MANUSCRITOS VI

O desafio

Tinha sido uma existência atribulada. Eu fui uma criança muito amada. Criado em um bairro operário do Rio de Janeiro, sem acesso a nenhum luxo ou mordomia, nunca tive do que me queixar. Não me faltou nada do que era verdadeiramente essencial. Embora houvesse evidentes dificuldades financeiras, havia uma casa, comida à mesa e eu estudava em uma boa escola. O mais importante, cresci me sentindo amado pelos meus pais. Cada um, ao seu modo, me passava a clara sensação de segurança, cuidado e carinho para o meu melhor desenvolvimento. Até que em determinado momento tudo desandou. Eles se separaram e cada qual foi viver as suas aventuras amorosas em busca daquilo que entendiam precisar. Talvez eles não estivessem prontos para compreender todos os aspectos que envolviam uma separação quando o casal possui filhos. Meus irmãos e eu, continuávamos tendo uma casa e comida à mesa, mas não éramos ou não tínhamos mais uma família. Uma experiência que, de alguma maneira, o meu coração sentia, mas a mente não era capaz de fazer a exata leitura. Naquele momento, eu iniciava o ano preparatório para as provas do vestibular, decisivo, à época, para ter acesso à universidade. Embora eu não tivesse a menor ideia de qual carreira abraçar, desconsiderava a hipótese de não cursar uma faculdade.

Em verdade, decisivo são todos e quaisquer dias. Cada escolha representa uma porta, entre várias, que decidimos atravessar. As demais, nunca saberemos aonde nos conduziriam. Perguntar aonde nos levariam é um exercício típico dos tolos, pelo sofrimento desnecessário que causará. É indispensável entender que o dia de hoje é a matéria-prima disponível para a confecção da obra da vida. Cada escolha equivale a outra não-escolha; ao decidir por um caminho, significa que outra rota foi descartada. Aonde nos levaria? Nunca saberemos. 

Inútil fugir das escolhas. Não escolher também vale por uma escolha. Talvez a pior delas, aquela na qual você abdica do seu maior poder para externar o seu jeito de ser e de viver a verdade no limite como já a alcança, como modo de construir a própria realidade. Somente elas, as escolhas, nos permitem aprender com os erros para nos tornarmos pessoas diferentes e melhores a cada dia. Quem não escolhe, escolhe por não caminhar. 

É comum, em diversos momentos, que não se saiba o que se quer ou para qual direção seguir. Nestas horas, um método seguro é se posicionar através daquilo que sabemos não mais querer. A convicção por um não quereré o início do entendimento para um novo querer.

Ninguém está mais desorientado do que aquele indivíduo que não se aceita perdido. Naquele ano, eu ia ao colégio, registrava presença, pulava o muro dos fundos e, acompanhado de alguns colegas, partíamos para a praia ou para passear na Floresta da Tijuca. Voltávamos no horário de encerramento das aulas. Na prática, eu tinha abandonado a escola. Meus pais nada perceberam, até porque não mais prestavam atenção. Não s            e trata de uma queixa; eles fizeram da melhor maneira que sabiam ou podiam. Tenho como princípio que tudo que nos acontece é para o bem, ainda que demore algum tempo para entendermos a sabedoria e o amor da vida.

Fiz as provas do vestibular com o conteúdo aprendido nos anos anteriores. Consegui entrar para a faculdade, mas não fiz o curso que queria. Até porque não tinha a menor ideia de qual seria. Em parte, havia uma escolha; em outra, inexistia qualquer escolha. Sim, tinha entrado para a universidade, uma decisão consciente. Porém, tinha perdido a noção do que faria comigo mesmo e com a vida que eu tinha nas mãos. A minha vida. Era uma boa faculdade que me habilitaria a um futuro cujo presente eu singrava sem leme, mapa e bússola. Viver à deriva representa uma escolha por intermédio de uma não-escolha. Como em um túnel que você não sabe onde termina, eu começava a criar um problema que eu não tinha noção das consequências nem a qual lugar me levaria. Algo típico em quem se perdeu de si mesmo.  

Como é comum nesses momentos, quando nossos princípios, valores e sonhos ainda não estão claros e amadurecidos, nos deixamos conduzir pelos critérios condicionadores do mundo e aderimos ao fluxo dominante na ilusão de saber o que desconhecemos. Eu alimentava desejos de fama, poder e fortuna, tão comum aos egos imaturos, nas suas mais diversas formas e espécies. Havia a ilusão que, se esses desejos se realizassem, a vida estava ganha, teria havido sucesso e vitória. Ledo engano. Como um mestre de excelência, a vida permite que você aprenda com os próprios erros para se certificar dos equívocos neles existentes. Então, amadurecemos. No meu caso, alguns desses desejos aconteceram até de maneira bem rápida, mas também foram consumidos em tempo ainda mais veloz. A ansiedade aumentou porque o vazio existencial cresceu em igual proporção. Como ainda não tinha aprendido, continuei querendo mais dos mesmos. Os erros se multiplicaram por cem. Por mil. Desejos desse naipe, quando chegam são deliciosos – como diria o poeta: ah, como desejo um desejo! –, por nos dar a falsa sensação de estarmos no topo do mundo. No entanto, possuem curto alcance. Por serem de pouca ou nenhuma profundidade, se esgotam em breve tempo. Para retirar o gosto amargo que resta quando os aplausos desaparecem, como uma droga vulgar e viciante, queremos mais e mais. Têm a duração de um suspiro e muito pouco agregam; não raro, nada acrescem. Bem mais grave, se não percebermos a tempo, nos arriscamos a abrir mão de princípios insofismáveis, como a liberdade e a dignidade. 

Uma das causas da ansiedade é a busca irrefreável pelos desejos rasos de fama, poder e fortuna. Passamos a querer desesperadamente algo que muito pouco depende da nossa capacidade de conquista, esperamos por um resultado que está atrelado às circunstâncias externas e, portanto, em nada depende de nós. A agonia da espera se chama ansiedade. Como demoram ou nunca chegam, a ansiedade se torna uma das portas de entrada da depressão, da amargura ou da agressividade. A amargura acinzenta as cores e furta a beleza da vida. A depressão se manifesta em tristeza, vitimismo e transferência de responsabilidade. A agressividade se expressa em mau humor, impaciência, irritação ou, até mesmo, atos mais danosos. São portas que escolhemos atravessar sem entender a escolha que fazemos, tampouco nos damos conta de como chegamos a esse lugar sombrio.

Conflitos são maratonas indesejáveis e cansativas. Odiamos os nossos próprios conflitos. Rezamos para que não aconteçam, porém, são eles que movem a nossa evolução, porque nos conduzem aos pilares das transformações – quando admitimos para nós mesmos quem não mais queremos ser. Quando consolido a verdade expandida, altero a realidade em definitivo. 

Então, de modo consciente, atravesso um portal de Luz.

Na raiz de todos os conflitos está a incompreensão. Seja quanto a si mesmo, seja em relação as pessoas ao redor. De ambos os participantes, simultânea e necessariamente. Quando uma das partes envolvidas tem a questão já iluminada em si, o embate ficará restrito àquele que ainda não compreende a razão de tantos problemas e das recorrentes dificuldades. Eleamaldiçoará o mundo e se mostrará decepcionado com a humanidade. 

No caso, esse eleera eu.

Terminei a faculdade, trabalhei alguns anos e troquei de profissão. Casei-me, descasei, casei-me de novo e tornei a descasar. Sem me dar conta, deixava um rastro com muitos equívocos e mil confusões. Um pouco mais, se eu for honesto. Quando brigamos muito significa que nos conhecemos pouco. Um dos motivos é porque projetamos nos outros aquilo que nos falta. Ansiamos por algo que nos complete, sem saber que ninguém será capaz de adicionar as partes que nos faltam. Ninguém completa ninguém, este é o mito de Frankenstein. Um indivíduo que deseja ser inteiro, embora seja composto e animado por partes que não são suas. Não é ninguém porque não consegue ser ele mesmo. São partes inadequadas para preencher um abismo interno que não cessa de aumentar. De modo similar, ocupar o vazio existencial através da procura desenfreada por fama, poder e fortuna significará a vã tentativa de integralizar uma figura com as peças de outro quebra-cabeças. Como no romance de terror gótico, a imagem disforme de si mesmo, enquanto não aceita para que seja refeita, tornam atormentados os dias da criatura à procura do criador dos seus problemas. Ignora, ou esquece, que cada pessoa é a criatura da criação de si mesma. Logo, é também a responsável. 

Sim, em algum momento me perdi de mim mesmo, sendo desde sempre quem eu nunca fui. Tornei-me locatário de um brilho fugaz por desconhecer o poder da verdadeira luz que se apagara quando atravessei uma porta, sem me dar conta para onde seguia, na distração de um dia qualquer. Neste momento, passei a buscar nos outros e no mundo aquilo que não havia em mim. Exigia da humanidade um produto que não existe nas prateleiras de nenhum mercado: todas as faces de quem sou e as infinitas possibilidades de quem posso ser. Algo que ninguém poderia me entregar, não por má vontade, mas por autêntica incapacidade. Como eu não sabia exatamente o que buscava, insistia em atravessar portas erradas. Assim, me tornei um grande fabricante de problemas. Até o dia que entendi que estava onde eu mesmo havia me colocado. Nem mais nem menos. Por ser a razão dos meus conflitos, na perfeita proporção das virtudes que desconhecia, havia me tornado mais um dos incontáveis Frankensteins urbanos em busca do meu criador, sem me dar conta que eu era a minha própria criação. Sempre serei.

Sofrer cansa pelo peso que nos faz carregar. Eu estava muito cansado. Naquele dia, vagava pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro indo para algum lugar que, como os demais que conhecia, não me levaria aonde eu precisava estar. Andava pela Rua Uruguaiana, próximo à estação do metrô, quando ao passar em frente a Igreja de N.S. do Rosário e de São Benedito, como se houvesse um poderoso imã, me senti atraído por uma igreja muito simples em suas formas e ornamentos, sem qualquer dos belíssimos requintes existentes nas muitas igrejas cariocas do período colonial localizadas nas redondezas. Lembrei que, quando criança, a minha avó me levara algumas vezes para assistir à missa de domingo ali, na Igreja das Santas Almas, como era popularmente conhecida. Hesitei entre o chamadoe os afazeres. Decidi por atravessar aquela porta. Impossível não se encantar com a maravilhosa energia do local. Uma estranha leveza, havia muito esquecida, me envolveu. Naquele momento, o mundo nem o tempo não mais existiam. Era apenas eu comigo mesmo. Foi a primeira vez.

Não havia missa. Algumas poucas pessoas, sentadas nos toscos bancos de madeira, em silêncio, faziam as suas orações. Sentei-me em um canto onde não havia ninguém. Tentei rezar, mas não me lembrava de nenhuma oração. Dei-me conta que desaprendera todas as preces. Foi quando entendi e, mais importante, admitique estava perdido. Então, chorei como não lembrava de ter chorado antes. Era um pranto discreto, porém sentido e sincero. Uma poderosa prece. Eu não aguentava mais um sofrimento que, de tão grande, não cabia mais em mim. Eu estava prestes a implodir. Ou a explodir. Aquelas lágrimas eram os resquícios das forças finais que se esgotavam. Ao meu jeito, sem ter a exata noção na época, eu dava o passo primordial para mudar a rota da minha viagem. Sem me dar conta, eu me apresentava em outra plataforma de embarque; eu queria um destino diferente. “Para tanto, é preciso modificar a bagagem”, ouvi uma voz ao meu lado. “A bagagem identifica o viajante”, ele concluiu.

Vou explicar melhor. Fiquei envolvido com o meu pranto por um tempo que não sei precisar. As horas se passaram, pessoas entravam e saíam. Eu ali, sem sair do lugar por finalmente entender que não sabia para onde ir. Apenas tinha certeza que não retornaria à estrada usual. Ao final da tarde, com a igreja quase vazia, um ancião se aproximou e, sem se deixar notar, se sentou ao meu lado. “Sou o frei Ezequiel”, ele se apresentou com a voz mansa e acompanhado por um doce sorriso. Em seguida, perguntou: “É a primeira vez que você se encontra com Deus?”. Falei que não tinha acontecido nada de especial. Apenas tinha tido uma conversa muito franca comigo mesmo. O frei balançou a cabeça e explicou: “Essa é a única maneira que conheço para estar com Deus”.

Confessei-me um fracassado. Ezequiel franziu as sobrancelhas e me alertou: “Fracasso seria teimar nos equívocos. Quando bem aproveitados, os erros ensinam e nos amadurecem quanto aquilo que não nos serve mais. A certeza do que não queremos nos fortalece e acende a luz para encontrarmos um novo rumo. Você é um vitorioso por chegar até aqui e entender este ponto da jornada. Agora, é seguir em frente. Saiba que não será fácil, mas você se encantará com a beleza que envolverá os seus dias”. 

Ali mesmo, conversamos muito. Resumi a minha vida. Uma história marcada por insatisfações e sofrimentos. Era sensação real de estar à beira do precipício, foi como encerrei a narrativa. Embora a expressão trouxesse doses extras de dramaticidade, havia honestidade nas minhas palavras, pois era como eu me enxergava naquele momento. Com o olhar sereno de quem já enfrentou duras batalhas e sabe ser possível superar quaisquer dificuldades, o frei piscou um olho e sussurrou como quem revela um segredo: “Não existe situação mais propícia para alguém entender o poder das asas e aprender a voar”. Sorri com a bondade daquele homem sem saber se era somente bom humor ou um verdadeiro ato de fé. Algum tempo depois, descobri que eram ambas as coisas. Bom humor e fé não se anulam, ao contrário, se fazem acompanhar por serem atributos comuns à iluminação.

Ezequiel indagou se eu gostaria de ouvir uma pequena e singela história. Falei que ficasse à vontade. Ele narrou: “Havia um homem que se acreditava o pior da sua espécie. Tinha cometido muitos erros e espalhado muita dor. Acometido dos seus equívocos, sofria muito e acreditava não restar mais qualquer caminho decente que pudesse seguir. Procurou um sábio na esperança que houvesse uma saída. Estava disposto a qualquer esforço para encerrar os sofrimentos que o atormentavam. O sábio ouviu as suas palavras com atenção. Ao final, o aconselhou a conhecer o Paraíso. Não conhecia outra solução. O homem se confessou não ser merecedor para entrar no Paraíso. O sábio explicou que todos que lá chegassem mereciam ficar. O Homem disse não saber onde ficava. O sábio pediu para que ele anotasse o endereço. Era no alto da mais alta montanha. Resoluto, o homem caminhou por incontáveis dias. Quando lá chegou, havia somente uma caverna de pedras, sem nenhum luxo ou sofisticação. Sozinho, ao entrar na caverna escura, uma luz se acendeu. O homem encontrou apenas um espelho, no qual se viu diante da própria imagem. Decepcionado, refez o caminho de volta. Ao estar com o sábio declarou ter sido enganado. Sem tecer qualquer comentário, o sábio o aconselhou a se encontrar com Deus. Assim, como da vez anterior, disse onde O encontraria. Era no reino mais longínquo, na fronteira final do mundo. Decidido a não desistir, o homem aceitou o novo conselho e caminhou por meses que viraram anos. Quando chegou, não havia anjos com trombetas para anunciar ao ilustre morador a chegada do visitante. Apenas um espelho para o homem olhar a própria imagem. Contrariado, voltou ao sábio para se confessar decepcionado. Desperdiçara alguns anos da sua vida em uma busca infrutífera. O sábio esclareceu: Da primeira vez, você descobriu onde fica o Paraíso. Na seguinte, encontrou onde Deus habita. Agora, basta abrir as portas do Paraíso para viver uma vida ao lado Dele”. 

Ao me perceber encantado com profundidade daquela história, ele perguntou: “Filho, você sabe o significado da expressão redimir-se?”. Como hesitei por alguns instantes, ele respondeu: “Significa resgatar-se de si mesmo”. 

Frei Ezequiel sorriu e esclareceu: “Você já entendeu o que não quer. Agora, é aprender sobre as verdadeiras conquistas. Tudo mais é determinação e amor, todo o resto é detalhe”. 

Fez uma pausa e concluiu: “Redimir-se é o desafio da vida”. Em seguida, finalizou: “Aceitar ou negar o desafio é a diferença entre a alegria e a tristeza dos dias”.

12 comments

Fernando Cesar Machado setembro 23, 2020 at 8:56 am

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz, sem fim…

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Magnum leite setembro 24, 2020 at 1:24 pm

Que palavras inspiradoras. Seus textos são pura luz. Gratidão sempre.

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Terumi setembro 24, 2020 at 11:27 pm

Gratidão! 🙏

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SCHWEITZER setembro 26, 2020 at 8:28 pm

“A agonia da espera se chama ansiedade.” Sem palavras para um texto tao verdedeiro e libertador. Me sombra apenas as palmas, para tao bela e iluminadora estoria.

Amei.

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Aléxia Pauline Tavares Altíssimo setembro 26, 2020 at 10:36 pm

Yoskhaz, eu não comento em todas as histórias, mas já faz quase três anos que te acompanho aqui no site. Mesmo que eu não comente em todas as histórias, eu leio com o coração transbordando gratidão por ter contato com esses ensinamentos. Iluminado seja o seu dom! Iluminado seja você.💛❤️💚

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Ritos de passagem setembro 27, 2020 at 7:39 pm

Estou impactado, essa dois totalmente direcionando pra mim. Gratidão eterna.

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Adriano Camargo setembro 27, 2020 at 8:05 pm

Gratidão!

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Gleiza Jordânia setembro 28, 2020 at 3:10 pm

Gratidão sempre… 😊🌟🌟🌟🌟

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Michelle outubro 6, 2020 at 8:46 am

Obrigada!

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Viviane Barbosa outubro 9, 2020 at 12:38 pm

Maravilhosamente Lindooo!

Gratidão infinita.

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Maria das Dores Gschossmann novembro 1, 2020 at 3:18 am

Olá Yoskhay e muita gratidão,amo infinitamente seus textos e suas palavras através do seu conhecimento e ensinamento são pra mim o DESPERTAR do ESSENCIAL do meu ESPIRITO
Gratidão pelo aprendizado tão Magnifico

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Adelia Maria MIlani dezembro 9, 2020 at 10:57 am

Gratidão!!!!!!!!!!

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