TAO TE CHING

TAO TE CHING (Septuagésimo primeiro limiar – Céu e inferno)

Era um típico mercado persa do Século X. Havia uma alegre profusão de cores, aromas, coisas e pessoas. Com incrível variedade, produtos oriundos da Índia, China, Europa e África eram oferecidos por mercadores ávidos e habilidosos. Sedas, especiarias, porcelanas e utensílios oriundos dos mais diversos cantos do mundo conhecido estavam à disposição de um público encantado com tantas maravilhas que até então lhes eram desconhecidas ou raras. Tive a atenção voltada para um homem de meia-idade. Usava turbante e vestia uma elegante túnica grená. Um belo xale azul com a bordas mostardas lhe protegia o pescoço do frio da tarde. A barba era curta e bem aparada. As botas tinham sido feitas com couro de cabra, caras à época, e estavam cuidadosamente engraxadas. Examinava facas e espadas em uma das bancas. Mostrou-se interessado em um dos punhais. Disse ter perdido o seu em uma viagem recente à Síria. Perguntou quanto custava. Embora nada dissesse, notei ter ficado assustado com o preço pedido pelo mercador que, ao perceber o espanto do homem, justificou o alto valor alegando se tratar do famoso aço de Damasco, conhecido pela sua excepcional qualidade. De modo gentil e educado, o homem disse ter gostado muito da peça, porém, aquele não era o famoso aço fabricado naquela cidade situada no Levante. Se fosse, pagaria o preço pedido. As feições do mercador se contraíram. Ele insistiu se tratar do famoso aço. Sereno, o homem explicou que, ao contrário daquele, o aço de Damasco se caracterizava pelos belos e distintos padrões visuais impregnados ao metal, semelhantes ao fluxo da água, surgidos durante o processo de fundição, quando uma grande quantidade de lingotes misturada a alguns vegetais eram levados à elevadas temperaturas para, logo em seguida, serem resfriados rapidamente de modo a conferir a têmpera e a plasticidade que lhe concederam a justa fama. Além de elegante e educado, era um homem culto. Irritado, até por haver algumas pessoas ouvindo a conversa, o vendedor se disse ofendido. Alegou ter sido acusado de mentiroso e embusteiro. Negociava naquele mercado havia anos. Aos gritos, disse não admitir que o tratassem daquela maneira. Sem se abalar com a descompostura do mercador, o homem argumentou que não ofendera ninguém. Apenas mostrara haver um engano por parte do vendedor: “Ninguém é infalível”, ponderou num tom de voz tranquilo e conciliador. As pessoas em volta começaram a se manifestar. Eram muitas e diversas as opiniões prolatadas ao mesmo tempo. Ninguém mais conseguia ouvir ninguém. Receei que a confusão escalasse tons. Quando os olhos do homem cruzaram com os meus, fiz um sinal para ele se afastar. Ele maneou a cabeça em anuência. Ao me aproximar, toquei em seu braço indicando uma saída por entre a pequena multidão que se formara no entorno da banca.  

Quando chegamos ao lado de fora do mercado, comentei que por pouco ele não fora agredido pelo comerciante enfurecido. Das duas, uma. Embora não fosse, talvez o vendedor acreditasse se tratar do famoso aço de Damasco. A outra hipótese é que, diante da vergonha em ser desmascarado, tentou virar o jogo, usando o ataque como mecanismo de defesa. O homem ponderou: “A ignorância é a mãe de todas as sombras, solo fértil para germinar as sementes da agressividade, do medo, do sofrimento e da tristeza. Ele poderia ter discordado de mim quanto à origem do punhal, nada há de errado nisto. A intolerância e impaciência do seu comportamento denota como ele se desconhece, permitindo que emoções surgidas de situações inesperadas e desagradáveis o maltratem e desequilibrem, fazendo que seja servo das próprias emoções e escravo do comportamento alheio. Entenda que não foram as minhas palavras que o fizeram entrar em ebulição, mas a ignorância sobre si mesmo”. Fez um gesto com a mão para eu o acompanhar. Enquanto andávamos por um ruela próxima ao mercado, seguimos conversando. Ele esclareceu: “As diferenças de olhares, saberes e opiniões enriquecem a vida. São necessárias e saudáveis, porém, necessitam de mansidão. Estar certo ou errado faz parte do processo natural de aprendizado. O sentimento de infalibilidade apenas denota um indivíduo engessado em ideias estanques e sentimentos abertos em feridas emocionais contaminadas pela vaidade e pelo orgulho, ainda sem condições de serem tratadas. Enquanto não compreender isso, continuará amarrado aos próprios erros numa espécie de casamento que, apesar de nocivo, permanece indissolúvel. Demonstra as infinitas léguas que o distancia da redenção”. Antes que eu perguntasse, ele explicou: “A redenção é a liberdade construída através da reconstrução interior, sem a qual não se tem acesso à verdade”. Argumentei que o mercador, apesar de errado, talvez acreditasse estar certo. Do mesmo modo, o sentimento de ter sido acusado de impostor para ele talvez fosse verdadeiro.  O homem deu de ombros e comentou: “As coisas, situações e pessoas são como você as compreende ou acredita que sejam. Saber que nada ou muito pouco se sabe sobre tudo e todos é um poder imensurável. O olhar, o conhecimento e as crenças estabelecem o funcionamento do mundo e os limites da vida para cada pessoa. As possibilidades se apresentam na exata medida da ousadia de ir além de onde você se encontra em si mesmo. Os deslocamentos que o moverão pela existência serão os inequívocos registros de amor, coragem, sinceridade e audácia contidos em seus movimentos íntimos de expansão. São marcos da evolução individual”.

Eu me esforçava para acompanhar o seu raciocínio veloz. Perguntei se ele falava sobre o engano do mercador sobre o punhal. O homem pontuou: “Refiro-me às linhas divisórias entre a ignorância e a verdade como fronteiras entre as trevas e a luz. O fato que ocorreu há pouco no mercado é um exemplo pequenino, porém, emblemático. Não saber que não sei é ignorância. Saber que não sei é conhecimento, mas não basta. Estar disposto a conhecer o desconhecido demonstra fina sabedoria. A busca pelo saber precisa estar em constante ação, assim como a sua aplicabilidade nas questões cotidianas. Do contrário será como o fruto doce que apodrece esquecido no cesto sem cumprir a função de alimentar”. Ele continuou a falar enquanto andávamos: “Conhecer a mim mesmo é pressuposto necessário para compreender melhor as pessoas, as coisas e as situações. O mundo, a vida e a verdade se descortinam no compasso das minhas transformações. Tudo muda sem nada mudar. As modificações são decorrentes do aprimoramento da percepção e da sensibilidade do viajante no percurso da viagem de autodescobrimento. O que me apavora é aquilo que desconheço em mim. O que me devora é aquilo que equivocadamente acredito conhecer em mim. Acreditar saber quando não se sabe é um mal. Todos os medos, conflitos, sofrimentos e sombras se alimentam da ignorância. Não tenho como controlar os acontecimentos do mundo ou as ações alheias que porventura me alcancem, mas posso ter absoluto domínio sobre as minhas reações como resposta, contraponto, limite, respeito e amor-próprio. Desde, é claro, que já possua um mínimo de saber sobre quem sou e aquele que ainda não sou”.

Indaguei como entender onde residem os pontos que necessitam de ajustes imediatos. O homem franziu as sobrancelhas e exemplificou: “Lembre do mercador de punhais no mercado ainda há pouco. Não me refiro ao desconhecimento do erro, mas em não estar aberto à evolução. Há de haver humildade. O sentimento de infalibilidade é típico daqueles que estão mais preocupados com a aparência que desenharam sobre quem não são do que a essência de quem genuinamente são. A imagem de superfície os torna vaidosos; usam o orgulho como muro de proteção. Embora neguem, no íntimo se sentem frágeis. Falta-lhes os pilares das virtudes e da verdade para a necessária sustentação sobre si mesmo. Então se valem das armas de ataque da arrogância e se mostram ofendidos todas as vezes que se veem ameaçados de serem expostos à verdade inconfessável. Ao contrário do que imaginam, nada ganham. Em verdade, desperdiçam as suas potencialidades evolutivas; se tornam menos quando poderiam ser muito mais”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “O mal, em quaisquer dos seus diversos graus e inúmeras vertentes, é apenas o sintoma. A ignorância é a doença que necessita de erradicação”.

O elegante homem continuou a explicação: “Tudo aquilo que nos irrita ou nos entristece sinaliza pontos de ignorância sobre quem somos; são os alvos imediatos das próximas transformações intrínsecas. Enquanto permanecerem indomáveis, continuarão no comando das nossas reações. Sentimentos de incapacidade, insegurança ou desistência; desânimo, agressividade ou mágoas; euforias desmedidas, reações impulsivas ou crises de vitimismo revelam desequilíbrios emocionais que, como tais, são patologias da alma. Não perca tempo reclamando do mundo ou culpando os outros. Enquanto a causa da enfermidade não for detectada e o tratamento iniciado, continuará desimpedida para se espraiar até nos conduzir à ruína existencial. Conhecer a doença ajuda a evitar que a doença se alastre ou retorne, desde que haja interesse sincero pela saúde da alma, o genuíno viajante das estradas do tempo em busca da verdade. Não há outra maneira de alcançar a cura”.

Ao passarmos em frente a uma loja de chá, ele me convidou a entrar. Pedimos um bule de infusão com flores de hibiscos e um pote com biscoitos de tâmaras. Enquanto aguardávamos, continuamos a conversa. Ele comentou: “Se em mim estão as raízes dos meus medos e sofrimentos, ao entender as causas tenho acesso para modificar as consequências. Quando troco a qualidade das sementes, altero o sabor final dos frutos. Assim consigo não apenas as compreender, mas utilizar de modo consciente o poder da vida que tenho nas mãos.” Pedi para que explicasse melhor sobre esse poder a que se referira. O homem explicou: “Tanto o céu quanto o inferno não possuem uma localização geográfica; trata-se de uma manifestação espiritual. Ambos estão dentro de mim. Ignorância e verdade alimentam os meus pensamentos, sentimentos e atitudes que definem em qual deles eu habito a cada instante”.

Comentei sobre a importância de nos mantermos afastados do mal. O filósofo concordou e ponderou: “Manter-se afastado do mal exige pleno conhecimento do mal. Jamais ignore a sua existência ou alcance. O sábio não adoece porque trata o mal como mal. Não consigo me proteger do inimigo que ignoro existir ou, não menos grave, acredito que me proteja, enquanto através do orgulho, da vaidade, da ganância, do egoísmo, entre outras sombras pessoais, ele me domina. Se negocio com o mal me torno seu devedor; se o ignoro em qualquer aspecto, ele me toma como instrumento. O tamanho do meu cárcere é proporcional às dimensões da minha ignorância”. O chá e os biscoitos foram colocados sobre a mesa. Estavam deliciosos. Degustamos por algum tempo sem dizer palavra, até que o filósofo acrescentou para concluir: “As faces desconhecidas de quem sou me fazem viver quem eu não sou, como um fantoche que se acredita livre por não se dar conta das cordas que limitam e manipulam os seus movimentos”. Arqueou os lábios em lindo sorriso e finalizou: “Tudo que ignoro em mim ainda não me pertence. Enquanto fragmentado, permaneço frágil e desequilibrado. Pequenas dificuldades terão a dimensão de grandes problemas. A agonia me destrói um pouco a cada dia. Assim, através de mim a escuridão mantém o seu império”.

Questionei se o conhecimento era o meio adequado para acessarmos a luz. Ele franziu as sobrancelhas e ressaltou: “É importante, mas não basta. O conhecimento é um valioso instrumento de acesso ao autodescobrimento, movimento primordial à evolução e fundamental para alcançarmos a verdade que libertará da ignorância, geradora de todos os medos, conflitos e sofrimentos. Contudo, de nada valem o conhecimento e a verdade enquanto distantes do amor. Poderosas forças das trevas possuem enorme saber, mas seguem se valendo do mal como arma de domínio e subjugação. O amor é a ponte que conduz o saber até a luz. Por sua vez, o amor precisa da sabedoria para não se tornar presa fácil às armadilhas da maldade. As virtudes pautam o processo de evolução do amor em cada um de nós. São os pilares da ponte e guias da travessia”.

Ficamos em silêncio por algum tempo para que eu pudesse absorver aquelas ideias. Depois, de modo gentil, o homem disse que precisava ir. Tinha compromissos à espera. Era momento de eu partir. Agradeci a conversa, o chá e os biscoitos. Neste instante entrou um trovador no estabelecimento com um bandolim a tiracolo. O filósofo lhe deu uma moeda e pediu que tocasse uma música cuja melodia falasse a língua dos anjos. Disse para eu fechar os olhos. Os versos épicos do Bhagavad-Gita serviam de letra à cantiga. Aos poucos, o som e o poema desenharam uma mandala, como as usadas pelos hindus, em minha mente. Através dela, segui a viagem.   

Poema Setenta e Um

Saber que nada se sabe é poder.

Acreditar saber quando não sabe é um mal.

Conhecer a doença ajuda a evitar a doença.

O sábio não adoece porque trata o mal como mal.

5 comments

HEITOR CANDIDO DE SOUZA JUNIOR agosto 3, 2024 at 11:03 pm

Texto simplesmente brilhante……

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Maangoba agosto 9, 2024 at 8:26 pm

Que belo texto. Enriquecedor e complemento para quem segue a filosofia de viver um dia de cada vez. Quanta sabedoria em suas palavras. De todas as traduções do tao te ching, a sua é a que mais me identifico, Obrigado, obrigado, obrigado!

quem sabe um dia ainda poderemos subir à pedra bonita juntos e conversando sobre a vida.. eu adoraria.

até, meu amigo

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Maangoba agosto 9, 2024 at 8:28 pm

aos leitores dos textos do Yoskhaz: por que não nos encontrarmos? pensei em criar um grupo no whatsapp e reunirmos todos. o que acham? respondam aqui

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Maangoba agosto 14, 2024 at 6:24 pm

me adiantei e criei o grupo, caso alguém se interesse, o link está abaixo:

https://chat.whatsapp.com/KhOJ7VFC0lN93qNRSd7Q03

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Rhodolfo Diniz outubro 29, 2024 at 2:30 pm

Gratidão! 🙏🙏

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