MANUSCRITOS I

A arte da renúncia.

Eu tinha descido a montanha onde se localiza o mosteiro da Ordem e caminhava através das ruas estreitas e antigas da secular cidadezinha mais próxima. Chovia muito e estava mais escuro do que a hora determinava. Era muito cedo e o comércio começava a abrir as suas portas. De longe vi a bicicleta do Loureiro estacionada em frente à sua pequena loja. Por décadas tinha sido o único meio de transporte que aquele ancião se permitiu usar. Sorri comigo pela alegria de passar alguns instantes com pessoa tão ilustre. Assim que entrei, Loureiro me olhou por cima dos óculos, largou o alicate, arqueou os lábios e se levantou de braços abertos para me receber. Como sempre, o homem alto e magro estava impecavelmente vestido. A calça preta de pregas bem cintada, sustentada por suspensórios, fazia uma boa combinação com sua elegante camisa branca abotoada até o pescoço, com as mangas arregaças na altura do cotovelo para não atrapalhar o ofício. Seus cabelos, da mesma cor da blusa, embora ainda fartos e bem penteados, sinalizavam a idade avançada. Loureiro era sapateiro desde sempre. Nas horas vagas gostava de um bom vinho e amava os livros. Os seus prediletos eram os tintos e os de filosofia.

Tinha ido por causa das minhas sandálias, cujas tiras de couro, cansadas do uso, tinham arrebentado. Apesar de velhas, eu gostava do conforto que me proporcionavam, como se elas e meus pés já tivessem selado a paz há tempos. Depois dos cumprimentos e uma caneca de café bem quente para afastar o frio, perguntei se as sandálias teriam reparo ou me restaria procurar por novas. “Penso que as pessoas estão perdendo o bom hábito de consertar as coisas, o que pode acabar por refletir em suas relações. É necessário a sensibilidade para perceber o que não serve mais e o que merece remendo. Se a vida, e tudo nela se tornarem descartáveis, em breve minha profissão, assim como a razão do meu existir, perderão o sentido”, disse, entre graça e razão, enquanto levava as sandálias para a sua bancada de trabalho. “Sente-se. Trocaremos uma prosa enquanto faço o reparo”.

Aproveitei a deixa para provocá-lo e perguntei qual o momento de consertar e qual a hora de abrir mão de algo. “É indispensável entender a diferença entre cada uma das escolhas. Esta é a arte”. Acomodei-me em um pequeno banco, pois senti que aquela manhã ainda seria de sol.

“Preferir o silêncio como resposta quando a injúria nos atinge, é renúncia. Recusar em atender uma mão aflita que roga auxílio, é abandono. Abdicar de um bem material para evitar briga familiar de consequências impensáveis, é renúncia. Usar as imperfeições do mundo para encher uma tarde com lamentações ao invés de trabalhar, é desistência. Somente o que transforma a alma tem importância, isto é sabedoria”, disse o sapateiro enquanto cortava novas tiras de couro. Argumentei que tinha entendido os exemplos, mas a essência da diferença havia me escapado. “A escolha pelo abandono significa a incompreensão diante das Leis da Vida; a desistência evidencia fraqueza diante das dificuldades que se apresentam para alavancar a nossa evolução. No entanto, a renúncia ocorre quando trocamos conscientemente a aparência do mundo pela essência da vida”. Falei que, por vezes, a diferença poderia ser por demais tênue. Loureiro prosseguiu a explicação. “O âmago da questão está quando abrimos mão da paixão para abraçar o amor. O ego gerou a palavra egoísmo, sentimento movido pelas paixões mundanas de muito brilho e pouca sustentação. Assim, cria conflitos movidos por interesses menores e efêmeros, até que, cedo ou tarde, se percebe um grande vazio existencial. Valores que até então dirigiam a sua vida não podem preencher a escuridão que, agora, a envolve e angustia. Sedento por um facho de luz, você começa a entender o poder do amor. O amor é a alegria de compartilhar a vida com o outro, de aprender e ensinar, de entender as limitações e buscar as superações. É a matéria-prima de todas as transformações do ser. Você caminha por amor ou não terá ocorrido nenhuma evolução”. Deu uma pausa enquanto martelava pequenos cravos para fixar as correias na sandália, em seguida, revelou:

“A renúncia é a fronteira entre a paixão e o amor. É preciso tirar o olhar do seu umbigo para repousar no coração do outro”, disse o elegante sapateiro quando eu pedi que fosse mais claro. “A vida é regida por um Código de Leis não escritas e o fio que as conecta é o amor”. O nobre sapateiro falava sem desviar os olhos do ofício. “A ânsia da paixão encobre a verdade com um véu que somente a serenidade do amor consegue descortinar”. Eu sabia que ele se referia sobre as Leis do Caminho, mas queria um exemplo mais palpável sobre as diferenças de que falava. Protestei e disse para o meu bondoso amigo que todo aquele discurso era por demais bonito, mas carecia de melhor definição. Ele me mirou nos olhos e sorriu, sabia que eu o provocava. Repousou as ferramentas sobre a bancada e ajeitou a cadeira em minha direção. Colocou um pouco de café em nossas canecas e em seguida disse.

“Certa vez perguntaram a um sábio qual a diferença entre a paixão e o amor. O sábio pediu para imaginar uma pessoa andando há dias no deserto, sob calor escaldante, que encontra um pote de água fresca. Ela bebe toda a água para saciar a sua sede. Isto é paixão. No entanto, se essa mesma pessoa, nas mesmas condições, com o mesmo calor e sede, beber metade do pote e, no entanto, se preocupar em deixar o restante da água para quem vem atrás”, fez uma pausa propositalmente dramática e finalizou: “Isto é amor”.

O meu amigo sapateiro era um nobre. Não que possuísse títulos aristocráticos. Sua realeza vinha da gentileza no trato com toda a gente e a elegância de traduzir os sentimentos em palavras para serem usados da melhor maneira por qualquer um. Consertar sapatos era o seu ofício.  Remendar olhares, sua arte.

Calcei minhas sandálias e lhe dei um forte abraço. “Assim como não se pode transformar sem amor, é impossível amar sem renunciar”, confessei. Ele apenas sorriu em resposta como dizendo que eu tinha aprendido a lição.

Quando tornei a andar pelas ruas de pedras da antiga cidade, ainda chovia forte sob um manto espesso de nuvens cinzas, mas não estava escuro. Acima, a luz do sol me indicava o Caminho.

 

2 comments

Vinicius sene setembro 19, 2015 at 10:03 am

Quase sempre, o inventor expõe a sua criação, esperando a crítica para se aperfeiçoar ou satisfazer seu ego.
Viajei hoje em um pensamento. Será que fomos criados por um ser infinitamente superior, onde somos analisados para o aprimoramento de uma raça?
A história conta que, a evolução da humanidade está gradativamente em alta. O nosso conhecimento, inteligência e a nossa capacidade de usar partes do nosso cérebro, se multiplica proporcionalmente a cada ano, décadas e séculos e toda a transformação significativa que existia antes e que eram chamadas de eras, teriam que ser hoje renomeadas em tempos cada vez menores. Tecnologias que antes eram usufruídas por 3, 4 ou mais gerações, hoje em dia ficam antiquadas de uma geração para a outra ou nossos filhos nem sabem que existiram.
Continuo viajando sobre nós sermos cobaias, mas garanto que as drogas não tem nada a ver com o que se passa em minha mente, eu sou assim mesmo. Ou eu devia ser como mano ?
Acho que sou tão paranoico e viajo tanto na maionese que, ou também estou sendo monitorado e estou aqui exatamente por esse motivo ou antes de eu dar o enter vão apagar a minha memória e isso aqui nunca irá se propagar. Somos distintos em algumas ideias, mas também fazemos parte de nichos com as mesmas opiniões mas com adversidades perante outros grupos, causando rivalidade, debates e discussões acerca de “estranhos” acontecimentos globais ou um assunto qualquer; por isso tenho cada vez mais certeza que apesar da liberdade, somos induzidos a ter decisões em episódios manipulados e que isso serve a esse propósito, alcançar uma espécie cada vez mais avançada, em todos os sentidos.
Dias atrás, alguém me comentou que cientistas russos, acharam um fóssil de um parafuso com aproximadamente 300 milhões de anos de idade. Como será que eles calcularam isso? Também não sei mano, Garanto que se fosse encontrado a 100 milhões de anos atrás, não teriam a tecnologia para essa medição quase que precisa e não iriam colocar tanta velinha nesse bolo. Mas péra aí, a 100 milhões de anos atrás não existia ninguém aqui para encontrar esse parafuso. Quem ficou com um parafuso a menos, agora fui eu.

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lourdes outubro 3, 2015 at 10:07 pm

lindo texto

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