TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quinquagésimo limiar – O personagem necessário)

O sol se deitava. Eu estava em um cemitério no qual árvores frondosas se misturavam a pequenos mausoléus. Entre cantos de pássaros, ao longe, ouvi uma linda melodia de jazz entoada por um instrumento de sopro. Deixei-me guiar pela música. De pé, um homem negro, elegantemente vestido de terno, encostado em um túmulo, tocava trompete como se o instrumento fosse extensão natural do seu corpo. Era uma doce canção, muito popular no final dos anos 1950. Ao final, perguntei o motivo de ele tocar uma música de amor em local tão fúnebre. Com a sua voz rouca ele me corrigiu: “Nada há de melancólico em celebrar a vida na plataforma de embarque de uma viagem de amor. Sair da vida, entrar para a morte; poucos entendem o quanto de amor envolve essa jornada circular”. Por não saber exatamente ao que ele se referia, nada falei. O músico prosseguiu: “A vida e a morte não devem ser tratadas como situações estanques e incomunicáveis. A relação entre elas é simbiótica, intensa e interligada. A morte é o prosseguimento da vida em outra dimensão existencial; a vida é o prolongamento da morte nesta esfera dimensional. Elas se retroalimentam, se explicam e completam. Separar a vida da morte é romper o sentido da existência, perder o rumo da evolução. O corpo físico, com todas as suas necessidades de sobrevivência, desequilíbrios emocionais comuns à esta fase de aprendizado, somados aos prazeres e sofrimentos sensoriais, a um só tempo, oferece os problemas, equações e soluções indispensáveis. A evolução do espírito, a verdadeira identidade de cada um de nós, é o sentido da vida. Evoluir é se tornar diferente e melhor; é sofrer menos e amar mais. Um dia após o outro”.

Eu já havia ouvido aquela teoria um sem-número de vezes. Os ciclos reencarnatórios como uma justa escola e perfeita oficina ao aperfeiçoamento de todas as pessoas. Nada me faltava aprender sobre o assunto. Aleguei que estava no curso de uma viagem e precisava encontrar um sábio que me ensinasse algo que eu ainda não soubesse. O músico me desejou boa sorte e entoou outra melodia no trompete. Eu também conhecia aquela canção, cuja letra falava de uma pessoa que tinha sido muito feliz e, com o avanço da idade e a proximidade da morte, sofria por pensar em perder tudo que tinha vivido e conquistado. Sentia falta de todas as possibilidades oferecidas pela juventude. O futuro não parecia auspicioso. Esperei que terminasse para comentar sobre a emoção que me acometia todas as vezes que ouvia aquela música. O homem me ofereceu um lindo sorriso e disse: “Uma das finalidades da arte é nos permitir experimentar sentimentos através de experiências imaginárias ao apresentar diferentes olhares sobre uma determinada situação”. Argumentei que a arte tenta explicar a vida. Ele discordou: “Penso que não. A arte tem por objetivo mostrar inusitados vieses pelos quais podemos nos envolver com a vida. Sempre há diversas possibilidades; logo, múltiplas escolhas. A ideia de se acreditar aprisionado em uma determinada situação não faz o menor sentido. Mostrar que sempre é possível prosseguir, sem importar o tamanho do obstáculo, ao nos oferecer impensadas soluções existenciais, reside a grandeza e a necessidade da arte”. Falei que naquela canção, o protagonista se dizia em um beco sem saída diante da morte que se aproximava rapidamente. O músico comentou: “Três em dez pessoas contabilizam a vida, como se o aspecto material fosse o mais importante. Tratam a vida como se fosse um mercador com quem negociam fortuna e fama, privilégios e aplausos. Diante da morte, toda a existência se mostra infrutífera pela inutilidade do esforço empregado nessa intensa negociação. Mesmo que tenham, nada possuem; ainda que lucrem, haverá prejuízos. A razão de viver se mostrará irracional. O amargor de uma luta inglória acrescenta altas doses de acidez por se deparar com o mau uso dos dias. A morte se torna um algoz cruel e injusto. Como uma viagem de belas paisagens que termina em um precipício inóspito”.

Sentou-se sobre um túmulo e continuou: “Três em dez pessoas temem a morte porque também temem a vida. Têm aversão ao risco, aventuras, ousadia, renovação e à magia da transformação. O medo as faz se esconder da vida como método aparentemente seguro para não se frustrar ou decepcionar por considerar esses revezes como pequenas mortes. Então, menosprezam, depreciam ou enganam os seus melhores sonhos, desejos e prazeres. Tratam a vida como se fosse uma flor delicada que precisa estar protegida do vento, da chuva e até mesmo do sol; que não pode conviver no meio à profusão de outras flores por causa das pragas e insetos que existem em todos os jardins. Ninguém conhecerá as suas cores, beleza e perfume. Tudo sabem, mas nada fazem. São refratários a qualquer movimento que ameace a vida; porém, todos os movimentos envolvem riscos. Dias longos para uma vida curta”. Comentei que viver era perigoso. O músico fez uma ressalva: “Não viver é ainda mais”.

Aquela última frase me desconcertou. Decidi ficar e conversar. O músico franziu as sobrancelhas e disse: “Pode-se não compreender o sentido da vida; contudo, é possível se mostrar sensível a uma razão profunda e oculta que lhe ofereça significado, que não meras relações de sobrevivência, dominação e prazeres sensoriais. Para estes indivíduos, a vida se resume na luta pela supremacia dos interesses individuais como maneira de satisfazer os seus instintos primários, deixando os bons sentimentos em segundo plano. Muitas vezes têm um discurso humanitário e progressista, ressaltando a evolução espiritual como prioridade quando não alinhada às conquistas materiais, até que sejam colocados diante de uma situação na qual devam aplicar a teoria na prática. Não conseguem ir além da fina estampa, do adorno brilhoso e aparência agradável. Três em dez pessoas só se dão conta da vida na morte, pois, apenas ao final do percurso percebem que desperdiçaram o melhor da viagem”.

Sentei-me em um túmulo em frente ao músico e comentei que de dez pessoas, ele se referira aos estilos em que nove lidavam com a vida e a morte. Faltava uma. O homem revelou: “Um em dez indivíduos viaja para terras distantes”. Perguntei que lugar era esse. Ele apontou para o meu peito e disse: “Dentro de si. A jornada de autodescobrimento e consequente autotransformação é uma viagem longínqua porque demora séculos, ou mesmo milênios, para se completar. Literalmente. Contudo, não há conquista mais importante nem beleza maior. Uma entre dez pessoas decide ir em busca do segredo fundamental, o saber que concede o poder do equilíbrio e da força sobre o seu pensar, sentir e escolhas, que permite se mover com leveza e suavidade entre ressentimentos e conflitos, sem colidir com os obstáculos”. Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Refiro-me ao conhecimento sobre si mesmo e o firme compromisso com a sua infinita evolução; a vontade de ir além de onde sempre esteve. Para tanto, precisa de inúmeras transmutações, como se fossem constantes metamorfoses, na transformação de quem era por outro diferente e melhor. Trata-se dele próprio, porém, não mais aquele que foi até ontem. Algo impossível enquanto não se entender como um autêntico espírito que vive múltiplos personagens no decorrer de várias existências durante o processo de autoaperfeiçoamento, no qual o espírito se utiliza de um corpo acompanhado de um contexto formado por condições e relações específicas necessárias àquele momento”. Passou a mão em torno de si e disse: “Desta vez nasci em New Orleans, negro e pobre, criado em reformatórios; torne-me músico de uma banda de jazz que se apresenta em várias cidades, como New York e Chicago. Em resumo, estas são algumas das características e circunstâncias indispensáveis para eu viver as experiências essenciais ao meu atual estágio evolutivo. Nem sempre consegui, quase nunca foi fácil. Em movimentos de contração e expansão, nos quais os fatos vivenciados serviram à elaboração do entendimentos que eu precisava para lapidar o espírito neste exato momento da minha jornada, para depois expressar esse aperfeiçoamento em todas as minhas relações. Das vezes que processei as experiências com ressentimento e rancor, as desperdicei seguidamente. Quando as elaborei com amor e sabedoria, por intermédio das virtudes, acessei a verdade que me libertou dos enganos e pude avançar no Caminho. Já vivi e viverei diversos outros personagens em diferentes existências, com diversas características e desafios adequados às lições necessárias a cada trecho dessa longa e bonita viagem”.

Ponderei que, se éramos personagens, a existência não seria mais do que mera encenação. O músico me corrigiu: “Não foi nesse sentido que me referi quando usei a analogia dos personagens. Digo para que entenda sobre a transitoriedade de quem somos em cada experiência existencial. Infinito e verdadeiro são o espírito e a vida; valiosas e eternas são as suas conquistas, todas as demais não passam de ferramentas ou flores que murcharão na estação seguinte. As múltiplas existências constituem as diversas escolas e oficinas, com inusitados, maravilhosos e indispensáveis conteúdos. Aprender e realizar através dos múltiplos personagens, se valendo de diferentes características e circunstâncias a cada existência, é o método perfeito de aperfeiçoamento do espírito, a nossa genuína identidade”. Questionei o fato de que, se fundamentalmente somos espíritos – ou almas, como nos referimos a eles enquanto estão vivendo experiências existenciais – não havia qualquer explicação razoável para a existência do ego. O homem explicou: “O ego é muito importante nesse processo. Como gerenciador do consciente, é quem vai cuidar das questões cotidianas de sobrevivência do personagem, como pagar contas, fazer mercado e coisas afins. A preocupação da alma é com a transcendência; em outras palavras, com a evolução através do aprimoramento do amor e da sabedoria na prática. Todavia, como gerente da consciência, o ego é responsável pelas escolhas, define o certo e o errado, difere o bem do mal. Enquanto imaturo, o ego se deixará arrastar por influências sociais, financeiras, emocionais e atávicas para fazer as escolhas. Nem sempre estas decisões estarão de acordo com a evolução da alma, que estaciona com a intransigência do ego em realizar mudanças no seu jeito de ser e viver, alterar padrões de comportamentos, descontruir ideias obsoletas e sentimentos pesados. No inconsciente, a alma aguarda e sofre com os equívocos e a estagnação. Enquanto houver divisão entre ego e alma, personagem e identidade, o indivíduo se desequilibrará emocionalmente e se sentirá fragilizado diante das dificuldades. Desorientado, implodirá em mágoas ou explodirá em agressividade. Conduzir conscientemente o ego ao encontro da alma para que conheça e se encante com novos valores, destinos e maneiras de construir a si mesmo traduz a maturidade espiritual. Não se consegue isso sem vivenciar todo tipo de experiência. As pressões do mundo sobre o personagem que, mesmo diante de complexas dificuldades, escolhe o certo mesmo quando o errado lhe parece conveniente, decide pelo bem diante de sedutores cortejos do mal, define o amor como caminho e destino, são fundamentais ao aperfeiçoamento do espírito”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Os avanços do ego através de cada personagem experenciado, ao agregar novas virtudes ao seu estilo de vida, são cruciais à libertação da alma por a afastar da escuridão e a envolver em luz. Com a sua própria luz”.

Comentei que, a deduzir daquelas palavras, o ego tinha participação fundamental ao aperfeiçoamento da alma. O músico disse sim com a cabeça e pontuou: “Lembre-se, é o personagem quem faz as escolhas”. Em seguida, acrescentou: “Não existe lugar mais encantador do que a conquista de si mesmo, na integração de um ego alinhado à alma sob um mesmo eixo de amor e sabedoria, ainda que pese as difíceis e densas influências ao redor. Na individuação do ser, sem a fragmentação entre ego e alma que tantos medos e sofrimentos produzem, construímos um agradável lugar para morar. Em cuidadosa análise, nos damos conta que cada um mora dentro de si mesmo, com toda tranquilidade ou confusão que houver nessa casa. Um lugar tão perto e tão distante, a depender da proximidade ou da distância que cada personagem está da própria identidade; um movimento fundamental para não deixar o medo entrar nem o sofrimento retornar. Ao sintonizar o personagem com a identidade em um mesmo tom e ritmo, conquistamos um incomensurável poder”. Perguntei qual seria. Ele respondeu de imediato: “Conforme ensinou um antigo sábio, trata-se de um poder no qual não mais se receia os tigres nem os rinocerontes, não se teme nenhum exército”. Pedi para que explicasse de outra maneira. Ele foi didático: “Os tigres representam as dificuldades inerentes ao cotidiano, como a falta de dinheiro ou problemas de relacionamento. Os rinocerontes são as enfermidades. Os exércitos significam os males decorrentes da violência do mundo. Estes são o temíveis inimigos de nove entre dez pessoas”. Concordei com um gesto. O homem prosseguiu: “Contudo, nada disso assusta aquele que vive de modo consciente a jornada do espírito. Ele não os deseja, mas também não os teme, tampouco os menospreza. Trata todos os acontecimentos com respeito. Sabe que tudo o que acontece ao personagem, se bem aproveitado, será valioso ao aperfeiçoamento da identidade. Sabe, também, que a morte não é o fim, porém, a renovação da vida em melhores condições caso tenha aproveitado o trecho da viagem que se encerra. Portanto, garras, chifres e espadas, embora possam atingir o personagem, jamais alcançarão o espírito que se manteve na luz da verdade e das virtudes”. Fez um gesto com a mão para ressaltar as palavras e disse: “Não esqueça, o personagem inevitavelmente se desmanchará no tempo; o espírito estacionará em movimentos circulares e repetitivos ou seguirá em frente rumo às plenitudes, a depender do proveito que extrair da viagem”. Interrompi para perguntar como aproveitar a viagem. O músico elucidou: “Cada infortúnio traz um mestre oculto para ensinar uma desconhecida lição, capaz de o levar onde nunca esteve, cada vez mais perto da própria essência e, porquanto, da verdade e da luz. Encontre-o, agradeça e faça bom uso”.

Falei sobre a dificuldade de lidar com todos os tipos de problemas. O músico deu de ombros e disse: “Problemas só existem enquanto desconhecemos as soluções. As dificuldades são forjas da evolução por permitirem soluções até então impensadas ou nunca experimentadas”. Insisti que algumas situações podem levar à morte. O músico tornou a sorrir e explicou: “Chegamos ao cerne da questão. Não se deseja a morte nem se move ao seu encontro; isto seria um movimento de ingratidão ao Caminho. Vida e morte são uma mesma estrada. Logo, temer a morte seria também um movimento contrário ao entendimento da vida, que se renova com amor e sabedoria através de outras existências, despindo e vestindo diferentes corpos e personagens utilizados nas experiências indispensáveis para que o espírito, ao evoluir, se liberte dos ciclos reencarnatórios e não mais se restrinja às estreitas dimensões do tempo. Entender-se como espírito é o passo primordial; aceitar e respeitar o corpo e o personagem como instrumentos descartáveis, porém, fundamentais, de transformação são os movimentos seguintes. Todavia, se faz indispensável que não haja apego, medo ou menosprezo, seja pela vida, seja pela morte. Faz-se necessário ir além para não ficar aquém. Há que se encantar com a beleza de cada momento”.

O músico disse que precisa ir. Naquela noite a sua banda se apresentaria em um café no Queens. Eu também precisava partir. Confessei não saber como fazer. Ele fez um gesto com a mão para que eu permanecesse sentado e fechasse os olhos. Com o trompete tocou um lindo blues que descortinou na minha mente uma mandala em diversos tons de azul. Fui instado a seguir a viagem. Nem deu tempo para eu me despedir do sábio.

Poema Cinquenta

Sair da vida, entrar para a morte

Três em dez contabilizam a vida;

Três em dez temem a morte;

Três em dez só se dão conta da vida na morte.

Um em dez viaja para terras distantes.

Não receia os tigres nem os rinocerontes,

Não teme nenhum exército.

Garras, chifres ou espadas

Jamais o atingirão.

Vida e morte são uma mesma estrada.

3 comments

Rhodolfo Diniz outubro 29, 2023 at 4:02 pm

Gratidão! 🙏😁

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Terumi outubro 31, 2023 at 12:59 am

Gratidão 🙏

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Maangoba fevereiro 15, 2024 at 8:20 pm

Obrigado pela partilha.

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