimentos doces têm o poder de desmanchar antigos sentimentos amargos.

Contei o desfecho da história para Canção Estrelada em uma noite com o céu salpicado de estrelas. O xamã comentou: “Com a minha sobrinha foi um pouco diferente. Foi ela quem procurou o marido para manifestar a sua insatisfação. De início, ele se sentiu aliviado e partiu. Havia tempos que a considerava um peso em sua vida. Sem nada conhecer sobre a verdadeira estrutura da liberdade, se acreditou livre para se lançar no universo das paixões vazias de qualquer compromisso, como são todas as paixões. Olhou por instante para a lua crescente que surgia por trás das montanhas e segredou: “O compromisso é o elemento diferencial entre a paixão e o amor. A paixão fala sobre quem adora os frutos de uma árvore. O amor revela quem cuida da árvore”. Em seguida retornou à história da sobrinha: “Tudo parecia perfeito para o ex-marido até que surgiu um enorme problema na empresa que trabalhava. O setor dirigido por ele sofreu acusações de ter tomado uma série de decisões equivocadas, gerando sérios prejuízos e afetando a credibilidade da marca. Estava implicado em um inquérito administrativo do qual uma das resoluções possíveis era a demissão de todos os envolvidos. Ao conversar com a atual namorada, ela não se mostrou interessada em compartilhar problemas. Assim como ele, desejava somente o lado prazeroso do relacionamento. Desinteressou-se dele sem demora. Quando olhou para o lado não havia ninguém para atravessar a tempestade ao seu lado. Então entendeu o valor imensurável e silencioso da mulher que teve. O que mantém uma casa de pé não é a beleza do design, mas a firmeza dos alicerces. Tomado por intenso arrependimento, a procurou. Porém, não a encontrou disponível como se acostumara. Já não era a mesma mulher. Algo havia mudado substancialmente. A ruptura do casamento não deformara a sua identidade, mas colaborou para a valorizar. Fez emergir características esquecidas, atributos reprimidos e talentos adormecidos. Como era uma excelente cozinheira, decidira cursar culinária para atrelar o dom à técnica. Trabalhava em um restaurante muito apreciado e recebia constantes elogios. Planejava em breve abrir um pequeno bistrô. Conhecera uma pessoa que admirava tanto a trajetória quanto a sua personalidade, se interessava por suas opiniões, gostava do seu sorriso tímido e adorava o cheesecake cuja receita ela mantinha em absoluto segredo. Não havia lugar para retomar a vida que ficara para trás. Resgatara a própria dignidade. Libertara-se. Vivia um caso de amor consigo mesma e com outra pessoa. Estava feliz e em paz”. Arqueou os lábios em sorriso e reforçou a ideia: “A vida nasce e se renova na criação. Somos os criadores das criaturas que somos”.

Comentei que não tinha sido fácil. Eu enfrentara muitas adversidades durante o processo de renascimento. Houvera diversas dificuldades e nem todos os projetos alcançaram o resultado esperado. Encontrei nos erros os melhores mestres. Foi preciso criatividade e disposição para ultrapassar cada obstáculo. Alterei rotas para me manter no rumo. O xamã esclareceu: “Tenha certeza de que com a minha sobrinha não foi diferente. Assim acontece na vida de todos. Só há perdas quando desperdiçamos as oportunidades de aprendizado e transformação. Os momentos difíceis são perfeitos para isto. Tem dias que nada parece dar certo, que as portas jamais se abrirão e que terminaremos os dias em um beco sem saída. O que para o tolos ilustra um universo de impossibilidades, para os sábios é a forja da vida. A paz não é do mundo, ela pertence à alma. É preciso aprender a disciplinar os pensamentos e acalmar os sentimentos. Quem acredita em si mesmo e se mantém em movimentos mansos, ordenados e contínuos nunca será desamparado pela vida. Trata-se do instante crucial no qual a determinação será testada, a criatividade estará à serviço da regeneração para derrubar as obsoletas formas de lidar com problemas e soluções. Temos dificuldade de deixar para trás o que nos acostumamos a carregar. Não é fácil descontruir características pessoais que, apesar de atrapalhar o nosso desenvolvimento, insistimos em manter como se fossem atributos indissociáveis de quem somos. Renascer exige equilíbrio e força, pois é preciso romper a própria casca para ir ao encontro do céu desconhecido. Uma transformação dificílima, porém, indispensável. Está presente nos modos como nos relacionamos conosco e com o mundo. A crença absurda na própria incapacidade, nascida de experiências mal elaboradas, gera a nefasta dependência que agiganta os medos e alimenta os sofrimentos. Então, em movimento avesso à vida, preferimos nos acomodar ao inferno conhecido, tentando encontrar nele sabores e maravilhas que nunca existiram. Erguemos falsos argumentos para justificar a nossa falta de amor-próprio. Ao abandonar a dignidade e desistir da liberdade, abdicamos da paz”.

Canção Estrelada rufou uma cantiga ancestral em seu tambor de duas faces, cantada para celebrar as vezes que alguém encontrava com outro alguém desconhecido em si mesmo e, assim, conhecia um pouco mais do céu à disposição de todos.

5 comments

Terumi outubro 25, 2024 at 12:06 pm

Gratidão 🙏

Reply
André Menezes outubro 26, 2024 at 2:42 am

Gratidão 🙏

Reply
Ogait novembro 3, 2024 at 1:00 pm

Sempre que posso estou aqui no instituto, aprendendo com as experiências e vivência de yoskhaz. Horas com muito amor horas só o ódio mais smp na curiosidade de aprender e conhecer quem sou muito difícil essa caminhada. Mas smp lembro que a porta é estreita pois meu ego é enorme. Gratidão pela a consciência que estou desenvolvendo yoskhaz 🙏 a paz seja convosco!

Reply
Rhodolfo Diniz dezembro 19, 2024 at 11:37 am

Gratidão pela reflexão e aprendizado! 🙏🙏

Reply
Marcis6 janeiro 2, 2025 at 9:33 pm

Gratidão

Reply

Leave a Comment