Século XV. Eu estava em frente a igreja de Belém, em Praga. Decidi entrar. Na missa, para minha surpresa, o padre não falava em latim, como era obrigatório na época. Usava o idioma local. Como se não bastasse, defendia a ideia da livre interpretação dos textos sagrados em oposição a primazia da Igreja Romana: “Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou a conversar com Deus sem a necessidade de qualquer intermediário ou preposto. Aquele que desejar se apossar dessa conexão é ladrão ou impostor”. Depois, opinou contrariamente às indulgências vendidas pelo papa. “O perdão é a conquista de um coração sincero, arrependido dos seus erros, os reparando quando possível, e com o firme propósito de nunca mais os praticar. O perdão também ocorre através da purificação dos sentimentos, ao esvaziar o último resíduo de ressentimento provocado pela maldade alheia. O perdão é o amor em sua forma mais sublime. Dinheiro não compra a verdade nem as virtudes; tampouco, a evolução espiritual. Quem não encontrar o Reino do Céu dentro de si, não o achará em lugar nenhum”, explicou. Embora as pessoas aprovassem as suas palavras, havia um receio generalizado que aquele padre sofresse sérias sanções. A Inquisição grassava solta pela Europa, como uma fera desnorteada e faminta. Ao final da missa, alguns homens e mulheres o conduziram à sacristia. Acompanhei-os. Eles estavam preocupados. Uma comitiva papal havia sido designada para o interrogar por práticas heréticas. Chegaria em poucos dias. A fogueira era a sentença implacável àqueles que ousassem a difundir ideias contrárias à supremacia do poder político e religioso da Igreja Romana. O rei também estava insatisfeito com ele. Em seus sermões dominicais, o padre havia falado sobre a necessidade de algumas reformas sociais, além da diminuição de impostos. A população estava inquieta. O grupo de amigos sugeriu que se retirasse para uma fazenda distante dali. Seria bom deixar o fogo arrefecer. O padre se mostrou relutante. Uma das mulheres lembrou que teria tempo e sossego para escrever o livro que tanto desejava. Seria uma maneira de propagar as suas ideias para terras distantes. Muitas outras pessoas também teriam acesso a novas possibilidades de relacionamento com o sagrado. A fé deixaria de ser de domínio institucional para se tornar um poder pessoal, como ensinado no Cristianismo primitivo.
O cerco se fechava. O tempo escasso clamava por uma decisão urgente. O padre refletiu por alguns instantes e disse: “O povo sente fome quando há muitos impostos”. Um dos homens disse que o momento não era oportuno para falar de política. O clérigo explicou: “Para ouvidos desatentos, pode meramente parecer um discurso político. Embora a interpretação seja pertinente e aplicável, não é a minha intenção. Eu gostaria de oferecer um olhar sobre a maneira como costumamos nos relacionar conosco – cada um consigo mesmo – e como esse entendimento pode se tornar uma preciosa chave a permitir a abertura de muitas portas; quiçá, todas elas. Do contrário, os dias serão perdidos no emaranhado das incompreensões internas”. As pessoas não sabiam do que o clérigo falava. Ele explicou: “Vivemos de acordo com o sistema político que conhecemos. O poder de elaborar e derrogar as lei está concentrado na realeza e na Igreja. Um pequeno grupo concede e retira os direitos do povo. Em suma, o que podemos e o que não podemos fazer. Não sem razão, as pessoas sentem um forte impulso para se opor ao atual sistema. É natural que entrem em conflito quando a repressão é grande e ultrapassa o limite suportável. Os governantes administram as cidades testando os limites da população. Nem a cidade nem a população evolui. Assim acontece conosco”. Um dos homens questionou se deveriam se organizar para lutar contra o poder estabelecido. O padre disse não com a cabeça. Os seus olhos navegavam em ideias distantes. Ele explicou: “O sistema político serve de vitrine à realidade, mas não a representa. Ao contrário do que muitos acreditam, a realidade não se estabelece pelo código de leis ou poder financeiro. Isto é ordem pública e potencial de consumo. Duas pessoas em condições materiais similares podem viver realidades distintas. A realidade é pessoal, pois se expressa na clareza do olhar. Na maneira como compreendemos todas as situações, coisas e pessoas instante a instante, dia após dia. É o limite extremo da verdade alcançada por cada pessoa. Embora para alguns uma porta fechada signifique a impossibilidade de seguir adiante, para outros serve de impulso para o descobrimento da chave que a abrirá ou a reação pela buscar por outra passagem, até então desconhecida por jamais ter sido pensada. No entanto, há quem acredite que só sairá do lugar se a porta se abrir por mãos que não as suas. São os eternos permissionários; vivem a espera de autorização para pensar e sentir, ser e viver. Não falo para estimular conflitos ou rebeldias, mas lembrar do poder incomensurável contido nas soluções criativas. Abismos não significam o fim da estrada. Ninguém pensaria em pontes se não fossem os precipícios. O poder de criar ou destruir realidades reside na consciência, jamais pertence as autoridades”. Virou-se para as pessoas e perguntou: “Entenderam?”. Todos disseram que não.
Eu também não tinha entendido, mas cada vez mais gostava daquele padre. Ele tentava nos mostrar algo que não víamos, como se observasse a realidade com lentes que ainda não possuíamos. O clérigo explicou: “Ninguém muda nada através do conflito. Ao se opor a realidade de modo brusco, você não a modifica. Apenas estabelece impasses ou obrigações. Com o tempo, ambas viram estagnação. Não há avanço. Ficaremos limitados a movimentos repetitivos que, em qualquer análise, não levam a lugar nenhum. A síndrome da areia movediça”. As pessoas o ouviam com atenção. Ele continuou: “Para mudar algo se faz indispensável criar uma diferente realidade que torne obsoleta a realidade atual. Com tamanho aperfeiçoamento e melhorias que será impossível resistir à mudança”. Bateu com o dedo indicado na mesa, como para ressaltar as palavras seguintes, e disse: “Ninguém cria a realidade no mundo, mas dentro de si. Depois simplesmente a vive, quando a coloca em movimento através das suas relações e dos dias”. Uma das mulheres quis saber como seria se as pessoas não concordassem com esse novo modelo de ser e viver. O padre pontuou: “Ninguém precisa acompanhar ninguém. A realidade é pessoal e nem sempre transferível. Compartilhamos o que há de melhor em nós e seguimos em frente. Apenas os tolos se perdem no caminho por insistir que lhes sigam”.
Antes que os raciocínios mudassem de direção, ele nos manteve no rumo: “Repito. Não me refiro a política. Falo do relacionamento que cada indivíduo mantém consigo mesmo e com as pessoas, coisas e situações ao redor. Estes são reflexos daquele. Todos os conflitos, males e maldades têm como origem as incompreensões internas. Sem exceção. Tudo que nos incomoda, assusta ou sangra na alma faz sofrer e amedronta. Por consequência, gera aspereza e distúrbios nas relações interpessoais. Fazemos cobranças excessivas e descabidas, dos íntimos aos estranhos, como soberanos desvairados que estabelecem pesados e injustos tributos à população. Quando não conseguimos dominar as próprias paixões e quereres, tal como reis e papas, controlamos e manipulamos os interesses, verdades e desejos de outras pessoas. Somos mananciais de conflitos e celeiros de mágoas. Geramos conflitos, sofremos com as mágoas. Elegemos as guerras como estilo de vida porque elas transbordam de dentro para fora da gente. Quando nos damos conta, já estamos de arma em punho num campo de batalha qualquer”. Fez uma breve pausa antes de esclarecer: “Falo dos combates familiares, sociais e profissionais. Insignificantes aos olhos do mundo, mas com tamanho suficiente para nos fazer explodir ou implodir. De furtar a paz”.
Um dos homens questionou quando saberíamos da necessidade de transformar a realidade. O padre arqueou os lábios em singelo sorriso e disse: “Em verdade, sempre. A realidade criada o trouxe até aqui. Jamais o levará adiante. Faz-se necessário criar outra, diferente e melhor que a atual. Não falo de devaneios nem loucuras. Refiro-me ao aperfeiçoamento do olhar. Assim como eu e vocês, a vida e o mundo têm muitas camadas de interpretação. As experiências adquirem significados até então desconhecidos quando a elaboramos com um olhar mais aguçado. Verdades que não resolvem nem respondem deixam de ter serventia. Tenha a ousadia de as modificar. Criar outra realidade é transformar a si mesmo. Não há outro jeito”.
Silêncio. Todos precisavam alocar aquelas ideias para as metabolizar em ferramentas do bem viver. O padre se sentou. Disse que precisava pensar. Decisões angulares os aguardavam. Pediu para que voltassem no fim da tarde. Todos se foram. Eu fiquei. Ao levantar a cabeça e me ver em pé à sua frente, o clérigo sorriu. Apontou com o queixo para uma pintura de Adão e Eva sendo expulsos do Paraíso e brincou: “A jornada da vida começa com um ato de desobediência”. Rimos. Em seguida, acrescentou: “Criar a realidade é um ato de extrema ousadia. A ousadia não é a virtude do desrespeito nem dos criminosos. Se fosse, não seria virtude. Trata-se da firme disposição de ir além de si mesmo, em desobediência às falsas verdades, conceitos e crenças que insistem em o convencer a viver dentro de um limitado quintal, sob o argumento que o mundo é perigoso e a vida traiçoeira. Que somos incapazes e impotentes, sendo o sofrimento inevitável e o medo um eterno carcereiro. Em caso de desobediência, será devorado sem demora. Na dúvida, ficamos. Com a ousadia, na dúvida, pagamos para ver. A ousadia nos ensina que a vida tem mais a oferecer. Há infinitas maravilhas além dos muros do quintal. Aprendemos a reavaliar possibilidades e oportunidades, rever conceitos e valores. Repito, não falo de devaneios nem loucuras. Na acepção da palavra, realidade significa qualidade ou característica do que é real e verdadeiro. Refiro-me a criar uma realidade na qual seus dons, talentos e capacidades não restem limitados nem esmagados. Não é pouco. Não é muito. É essencial”.
Questionei qual seria a ousadia extrema capaz de criar uma realidade suprema, para além das garras da maldade e do medo. Os olhos do padre vagaram por terras e lembranças distantes, como se o colocasse diante da decisão que tomaria naquela tarde, e ponderou: “Há muitas ousadias valiosas. Todas preciosas. O leão que cede lugar para que o carneiro leve os filhotes sedentos para beber a água mais limpa do lago, em gesto de humildade e amor. O condenado que, mesmo inocente, perdoa o carrasco no momento da execução da sentença. Bem-aventurados sejam os ousados, eles entendem o genuíno significado da vida”. Comentei como era difícil a ousadia. Ele disse sim com a cabeça e esclareceu: “Quem se apega a vida, não a merece. A morte não assusta quem ama viver. Penso que a ousadia capaz de criar a realidade angular da vida seja a renúncia. Ao contrário do que os incautos imaginam, a renúncia não cabe aos fracos, inseguros e covardes. É um ato dos fortes que compreendem o autêntico significado da vida: um grande ciclo atemporal composto de diversos ciclos existenciais e temporais. Viver é bem mais do que apenas estar vivo. Entender a evolução espiritual como finalidade maior das experiências vividas o faz renunciar a vários aspectos da vida por amor à vida. A renúncia consiste em abdicar de bens valiosos à realidade do mundo em prol de outros de quilate imensurável à realidade da luz. Muitos acreditam que renúncia é desapego. É deixar ir. Ledo engano. Renunciar é cuidar para não perder. Um gesto de valorização dos bens infungíveis e luminosos em detrimento àqueles tangíveis e perecíveis. Uma diferente realidade”.
Bateram na porta. A comitiva inquisitorial se aproximava. Era hora de partir. Agradeci a conversa e as ferramentas oferecidas. Prometi as colocar em uso como melhor maneira de demonstrar a minha gratidão. O padre sorriu satisfeito. Perguntei por onde eu deveria sair. Ele me mostrou uma pintura na parede retratando Santo Agostinho. Em seguida, acrescentou: “Em suas Confissões, Agostinho lembra que as pessoas viajam para conhecer as belezas do mundo, mas passam a vida sem encontrar a própria beleza por desconhecer quem são”. Olhei a imagem por alguns instantes. Notei que por trás do santo havia nuvens pintadas como se fossem mandalas. Quis saber se o padre também viria. O perigo se avizinhava. Ele sorriu e explicou com a voz serena: “Vivo a realidade que criei. Minha viagem é outra”. Me despedi e parti.
Poema Setenta e Cinco
O povo sente fome
Quando há muitos impostos.
Entra em conflito
Quando a repressão é grande.
A morte não assusta quem ama viver.
Viver é bem mais do que apenas estar vivo.