Eu estava de volta à sala de meditação na casa de Li Tzu. Sentado e sem me mexer, demorei alguns minutos até me situar em mim mesmo. A consciência precisava acoplar ao corpo físico. O mestre taoísta me observava sem dizer palavra. Ainda sob os efeitos iniciais de encantamento e arrebatamento, comuns às experiências sensoriais que nos permitem vislumbrar um universo de possibilidades até então desconhecido, questionei se experimentos com plantas e substâncias alucinógenas nos permitiriam igual percepção. Ele foi taxativo: “Não existem atalhos no Caminho. Tais alterações químicas cerebrais não conduzem a nenhum avanço. Restringem-se a deformações da realidade, devaneios cognitivos e desequilíbrios emocionais sem qualquer serventia evolutiva. Apenas o conhecimento aliado à meditação e oração profundas, podem fazer emergir a essência sagrada que aguarda embrionária nas zonas abissais da consciência, aguçando a percepção e a sensibilidade em processo luminoso de autodescobrimento. Não existe outro jeito”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “Ainda assim, não basta. A aquisição de bússola e mapa não garante o destino ao viajante. É preciso realizar a viagem. Significa que terá de colocar em prática o conhecimento adquirido. Precisará de constantes ajustes na rota para conseguir se manter no rumo desejado. Não será fácil. Haverá momentos que pensará em desistir, que se sentirá cansado, desorientado, incapaz ou impotente. É justamente nestes instantes que necessitará do conhecimento adquirido, se apoiará na meditação e receberá auxilio através da oração. Quanto maior for a dificuldade superada, mais significativo será o trecho percorrido. O Tao ensina que o Caminho ajuda a quem não admite a ideia de abandonar a viagem. Busque e acharás; bata e a porta se abrirá. Não é isto que também foi prescrito no Sermão da Montanha?”. A pergunta era de simples retórica. Ele apenas mostrava a fina sincronia entre os textos sagrados com a verdade. Tudo que conduz à luz é verdade. Fora disto, quaisquer conclusões não passam de enganos disfarçados à serviço dos interesses de conveniência.
Comentei que eu aprendera muito nessa estranha jornada de aprendizado do Tao Te Ching pelo inconsciente coletivo. Um dos aspectos que mais me chamou atenção foi sobre a necessidade de desmanchar os sofrimentos. Do contrário, não haveria paz nem felicidade. Li Tzu balançou a cabeça em anuência e esclareceu: “Graduar-se na escola reencarnatória exige a capacidade de viver as experiências planetárias, através dos mil relacionamentos e acontecimentos oferecidos, com as delícias e problemas inerentes a cada um deles, sem que nenhum se torne fonte de sofrimento, porém, sejam mananciais de aprendizado. Somente assim encerraremos a travessia através da estrada do tempo”. Pedi para que falasse mais sobre o assunto. O mestre taoísta disse para eu me levantar com calma e o encontrasse na cozinha. Continuaríamos lá a conversa.
Ao entrar na cozinha, Li Tzu colocava ervas em infusão para o chá. O perfume dos jardim de bonsais invadia o ambiente tornando acolhedora a atmosfera da casa. Meia-noite, o gato preto que morava na casa, deitado em cima da geladeira, ronronava. Sentei-me à mesa e aguardei sem dizer palavra. Quando o chá ficou pronto, o mestre taoísta encheu as xícaras e se acomodou à minha frente, de modo que nossos olhos se encontrassem enquanto falávamos. Em seguida, questionei o motivo de termos tanta dificuldade para descontruir os nossos sofrimentos. Li Tzu explicou: “Primordialmente, porque não compreendemos o seu funcionamento. É impossível parar algo que não sabemos como nem porque se move. É preciso ir à origem da dor para entender o seu mecanismo. Do contrário, não conseguiremos desmanchar nenhum sofrimento”. Bebericou o chá e prosseguiu: “Por que tal situação me causa raiva ou me deixa triste? Qual a razão desse relacionamento me causar tanto desconforto? Por que esse sentimento ou ideia desagradável insiste em me acompanhar? Existe motivo para eu ter dificuldade em passar alguns dias sozinho?”. Fez uma pausa breve para que as perguntas servissem para impulsionar o meu raciocínio e acrescentou: “São questionamentos simples que quase todos já se fizeram. No entanto, muito poucos tiveram a coragem ou estavam prontos para lidar com as verdadeiras respostas. Pois, falam das nossas próprias dificuldades e fragilidades. O sofrimento de cada pessoa é de responsabilidade exclusiva dela, sendo incabível a transferência para terceiros, como nos é confortável acreditar e fazer. Há de haver simplicidade para afastar os enganos de conveniência e lidar com a verdade, quase nunca agradável ao orgulho e à vaidade. Não importa o que os outros fazem. O valor está em como reagimos. Elaborar adequadamente as experiências é parte fundamental à arte da evolução. O mal pertence a quem o praticou, cabendo ao executor as inevitáveis consequências. O Caminho é justo. Não deixar que o mal crie raízes no coração é de responsabilidade de quem cuida do próprio coração. Virtudes como a humildade, a compaixão, a assertividade e o perdão estarão sempre disponíveis à autodefesa, na manutenção do respeito por si e sem qualquer necessidade de contra-atacar. O Caminho é pedagógico”.
Eu quis saber como acontece ao evitarmos a verdade como elemento fundamental à solução das dores emocionais. Li Tzu pontuou: “Negar ou entorpecer a verdade somente posterga a cura e esgarça ainda mais o sofrimento. Enquanto subjugada por um ego primitivo e selvagem, a alma se manterá como quem vive dentro de uma caixa de dimensões menores ao seu tamanho. Com o potencial esmagado e olhar cerceado, o indivíduo se moverá através de contradições e enganos, enxergando a si, o mundo e a vida com lentes turvas ou de curto alcance. Entenderá o imediato como se fosse indispensável, confundirá aparência com essência. Ater-se-á às sensações primárias, valores rasos e interesses secundários. Será direcionado a escolhas que estimulam e produzem o desequilíbrio. Avolumará o sofrimento ao invés de encontrar a cura”. Fez uma pausa antes de concluir: “Os textos sagrados ensinam sobre a necessidade de tirar a alma da caixa que a esmaga e impede que assuma o controle das ações. Só o ego, quando dotado de humildade e autocompaixão e, assim, capaz de reconhecer a origem e a razão das fragilidades causadoras do sofrimento, poderá fazer o correto movimento de redenção. A libertação ocorrerá através da própria reconstrução, tendo alma e ego alinhados sob um mesmo propósito, movidos pelos trilhos revolucionários da verdade e das virtudes. Todos querem a paz e a felicidade. Trata-se de um desejo sincero das multidões. Contudo, procuram onde nunca encontrarão, erguem prédios desprovidos de alicerces, colidem por andar na contramão da verdade e, porquanto, do amor. Pegam quando era preciso entregar, confundem dignidade com orgulho, ficam no lugar de seguir, aprisionam por temer a liberdade. Escrevem as cartas que não gostariam de ler”.
Nada mais foi dito. Nem precisava. Bebi o chá sem dizer palavra. Eu entendi o que o Tao Te Ching me oferecia: um elixir de cura; um mapa para viajar com leveza e suavidade pela estrada do tempo; mecanismos de equilíbrio e força aos movimentos; o poder sobre a minha própria vida, sem mais ficar à deriva das escolhas alheias, da imprevisibilidade dos acontecimentos ou das interferências indevidas. Não era pouco. Como se adivinhasse os meus pensamentos, o mestre taoísta lembrou: “Agora é contigo. Cada mandala ofereceu um portal com os respectivos aprendizados. Toda face tem uma contraface, toda conquista traz uma responsabilidade. O reverso da mandala exige a indispensável ação correspondente”. Era hora de voltar para casa. Uma angular transformação me aguardava. Quem retornava era um homem com um olhar diferente daquele que ali chegara. Agradeci a oportunidade e embarquei no ônibus da tarde. Mas eu precisaria voltar muitas vezes. Teoria e prática necessitam de constantes ajustes. O aprendizado sobre os textos sagrados não tem fim.
2 comments
Só vim aqui agradecer o conhecimento, e em especial que finalmente adquiri o livro a Caravana e gostaria de saber se todos os textos do TAO TE CHING estão disponíveis em livro tb? E qual seria?
Salve, Bruno!!
Obrigado por acompanhar a nossa jornada!
O Tao Te Ching foi divido em 2 volumes. O volume 1, que vai até o poema 40, já está disponível no site da editora http://www.significado.xyz
O volume 2, que encerra a saga no poema 81, estará disponível no próximo mês.