MANUSCRITOS VI

A aposta

Chovia. Nuvens pesadas ocupavam todo o horizonte. Fazia frio nas montanhas. Eu estava no mosteiro para mais um período de estudos, quando recebi um telefonema informando da partida de um amigo para as Terras Altas. Eu tenho uma boa relação com a morte; nunca a tratei como uma perda, mas como um indispensável ponto de mutação. O final de um ciclo de experiências, no qual será necessário as devidas elaborações e preparos para o início de uma nova jornada. Sei que pode parecer estranho, mas vejo a morte como um ato de amor da vida com toda gente pela regeneração que proporciona. Contudo, o George não tinha sido um amigo qualquer. O melhor amigo? Com certeza estava entre os melhores. Tivemos muitos problemas durante a nossa convivência, que se entrelaçou por décadas. Contudo, nos momentos mais difíceis eu sempre pude contar com a ajuda da sua mão generosa. Ele tinha me ensinado muito sobre o amor. George tinha uma alegria genuína em ajudar as pessoas, algo que fazia parte do seu cotidiano por se tratar de uma virtude essencial à sua alma bondosa. Era um homem de contrastes. Profissional pertinaz, me ensinara sobre o valor da dedicação e da disciplina ao trabalho; viciado em jogo, por várias vezes o vi rasgando a ética para sustentar a voracidade da triste dependência. Ganhou uma fortuna no trabalho e praticou muita caridade; foi amado profundamente por uma pequena multidão. Perdeu duas fortunas no jogo e deixou dissabores, mágoas e dívidas. 

Resumir uma pessoa em poucas linhas é apequenar a vida, uma injustiça que ninguém pode praticar. A história de ninguém cabe em um livro. Somos bem mais. Situações aparentemente corriqueiras nem sempre dimensionam as paixões que abalam as estruturas existenciais. Assim é comigo e contigo. Há um universo desconhecido dentro de cada um de nós; sempre haverá detalhes preciosos que serão esquecidos, deixando a análise prejudicada. Por estas razões, é impossível a justa avaliação feita por qualquer outra pessoa, mesmo quando realizada por um amigo próximo. Ao lado de George, eu tinha presenciado capítulos marcantes de amor e sabedoria, de sombras e de erros, de quedas e superação, que sempre contava para as minhas filhas como algumas das cenas mais incríveis que eu havia assistido. Quando eu precisava tanto de um bom quanto de um mau exemplo, eu recorria às histórias do George. Foram muitas. 

Certa vez, por mero acaso, encontrei com o George na rua. Ele me contou que compraria um carro de uma marca mundialmente famosa. Estava muito contente, pois desde menino sonhava dirigir um dos modelos desta montadora. Me convidou a acompanhá-lo. No trajeto até a concessionária, ao passarmos pelos portões de uma prestigiada universidade, nos deparamos com um homem de olhos tristes, marejados. Encostado no muro, como se as pernas fossem insuficientes para suportar o peso do sofrimento, expressava no rosto uma desesperança profunda. Como tinha por hábito conversar com qualquer pessoa que encontrasse, George o abordou; indagou se precisava de ajuda. O homem explicou que a sua filha teria de abandonar a faculdade de medicina no último período do curso, pois não conseguira renovar a matrícula da moça em razão de não ter pagado nenhuma das mensalidades dos dois anos anteriores. Somente a quitação da dívida, acrescida de juros e multas, resolveria a situação. Os carnês em sua mão mostravam a causa do seu sofrimento. Entre lágrimas, se confessou derrotado. Não sabia como diria para a filha que o seu sonho de menina estava interrompido. Talvez, acabado. O valor da dívida era vultuoso. Além da agravante de o curso de medicina ter um custo bastante alto em razão dos muitos recursos materiais e técnicos que exige, aquela faculdade era caríssima por causa da excelente qualidade do seu ensino. Somados todos os fatores, o resultado era um valor considerável. Com delicadeza, mas sem titubear, George retirou os carnês das mãos daquele pai e pediu para que eu ficasse ali conversando com o homem. Tentaria encontrar um jeito de ajudar. Prometeu não demorar. Alguns metros à frente, entrou na agência bancária da esquina e retornou alguns minutos depois com todas as prestações quitadas. Incrédulo e aos prantos, o pai não sabia como agradecer aquele anjo que nem mesmo sabia o nome. George apenas pediu que ele lembrasse a filha de, na medida do possível, nunca esquecer daqueles que não poderiam pagar pelo seu conhecimento, mas que precisariam de atendimento, cuidados e cura como quaisquer pessoas. Acrescentou que se a jovem médica pedisse o mesmo a todos os pacientes, cada um na medida das suas capacidades e atributos, juntos construiriam uma enorme rede capaz de aproximar as distâncias do mundo. Abraçou aquele pai atônito e alegre, me puxou pelo braço e fomos embora. Nunca mais vimos o homem nem tivemos a oportunidade de conhecer a sua filha. Algo que não tinha nenhuma importância para George; para ele, o que valia era o amor semeado. 

Enquanto nos afastávamos do local, questionei se ele tinha usado o dinheiro do carro para pagar a faculdade da moça. Ele fez sim com a cabeça. Comentei que não me parecia justo ele abrir mão do seu sonho em prol do sonho da jovem. George explicou: “Há os sonhos de desejos que trazem satisfação ao ego imaturo; existem os sonhos de busca que falam do propósito de uma alma em transformação. Compreender a diferença é entender um dos significados da vida. Ao abdicar de algo menor em prol de uma construção maior, iluminei não apenas a estrada da jovem, mas também a minha”. Dali, fomos até uma locadora de veículos. Alugamos por uma tarde um carro igual ao que ele não mais compraria. Foi o possível com o dinheiro que sobrara. Com o sorriso travesso, enquanto passeávamos pela bela orla da cidade, ele comentou: “O sonho de dirigir uma Mercedes se tornou real”. Fez uma pausa e acrescentou com seriedade: “O maior dos desejos não vale a mais simples das buscas”. George se mostrava digno, feliz e em paz. Era uma alma livre.

Em outra ocasião, se apaixonou por uma mulher que havia enviuvado havia poucos meses. Foi uma paixão avassaladora de ambos os lados. Viviam juntos pelas praias e bares frequentados pelos amigos. Eu os encontrei em um jantar de aniversário de um colega em comum. Soube que viajariam para Las Vegas na semana seguinte. Estavam animadíssimos. Estranhei. Eu sabia que os negócios de George não andavam bem. Tinha títulos em protesto, muitos devedores e a ameaça da falência à espreita. Como eu o conhecia havia muito tempo e assistira a ele se reerguer inúmeras vezes, muitas das quais os mais experientes analistas financeiros apostariam em uma definitiva bancarrota, pensei que tivesse se reerguido mais uma vez. George se parecia com um ente mitológico que se acostumara a renascer do caos. A capacidade dele para ganhar dinheiro era impressionante; a sua capacidade em perder tudo era ainda maior. Como um personagem surreal de um filme dramático, quando os dias estavam ensolarados e tranquilos, ele saía à procura das tempestades. 

Naquele dia, o chamei no canto para cumprir o meu dever de amigo. Falei que pelo visto os seus negócios voltaram a aprumar. Somado a isto, vivia um lindo um romance. Chegara o momento de ele largar a maldita escravidão das apostas que tanto sofrimento trouxera para a sua vida. Lembrei dos seus relacionamentos anteriores, sempre com finais tumultuados em razão da instabilidade que aquele comportamento provocava. Recordei que o seu primeiro casamento se encerrara no momento que teve de entregar o apartamento onde morava com esposa, pois o tinha perdido na noite anterior em uma mesa de pôquer. 

George sorriu compassivo, como se um soldado teimasse em ensinar ao general os segredos das batalhas, e me contou que iria para Las Vegas justamente porque os seus negócios iam muito mal. Ele precisava de dinheiro para pagar dívidas e modernizar a gráfica da qual era dono. Somente assim teria condições de não perder o negócio e se manter no mercado. Não tinha mais onde pegar dinheiro emprestado. Sem entender, perguntei com qual dinheiro viajaria para jogar em cassinos. George disse que faria três coisa em uma. A sua atual namorada tinha recebido uma boa quantia como beneficiária do seguro de vida deixado pelo marido falecido. Estava na poupança rendendo juros irrisórios. Conversara com ela. Pegaria este dinheiro como um breve empréstimo. Iriam em lua de mel para Vegas. Aproveitando a viagem, utilizaria um método que vinha estudando havia anos para ganhar no bacará. Com a mesma convicção de quem acredita que o sol findará a noite todas as manhãs, ele me garantiu que não tinha como dar errado. Pelas suas contas, o dinheiro que ganharia no cassino pagaria o empréstimo com juros dobrados, custearia as despesas da viagem e ainda daria para quitar os débitos da gráfica. Falei que aquilo só podia se tratar de uma brincadeira. George me olhou com desdém. Os seus olhos pareciam vidrados. Não existia outra verdade, ele falava sério. O vício possuía tanta autoridade sobre o seu raciocínio que, nestes momentos, a ética e a sensatez ficavam aprisionadas por trás das grades da mentira. Uma mentira que ele insistia em acreditar até que se deparasse com a própria realidade em ruínas. Pedi para que ele reavaliasse a decisão. Argumentei que ainda dava tempo. Ele foi ríspido comigo, como quem é importunado por argumentos risíveis e absurdos: “Não preciso de ninguém que me diga o que devo fazer”.

Ninguém precisa. A vida trata de ensinar.

Como tinha assistido em outras ocasiões, algumas semanas depois, encontrei George destruído. Restara poucos pedaços do homem orgulhoso e repleto de certezas do último encontro. Como uma repetição de uma tragédia sem fim, o cassino deixara o casal sem um centavo. Bem, em verdade, não foi o cassino, que é apenas um entretenimento para quem é capaz de usá-lo como diversão, quando se gasta a quantia irrisória de um sanduiche na tentativa de pagar um jantar com vinho. Nada além disto. Assim, a perda vale o risco. O jogo se justifica como mera diversão ao preço de um ingresso de cinema. Do contrário, é como entrar sozinho e desarmado em uma savana descampada acreditando que derrotará uma alcateia de leões famintos. O mais doloroso para o George é que ele sabia disto. A paixão com a jovem viúva terminara ainda no aeroporto antes de embarcarem de volta. A moça se sentia enganada e ficara com uma mágoa profunda do meu amigo. Ele admitia que ela tinha razão, ao mesmo tempo em que tentava explicar onde o seu método infalível para derrotar o cassino se mostrara falível. Com sinceridade, jurou que ressarciria o prejuízo dela assim que tivesse condições. Era uma alma aprisionada.

Sombras e Luz se alternavam de maneira constante e, não menos interessante, em graduações extremas. Como se um período de escuridão profunda e destruidora se alternasse para outro de luz tão intensa quanto rara, capaz de iluminar o mundo. Dois extremos diametralmente opostos no mesmo homem. Ora anjo, nas vezes que podia praticar o bem, ora demônio, nas horas que o vício imperava. Traduzir o George em tão poucas palavras me faz injusto com a sua história, mas eram muitas as lembranças e os pensamentos que me ocorriam naquela tarde chuvosa no mosteiro após receber o telefonema informando da sua transição à outra esfera existencial. Eu amava aquele meu amigo ambivalente. Ninguém tinha me ajudado tanto nos momentos mais difíceis da minha vida, me oferecendo bons conselhos, pois era um homem de uma sabedoria peculiar, mas também dinheiro, por se tratar de uma pessoa generosa ao extremo. Ao mesmo tempo que tinha construído tantas pontes lindas, permitindo inúmeras travessias para muitas pessoas, havia ferido o coração de várias outras e, não menos grave, feito um enorme mal para si mesmo. Uma história escrita através de capítulos maravilhosos entremeados por cenas deploráveis. Eu tinha a sensação de que duas legiões seguiam o seu rastro, os que o amavam e aqueles que o repudiavam. Ainda que mereça muitos outros capítulos, em breve síntese, esta tinha sido a sua vida. 

Como chovia muito, avisei no mosteiro que iria caminhar nas montanhas. Como diz o poeta, gosto de chorar na chuva para que ninguém veja as minhas lágrimas. Não havia sofrimento, mas um forte e avassalador sentimento de gratidão por tudo que eu havia aprendido com o George. Ao seu jeito, ele me ensinara sobre o amor e a dor; quedas e superação; desejos e buscas; virtude e vício; o certo e o errado. Sobre o bem e o mal. Fosse da maneira que sabia, fosse do modo como conseguiu, foi ao seu jeito. 

Não à toa, My Way, na voz de Frank Sinatra, era a sua canção preferida. Ele a cantava todas as vezes que precisava de um bálsamo para aliviar as suas dores. George sofria muito. Sofria em silêncio, como quem tem plena consciência de quem é o responsável por tantos sofrimentos. De outro lado, trazia em si uma alegria descomunal. Sempre que podia, fazia o bem por onde passava. E fazia com frequência incomum. Como é típico das pessoas que dialogam com o silêncio, nunca ouvi de seus lábios uma reclamação sobre nada nem sobre ninguém. Mesmo quando algum amigo se mostrara desleal, tampouco um lamento pelo desfecho desagradável de uma cena no qual restara injustiçado. Tinha compaixão pelos enganos das pessoas como quem pede tolerância para os equívocos que não conseguia evitar em si mesmo. Havia amor e sabedoria em contradição à patologia e estupidez do vício. Tudo dentro de um mesmo homem.

Fui caminhar pelas montanhas. Naquele dia, me permiti seguir por uma trilha desconhecida. Andei por um tempo que não sei precisar até me deparar com a entrada de uma enorme caverna. Como a intensidade da chuva tinha aumentado, decidi me proteger e aguardar no interior da caverna. Sentei-me em uma pedra e fiquei observando a manifestação da natureza e suas forças. Foi quando ouvi uma voz atrás de mim: “Salve, Ventania!”. Tomei um susto. Apenas uma pessoa me chamava daquela maneira. Assustado, me virei sem acreditar no que os meus olhos me mostravam. Era o George com o seu inconfundível sorriso e genuína simpatia. Como se soubesse do meu espanto e incredulidade por ele estar ali, explicou: “Antes de partir, me foi concedida a permissão de uma última explicação por todas as contradições que movimentaram a minha existência”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Escolhi conversar com você. Ao contrário de vários outros bons amigos que tive, sempre tive a certeza de que, apesar das nossas inúmeras brigas, eu sempre soube que poderia contar contigo. Você nunca me virou às costas, mesmo quando estava repleto de razões para ficar chateado com as minhas atitudes. Queria que me entendesse melhor; você merece. E quem sabe, oferecer alguma compreensão a todos aqueles que não conseguiram compreender os meus erros”. Ponderei que a história dele também estava repleta de acertos. Falei que lembraria ao mundo esta outra face da sua personalidade, embora contraditória, de incrível e peculiar beleza.

George se sentou à minha frente e disse: “A vida de qualquer pessoa vale pelo amor germinado. Eu amei muito, mas não como a maioria das pessoas sabe amar. Sempre fiz tudo ao meu jeito”. Em seguida, me fez recordar: “Quantas vezes trocamos um abraço?”. Puxei pela memória, mas não consegui lembrar de nenhum. Logo eu que adoro abraçar as pessoas por qualquer motivo, nunca tinha me dado conta que nunca trocara um abraço com o George. Ele explicou: “Eu não aprendi a abraçar. Também nunca falei eu te amo”. Fez uma pausa como quem busca razões no coração e confessou: “Eu amei demais as pessoas. O meu amor consistia em transformar tristezas em alegrias e renovar as esperanças nos corações das pessoas. Nada me alegrava mais do que ajudar alguém a atravessar por um abismo no qual somente enxergava queda e morte. Eu as colocava do outro lado sem me importar com agradecimentos. A luz que se acendia em mim sempre foi a melhor e única recompensa. Era assim que eu conseguia amar”. 

Questionei o fato de ele permitir que o vício do jogo trouxesse tanta escuridão para os seus dias. George explicou: “O tempo é uma estrada personalíssima. Longas retas, curvas perigosas, subidas cansativas, descidas refrescantes. Paisagens, ora fascinantes, ora assustadoras. Trechos de velocidade, outros nos quais será preciso frear. Embora diferente para cada um, é assim para todos”. Como se conhecesse os meus pensamentos, disse: “O tempo é uma estrada repleta de contradições”. Interrompi para dizer que não precisava ser daquela maneira. Argumentei que contradições sinalizavam a teimosia nos mesmos erros. George franziu as sobrancelhas e discordou: “Era do jeito que eu sabia fazer”. Deu de ombros, sorriu resignado e disse: “My Way”. 

O bom amigo fez uma pergunta retórica: “Onde a estrada do tempo leva os seus viajantes?”. Sem esperar pela resposta, tratou de esclarecer: “A conhecer a si mesmo. É preciso identificar os próprios fragmentos ocultos em cada trecho da paisagem, tanto no esforço indispensável às subidas quanto na coragem para aproveitar a intensidade dos riscos contidos nas curvas velozes. Do contrário, será uma viagem desperdiçada”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Mas esse conhecimento precisa ter alguma utilidade para justificar a viagem e honrar a estrada. Qual seria?”. Esperou que eu me manifestasse, mas como não falei palavra, ele continuou: “Transformação é a resposta. As minhas contradições são coerentes com a vontade de não mudar o meu jeito de ser. Fazer o bem não exige nenhum esforço para quem possui a bondade desperta na alma. Acreditei que fazer o bem compensaria os erros praticados”. De fato, no George, a generosidade era um ato genuíno de uma virtude autêntica. Ele prosseguiu: “Não é assim. De nada vale construir castelos apenas para destruí-los. Vivi em desafio à vida e ao tempo. Eu tinha certeza de que era capaz de me reerguer todas as vezes que a vida me deixasse em ruínas. Este era o jogo; essa era a aposta”.

George conseguia levar doçura ao sabor amargo deixado pelos seus equívocos. Como quem tem guardado um candeeiro de luz intensa para sair da escuridão, todas as vezes que o vício o deixava destruído, a bondade o conduzia de volta à claridade. Depois, voltava a se perder nos porões escuros que nunca quis abandonar. Dentro do meu amigo havia uma simbiose entre luz e sombras que se retroalimentavam. Eram a razão das suas alegrias e tristezas, como se uma fosse indispensável à sobrevivência da outra. Esta foi a tônica da sua existência e a incoerência das escolhas que fez durante o trajeto de uma existência. A bondade era a sua magia de reconstrução cada vez que as apostas o destruíam. O poder desta virtude deveria impulsionar a sua evolução. Por inúmeras vezes, em cenas de beleza desconcertante, sem nenhum interesse escuso, semeou o bem por onde passou apenas pela alegria dos sorrisos que provocava. Estes momentos encantavam a sua alma. No instante seguinte, ao invés de manter o ritmo para ir além, se desviava aquém da estrada para se deliciar no pântano da emoção deletéria e fugaz de qual seria a próxima carta. 

Eu quis saber o motivo pelo qual ele nunca se libertou desse estágio existencial. George confessou: “Eu deveria ter feito isto. Porém, nunca quis”. Perguntei pela razão de se manter oscilando entre luz e escuridão por toda a existência. Acrescentei que sabia não ser por dinheiro, pois aqueles apegados ao dinheiro não são afeitos aos riscos das apostas, seja nos cassinos, seja nos precipícios dos jogos do mercado financeiro, como Bolsa de Valores e seus derivativos afins.  George esclareceu: “Ao contrário do que muitos acreditam, pessoas como eu não apostam pelo dinheiro. Em verdade, desprezamos o dinheiro. Tanto, que o gastamos sem dificuldade. Não damos a menor importância aos valores do mundo, as suas honrarias e conquistas”. Então, revelou: “Nossas verdadeiras apostas são como desafios aos deuses”.

Pedi para ele explicar melhor. George esclareceu: “Procuramos atalhos para a divindade; desafiamos a vida. Queremos ser deuses; sofremos da Síndrome do Anjo Caído. Queremos o poder de Deus para fazer o bem. Ao nosso jeito, pelas nossas regras e intenções. O dinheiro é uma boa ferramenta para isto, principalmente se levar em conta que as pessoas passam por graves necessidades materiais. Buscamos pela luz, mas nos valemos dos instrumentos das sombras. Desafiamos a matemática, a sensatez e o destino. Apostamos contra a verdade. Ora semeamos sorrisos, ora espalhamos sofrimento. Mentimos para nós mesmos ao dizer que aqueles justificam estes. Eis o jogo oculto dos apostadores contumazes. Todavia, nenhum mal é necessário. Este é o erro que nos impede de vencer o jogo: não existe jogo”. 

Olhou para as nuvens que se desmanchavam em chuva e disse: “Ninguém vencerá o tempo enquanto se negar a atravessar a sua estrada. Apesar de todo o bem praticado, a minha coerência servil às sombras me impediu de prosseguir até o destino. O segredo está em desmanchar o tempo através das transformações do viajante. Para vencer o tempo é indispensável se aperfeiçoar o tempo todo. Para tanto, o amor é essencial. Porém, só amar não basta. Faz-se necessário iluminar-se”.

Falei para que ficasse tranquilo. Eu não conhecera ninguém que houvesse amado tanto as pessoas. Tampouco uma pessoa que trouxesse em si uma luz tão peculiar e própria. Eu estava sendo sincero. Ele me fez um pedido: “Se puder, ao encontrar aqueles que fizeram parte da minha história, principalmente os que ficaram magoados comigo, diga-lhes que eu os amei demais. Ao meu jeito. Era como eu sabia”. 

George falava a verdade. Ele se levantou e abriu os braços para um abraço. Era o primeiro e o derradeiro. Mas foi o melhor de todos.  Foi forte e autêntico. Selava o encontro de uma existência. Ao nosso jeito. Sem dizer palavra, se virou e caminhou para o interior da caverna. Era hora de recomeçar com que tinha aprendido. Os erros são os melhores mestres. Percebi o momento que despareceu envolto em luz azul.

Voltei para o mosteiro assobiando a melodia de My Way. Agradeci por ainda estar chovendo. Ninguém notaria as minhas lágrimas.

6 comments

Terumi abril 15, 2021 at 9:36 pm

Gratidão 🙏

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Fernando abril 16, 2021 at 12:31 pm

gratidão profunda e sem fim irmão das estrelas…sempre nos surpreendendo e se superando….muita Luz irmão amado

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SCHWEITZER abril 20, 2021 at 1:50 pm

Uma linda estoria de luz e sombras. Que George encontre sua paz do outro lado desta vida.

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Vania Lorenzato maio 8, 2021 at 11:43 am

Uma linda história de amor!!

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edson julho 6, 2021 at 8:04 pm

Sensacional, uma verdadeira lição de amor e tolerância contidas no conto. Normalmente nos apressamos em julgar quem erra, sem olhar o lado da luz envolvida. Grato

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Cris matsuoka agosto 2, 2021 at 10:06 pm

Esse George deve ter sido uma figura! Que as estrelas o acolha

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