Eu estava no mosteiro para mais um período de estudos. Havia me inscrito para o curso sobre o Caibalion, a obra clássica do Hermetismo. Como já fazia algum tempo que não era oferecido, a procura foi grande. Com a necessidade de remanejar alguns alunos em razão da grande quantidade de inscritos, me deslocaram para a turma que estudaria o Sermão da Montanha. Fiquei inconformado. Além de já ter feito este curso, aguardava por aquele havia anos. No mais, tinha sido preterido por integrantes mais novos da Ordem. Não considerei justo. Quem estava responsável pela coordenação de cursos era o Benjamim. O procurei para expor as minha razões. Fui recebido com polidez pelo monge. Ao final dos meus argumentos, ele me fez recordar como era árdua a função que exercia e como era impossível agradar a todos. Havia poucos anos, quando eu ocupava aquele cargo administrativo, tinha feito algo parecido. Por motivo semelhante, o transferira do curso sobre Ética, o livro de Espinosa, ao qual havia se inscrito, e o coloquei para estudar os textos de Sêneca, Marco Aurélio, entre outros filósofos estoicos. Ponderei que na época a minha decisão fora pautada na necessidade manter uma sequência lógica a orientar o aprendizado, uma vez que Espinosa bebera na fonte do estoicismo. Sem conseguir disfarçar o prazer que sentia, Benjamim argumentou que o Sermão tinha um conteúdo que, por causa da sua profundidade, permitia várias camadas de interpretação. A cada período existencial a leitura seria diferente. Todos precisavam retornar muitas vezes a esse texto sagrado. Embora houvesse verdade naquele fundamento, não havia qualquer traço de boa intenção em seu gesto. O sentimento que o movia era a vingança. Calei-me para apagar o pavio. No entanto, aquela situação me deixara mal.
Qualquer instituição se sustenta sobre os pilares da ordem, da disciplina e do respeito. Do contrário, a confusão, os conflitos e o caos instalam um império. Então, restarão as ruínas como legado da nossa incapacidade de lidar com as diferenças, no inestimável exercício de paciência e tolerância para uma convivência pacífica e harmoniosa. A renúncia, a valiosa virtude de abdicar de algo importante em prol de um bem maior, exige profunda compreensão sobre o significado da vida, além de inegável grandeza existencial. Renunciar não é apenas ceder. Isto os indecisos, inseguros e medrosos fazem com facilidade. A autêntica renúncia somente se completa quando adquirimos a plena capacidade de aferir os bens em questão, entendendo aqueles que iremos abdicar para salvaguardar outros de maior valor espiritual. Há de haver coragem, generosidade e sinceridade, sem restar espaço para egoístas, fugitivos e covardes. Existem vários outros elementos que precisam constar para o devido equilíbrio dessa delicada balança intrínseca. Por exemplo, não podemos esquecer que os limites são indispensáveis para impedir excessos, abusos e subjugação. A dignidade não é uma concessão alheia, mas uma construção interna. O entendimento da exata calibragem dessa balança pode não caber em uma existência. Eu tentava elaborar essas ideias em uma mesma equação quando fui surpreendido por outra situação com o Benjamim. Ao final do período passado, eu me comprometera a apresentar no ano seguinte uma palestra sobre intuição e inspiração – a voz da alma e a voz do Alto. A codificação Kardequeana e os livros psicografados por Chico Xavier e Pietro Ubaldi tinham sido fontes preciosas. Dedicara os últimos meses a uma pesquisa meticulosa sobre o tema. Aprendera bastante sobre o assunto e estava animado para compartilhar esse conhecimento com os demais monges. As atividades no mosteiro eram divididas em cursos, palestras, debates e meditação, distribuídas durante as quatro semanas empenhadas aos estudos. Para minha surpresa, fui comunicado pelo Benjamim que naquele ano realizariam uma experiência, dedicando mais tempo à meditação. Assim, a minha palestra passaria para o próximo ano. Embora frustrado por ser impedido de fazer algo que me empolgava, aceitei bem as novas diretrizes capitaneadas pelo Benjamim. O sentimento mudou ao saber que das mais de vinte de palestras programadas, apenas a minha tinha sido cancelada naquele período. O procurei na tentativa de esclarecer o assunto. Os seus argumentos eram que por eu ser o monge mais antigo entre os palestrantes, estaria em melhores condições para compreender e exercitar a renúncia. Disse contar com a minha colaboração. Ponderei que na programação sempre constara cerca de sessenta horas dedicadas à meditação. Acrescentar duas horas àquelas tantas em pouco ou nada mudaria a rotina ou alteraria os benefícios. De outro lado, o conhecimento negado se mostraria prejudicial. Não fazia sentido, sustentei. Ele apenas respondeu que a decisão estava tomada e se afastou.
Fiquei ainda pior. Uma tempestade atravessava pela minha mente, deixando as ideias embaçadas e as emoções alteradas. Cogitei formalizar uma reclamação ao Velho, o prior da Ordem. Tencionei levar a questão à assembleia dos monges, órgão máximo da instituição. Notadamente era um caso de perseguição, uma séria infração aos nossos estatutos. Considerei a hipótese de o convidar para uma conversa na tentativa de dirimir a desavença. Contudo, ele já se mostrara intransigente. O revide tem a nítida intenção de acerto de contas ou demonstração de força e poder no sentido mais vil das palavras. Benjamim ainda ocuparia o cargo por mais dois anos. Receava que nesse período eu fosse cerceado dos meus principais interesses de aprendizado. Eu precisava reagir. Por condicionamento ancestral, quando atacados, fugimos ou guerreamos”.
“Que tal começar assistindo as minhas aulas?”, como se conseguisse adivinhar pensamentos, disse o Velho ao passar por mim no corredor. “A aula inicial do curso sobre o Sermão da Montanha começará em cinco minutos. Não se atrase”, avisou. Surpreendido, comentei que quem ministraria aquele estudo era o Heitor, o monge argentino, psicanalista, escritor e grande amigo. O Velho retificou: “Ele se atrasará alguns dias por causa de um congresso em Buenos Aires”, e seguiu rumo à sala de aula onde os alunos o aguardavam. Fui atrás.
Todos sentados, o bom monge começou: “Todas as vezes a que me refiro ao Sermão da Montanha, gosto de citar as palavras de um sábio hindu, Mahatma Gandhi: Ainda que no absurdo de uma catástrofe, se toda a literatura se perdesse, restando apenas o Sermão da Montanha, a humanidade não estaria perdida”. Fez uma pausa antes de continuar: “Nele estão resumidos os principais ensinamentos para uma vida luminosa. Todo aquele que agregar em si as lições ali contidas terá se tornado um mestre”. Arqueou os lábios em singelo sorriso e arrematou em doce provocação: “São apenas quatro ou cinco páginas”. Em seguida, explicou que, como substituiria o Heitor por apenas uma ou duas aulas, pinçara alguns ensinamentos dos vários contidos no texto sagrado, sem nenhuma ordem de importância ou interesse: “Obedeci a minha intuição. Tão e somente”, explicou o bom monge. Fez uma pausa antes de citar um pequeno trecho do Sermão: “Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, ande dois mil”. Em seguida, quis saber a opinião dos alunos. Várias teorias foram tecidas. Durante muitos minutos a turma debateu com fervor sem chegar a nenhuma conclusão. Sentado, o bom monge, ouvia com atenção, encantado pela aplicação de todos em encontrar o melhor significado contido na mensagem. Embora eu já tivesse realizado o curso, não conseguia me lembrar do que fora dito na época. Talvez por desatenção, talvez por ainda não estar pronto para compreender a importância do ensinamento oferecido. Naquele dia, ao escutar o breve trecho, tive a nítida sensação que dialogava com a situação que me colocara à beira de um conflito com o Benjamim. Apenas não conseguia alcançar a necessária interpretação. Era como se eu tivesse encontrado uma porta sem ainda saber como a abriria nem onde me levaria.
Aos poucos as vozes desapareceram dando vez ao silêncio. Não restavam mais argumentos ou comentários. O Velho se levantou e disse com seu tom de voz tranquilo e cadenciado: “Se alguém o forçar a caminhar mil passos com ele, caminhe dois mil”, repetiu o trecho do texto sagrado para iniciar a explicação: “Em síntese, quando encontrar alguém que, perdido nas próprias incompreensões, o provocar, não se recuse a caminhar. Ande por ele e por você”. Ouvíamos com atenção. O bom monge prosseguiu: “Em outras palavras, faça a sua parte na compreensão de que ele não entende a genuína origem dos sentimentos que o envolvem, interferem e erguem as suas razões. Perdido em si mesmo, desconhece as emoções que manipulam e inebriam o raciocínio. Movido pelas incompreensões, acredita que ao transferir a responsabilidade pelo sofrimento que lhe atordoa conseguirá ficar bem. Ledo engano. As portas de saída dos labirintos existenciais nunca abrem para fora”.
Fez uma pausa antes de ressalvar: “Não esqueçam que, não raro, somos nós a obrigar alguém a andar mil passos conosco. As feridas emocionais são experiências mal elaboradas, jamais objetos de mobília passíveis de serem trocados de lugar, tampouco esquecidos. Podemos fingir que não existem ou que os jogamos fora. Em verdade, apenas os escondemos em algum canto escuro da casa. Continuam morando conosco e, assim, interferem de modo a termos dificuldade de identificar a origem da ideia ou sentimento determinante à atração ou repulsa que nos identifica e define decisões. Conceitos de certo e errado sofrem interferências indevidas e inconscientes. Tecemos argumentos tortuosos para justificar nossos quereres, gostos e sabores. Fazemos o mal acreditando praticar o bem. Somos mais o nosso inconsciente do que conseguimos imaginar. Encontrar a cura é viajar ao âmago de si mesmo para reprocessar fatos dolorosos, como um matemático recalcula uma antiga equação, utilizando, dessa vez, inusitados elementos. Se um astrônomo substituir as lentes embaçadas por outras com maior transparência, para tornar a observar as mesmas estrelas, encontrará um resultado diferente”.
Franziu as sobrancelhas e alertou: “Não existe cura fora do perdão. Ao contrário do que muitos acreditam, entender a incapacidade alheia, quando desacompanhada de outros elementos, não conduz ao perdão, mas a soberba. Perdoar apenas se torna possível com a aceitação das próprias imperfeições, erros, enganos e incapacidades. O perdão é um ato de humildade, jamais de vaidade. Estarmos prontos a não exigir de ninguém a perfeição que não temos a oferecer é o movimento inicial. Um discurso fácil para uma prática dificílima. Somos falíveis, mas não aceitamos nada menos do que a infalibilidade das pessoas ao se relacionarem conosco”. Olhou para a turma com seriedade e fez uma pergunta de simples retórica: “Quanto já erramos sem tolerar que errem com a gente?”. Todos sabíamos a exata resposta.
Em seguida, seguiu em direção ao cerne da lição: “Ficamos mal e brigamos quando não nos dão o que nos falta. Quando deixam de entregar o que já temos, nos mantemos bem. Não é assim que acontece?”. Arqueou os lábios em sorriso provocador e concluiu: “Ao se sentir mal com a atitude de alguém, não se atenha ao que a pessoa deixou de entregar. Compreenda o que ainda resta construir em si mesmo. Não há outro caminho rumo à liberdade”.
Fez uma breve pausa para que a turma alocasse as novas ideias nas prateleiras da mente e citou um provérbio popular: “Cada um dá o que tem”. E questionou: “O que há de raso e profundo na leitura deste axioma?”. Um dos monges disse que devíamos ser tolerantes com as dificuldades alheias. O Velho sorriu e disse: “Isto é o que há de raso na interpretação do conceito. Embora valiosa, sem o respaldo de outras virtudes, a tolerância pode contribuir para mascarar a verdade. Ao servir de argumento para escapar da busca interior em prol do próprio aperfeiçoamento, denotará ignorância, covardia e fuga. Colocar-se em plano superior revela uma arrogância vulgar. Negar-se a reagir recairia no deplorável comodismo. Seria possível uma interpretação mais aperfeiçoada?”. O mesmo aluno refez o raciocínio, sugerindo que a fricção comum aos relacionamentos não indica o que deixaram de nos entregar, mas o conteúdo pessoal ainda não acrescido à bagagem”. O Velho tornou a sorrir, disse sim com a cabeça e explicou: “A questão principal não é o que o outro fez de mal ou errado. O quilate da reação ilustra o atual desenvolvimento espiritual. Ao sermos provocados, reagimos como quem aceita o convite ao conflito proposto ou compreende o desafio oferecido. Em síntese, serei eu contra alguém ou eu diante de mim mesmo”.
Observou a turma por instantes e concluiu: “Ao me recusar a andar os mil passos, aceito o conflito e não saio do lugar. Na resiliência de percorrer dois mil passos voluntariamente, vou ao encontro do que me falta. O que me desestabiliza é o que desconheço em mim. No conflito, o desequilíbrio se agiganta. Enquanto no desafio da busca interna encontrarei a perfeita harmonia da balança emocional. Somente quem teve a casa destruída por uma tempestade compreende a importância de uma reconstrução sólida, alicerçada em novos e seguros fundamentos. Ninguém destrói ninguém. Desabamos por nos erguer sem os devidos pilares de força e equilíbrio, amor e sabedoria, virtudes e verdade. O caos se instala na ignorância de quem somos e se manifesta na incoerência de movimentos erráticos pela nossa incapacidade de identificar o sentimento que o comandou na origem. É quando o bem e o mal se confundem em nós. Cada um mora em si mesmo. Perdemos nos conflitos, não importa o resultado; empobrecemos ao enriquecer em mágoas. Cada um dá o que tem não fala sobre a atitude dos outros, mas dialoga com as nossas reações. Nisto se traduz os dois mil passos. Mil passos preciso andar para encontrar com a minhas sombras; outros mil serão necessários para as transformar em virtudes”.
Esperou um breve momento para que os alunos metabolisassem aquelas ideias e finalizou: “Negue-se ao duelo, mas agradeça a oportunidade. Aceite a provocação como um desafio e caminhe ao encontro do desconhecido em si mesmo. Agregar em si uma nova virtude germinada a partir de uma antiga sombra pessoal ilustra a excelência na arte da reação. Tudo que nos abala é o que nos falta; o que nos falta é a parte ainda não conhecida e fragmentada à nossa identidade. Somente assim haverá luz suficiente para distinguir o bem do mal. Não me refiro ao mal que conhecemos, mas aquele que nos confunde como se fosse o próprio bem”. Uma monja pediu que citasse um exemplo de ocorrência comum na qual temos dificuldade para discernir entre o bem e o mal. O Velho respondeu de imediato: “Quando o orgulho se mascara de dignidade para impedir o florescimento do amor indispensável ao perdão”.
O sino do mosteiro avisou que o almoço estava servido. Fim da aula. Ao chegar na cantina, uma grata surpresa. Heitor havia conseguido adiantar o voo. Ele estava sentado sozinho à mesa, junto às janelas com vista às montanhas. Trocamos um forte e alegre abraço. Sentei-me ao seu lado. Contei sobre o ocorrido com o Benjamim. Comentei da aguçada intuição do Velho em pinçar um pequenino trecho do Sermão da Montanha, abordando o exato contexto da situação que me aborrecia. Afirmei que me negaria ao duelo. Estava disposto a aceitar o desafio. Com a sua vasta experiência em psicanálise, Heitor me observou por alguns instantes, anuiu para em seguida questionar: “Sem dúvida, a melhor escolha. Contudo, na prática, como pretende agir?”. Respondi que ainda não tinha pensado nisso. Em verdade, eu não sabia, confessei. O monge argentino me lembrou: “Os deslocamentos pelo mundo precisam estar fundamentados em movimentos intrínsecos anteriores. Do contrário, serão vazios ou restarão equivocados”.
Pedi para que me ajudasse. Heitor ponderou: “Não posso apontar a solução. A prova é sua. A evolução tem como pressuposto o aprendizado e a efetiva transformação. Encontrar a porta e a abrir com as próprias mãos é parte essencial à arte de viver. Aplicar a teoria à ação é fazer o conhecimento se tornar sabedoria. Isso ninguém pode fazer por ninguém. Seria desperdiçar uma maravilhosa oportunidade de crescimento. Essa é a razão de existir dos problemas e das dificuldades”. Almoçamos sem dizer palavra por alguns minutos. Eu precisava ajustar as ideias como quem faz um roteiro de viagem. Rota e destino. Na necessidade de obter mais clareza, questionei ao monge qual seria a fronteira entre o duelo e o desafio. Ele explicou: “Quando entro na frequência do duelo, estaciono onde o outro está estagnado nas próprias incompreensões. Ao me deixar conduzir por onde ele quer me levar, sou manipulado e dominado. Ele faz de mim o que quer. Vivo dias turbulentos, assolados em agonia. Não vou a lugar nenhum. Assim são os conflitos”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “De outra face, quando me permito a frequência do desafio, não deixo que a dificuldade me impeça de seguir em frente. No entanto, não faço a viagem dos outros. Decido os lugares aonde vou. Não me refiro a viajar mundo afora, mas universo adentro. Quando a atitude de alguém me desestabiliza, tenho a oportunidade de rever gavetas emocionais bagunçadas nos armários das memórias refutadas no abandono de um dia qualquer. O que me desequilibra não é o que fazem contra mim, mas o que está mal arrumado em mim”. Deu de ombros e comentou: “Agradeça ao Benjamim. Sem ele não seria possível conhecer e conquistar um pouco mais de si mesmo”. Sorriu e complementou: “Claro, caso você consiga”.
Tínhamos a tarde para meditação e palestra. Abdiquei das atividades para uma inadiável reflexão. Sentei-me em uma das poltronas da varanda com vista para o vale. Não me levantaria sem antes organizar ideias e sentimentos em seus devidos lugares, de modo a me impulsionar ao invés de me limitar. As pessoas têm sobre nós apenas o poder que concedemos a elas. Nem mais nem menos. Em qualquer situação, é outorgar poder demais a quem quer que seja. Permitir é uma escolha. Negar também. A decisão – e, porquanto, o destino – sempre estará em minhas mãos. Abdicar do duelo, embora fosse aparentemente fácil, pois, bastava não contra-atacar o Benjamim, não era suficiente. Não explodir em conflito não poderia significar entrar em processo de implosão emocional devido a irritação surgida pela contrariedade aos meus desejos. Emoções densas mal elaboradas causam sérias patologias ao corpo e a alma.
Entendi que o início dessa jornada consistia em saber o motivo de tanta dificuldade todas as vezes que mundo me dizia não. Você está sendo vítima de perseguição, gritou uma voz. É muita injustiça, reforçou outra. Por me induzirem ao duelo, afastei estas vozes. Deixe de exagero, ponderou alguém em mim. Você não foi lançado às galés, nem condenado ao desterro. No mais, lembre que fez algo parecido com o Benjamim sem o consultar. Ele também se sentiu prejudicado. Todos têm os seus motivos. De outra face, veja o quanto está aprendendo ao refazer o curso sobre o Sermão da Montanha. Neste momento, era o que você precisava. Agradeça, aconselhou. Quanto a palestra adiada, não esqueça de fazer uso do conhecimento adquirido na pesquisa realizada. Naquele instante me dei conta que várias vozes dialogavam em mim e comigo. As que me incitavam à revolta vinham das minhas sombras. As que me estimulavam à liberdade eram provenientes da intuição e da inspiração. A voz da alma e a voz do Alto. Fui envolvido por um sincero sentimento de gratidão. O estudo realizado não restara desperdiçado; ao contrário, me servia de ferramenta redentora. A redenção é a conquista da liberdade através da regeneração do sentir e do pensar, do ser e do viver. Percebi que apesar dos obstáculos opostos por Benjamim, nada tinha sido perdido. Tampouco me impedido de caminhar. Os ganhos eram inegáveis. Se os seus olhos forem bons toda a sua vida será luz, lembrei de outro trecho do Sermão da Montanha. Os olhos mencionados no texto sagrado são as lentes da consciência. Ao substitui-las por outras mais claras e aperfeiçoadas, o astrônomo poderá melhor se orientar pelas estrelas na estrada da evolução.
Havia mais. A dificuldade em lidar com o não revelava fortes traços de orgulho e vaidade mal elaborados em mim. Vieram algumas lembranças de situações vividas anteriormente. Fazer com que o passado se torne uma escola ou uma prisão será sempre uma escolha angular. Aquela experiência me permitiria refazer a equação da vida com outros elementos e, se eu tivesse um mínimo de conhecimento sobre a matemática sagrada, chegaria a perfeita solução ao encontrar algumas virtudes ainda adormecidas em meu âmago. Humildade e resiliência. A humildade é a virtude de aceitar o que não se sabe para que haja espaço para incessantes aprendizados. Ao contrário do comodismo que se caracteriza pela ausência de reação, a resiliência se completa na busca e adaptação a um novo e aprimorado movimento interno, na percepção que o modelo antigo não mais funciona.
Eu avançava, mas ainda faltava uma porta. Demorei um tempo que não sei precisar para entender que ao ouvir o não de alguém, o inconsciente me transportava a várias situações de rejeição sofridas ao longo da existência. Foram muitas. O orgulho surgira na tentativa de eu me proteger. No entanto, como a maquiagem, o orgulho é uma fina camada de pó usada para esconder imperfeições e fragilidades. Desfaz-se com lágrimas e tardes chuvosas. Por que aquele modelo de comportamento se mostrava insuficiente para me sustentar emocionalmente? Por que não me fornecia as soluções luminosas para eu superar as dificuldades apresentadas? Tudo que me desestrutura revela algo mal construído em mim. Faltava-me amor-próprio. As inúmeras rejeições me tornaram dependente da aprovação alheia. Havia urgência em me libertar deste comportamento destrutivo. Sem me dar conta, eu ansiava pela validação de outras pessoas para me sentir bem. Quando não me davam, eu desabava. Ora em tristeza, ora em irritação. Era inconsciente. Eu era maltratado porque não sabia lidar com as minhas emoções. Apenas os fantoches se erguem e se movimentam por intermédio das mãos do mundo. Opiniões vendem jornais, jamais constroem indivíduos. Fazia-se necessário reconhecer os meus dons, talentos e realizações, sem que nisto houvesse qualquer traço de vaidade. Um ato de confiança, respeito e autoestima. Ninguém poderia fazer isso por mim. Era eu comigo mesmo. Ao lado das virtudes e das verdades, os dons e as conquistas internas servem para erguer os alicerces da Grande Arte, a obra em si mesmo. Eu estava diante de uma maravilhosa oportunidade para despertar e inserir novos conhecimentos e práticas à bagagem. Usando-as como pilares de autossustentação, eu evitaria outros desequilíbrios por motivos semelhantes. Quando pensei que havia perdido, enriquecera.
Uma lágrima rebelde escapou quando consegui pacificar os acontecimentos em mim. A casa estava arrumada. Ao menos por ora; depois viriam outros desafios existenciais. Naquela noite dormi em paz. Vale salientar que nada mudara no mosteiro. Tudo se transformara dentro de mim. É indescritível a sensação de equilíbrio e força que nos envolve quando encontramos um pouco mais de quem somos. Benjamim não era mais um inimigo, mas alguém que me levara a ir além de quem eu era. Graças a ele pude aprender um pouco mais sobre como fluir com suavidade e leveza pela vida. Sem conflitos nem mágoas. Um importante passo na rota da liberdade. Abençoados sejam todos duelos transformados em desafios. Não há alavancas melhores a nos impulsionar rumo à luz.
2 comments
Gratidão, o texto foi de grande ajuda e ensinamentos para o momento em que estou passando
Gratidão! Texto muito bonito e reflexivo! Lerei uma segunda vez para melhor aprendizado! 🙏🙏