MANUSCRITOS VII

O amor precisa aprender a amar

“Somos mais egoístas do que acreditamos”, me disse Loureiro, o artesão amante dos vinhos tintos e dos livros de filosofia, que costurava tanto bolsas quanto ideias com a mesma mestria. Discordei. Falei que me considerava um sujeito generoso, pouco apegado a dinheiro e bens materiais. Ele tentou me fazer entender: “Dinheiro ou bens materiais são as variantes mais conhecidas dos vários aspectos do egoísmo. Há muito mais. O egoísmo se manifesta todas as vezes que desconsideramos a necessidade alheia. Muitas vezes nada tem a ver com questões financeiras. Não raro, somos egoístas quanto ao nosso tempo, paciência e afeto. Quando acontece, abdicamos de virtudes poderosas como a compaixão, empatia e a solidariedade. É como se o outro fosse invisível, que as suas carências fossem incapazes de tocar o meu coração ou se as necessidades dele atrapalhassem as minhas conquistas. Sem dúvida, existe a hora de priorizar a si mesmo; ninguém pode se anular em função de ninguém; todos temos construções pessoais a realizar que não podem cair no esquecimento. Contudo, há o momento de atender aqueles que precisam de ajuda; dias sem amor são trechos de uma vida abandonada”.

Bebeu um gole de café, repousou a caneca sobre o balcão de madeira do atelier, e acrescentou: “Todas as conquistas alcançadas pelo impulso do egoísmo se tornam efêmeras pela ausência de amor e sabedoria ou, se preferir, por falta de virtude. Ninguém evolui se não for através da Luz. Uma vitória apenas se torna um ganho real se tiver a capacidade de não se desmanchar na transitoriedade do tempo. Ainda que as pedras e o concreto dos palácios durem milênios, há que se questionar se quem os construiu carregou consigo algum poder. Vencer se valendo do egoísmo trará satisfação de curta duração, além das consequências educativas ajustadas pela Lei Cósmica da Causa e Efeito e, mais importante, não restará nenhum conteúdo para acrescentar à bagagem de quem somos”.

Não arredei do meu ponto de vista. Argumentei que eu não me encaixava naquele comportamento definido por ele como egoísta, uma sombra já educada e iluminada em mim. Loureiro arqueou os lábios em sorriso, como quem está diante de um garoto que se nega a ver o perigo de nadar em praia repleta de correntezas; traiçoeiras por se movimentarem abaixo do nível d`água, onde olhos despreparados ainda não conseguem enxergar, fazendo com que sejamos engolidos por algo que jurávamos não existir. O sapateiro pontuou: “Nada nos expõe a tanto risco como a ignorância. Acreditar saber o que não se conhece é como colocar um coelho na jaula de leões famintos na certeza de que não existe perigo. Tudo que nos desequilibra, enfraquece e atrapalha é tão e somente aquilo que ignoramos em nós. Então, somos devorados”.

O sapateiro explicou que era fácil identificar o egoísmo ao nos depararmos com indivíduos que carecem de emprego, alimento, abrigo e vestimenta para sobreviver. Não raro, nos escusamos de qualquer responsabilidade, atribuindo ao poder público a função de amparar essas pessoas; enfim, sentimos o sofrimento alheio, mas ao substituir o compromisso de acolhimento pelo debate meramente ideológico, escondemos o egoísmo sob a manta de uma pretensa intelectualidade. Em uma mesma prateleira, há aqueles sem necessidades materiais, mas com enormes lacunas afetivas e emocionais que precisam de acolhimento e orientação para retomar e retornar à existência. Usamos como desculpa o argumento de que cada um deve encontrar o próprio ponto de equilíbrio para se fortalecer diante da vida. Afinal, todos temos questões sentimentais em aberto e nós existenciais a espera de serem desatados. Cada um com os seus problemas, tentamos nos convencer. Alegamos falta de tempo, não saber como fazer ou não ser da nossa conta. Em palavras despidas de enganos, seja por não existir interesse da nossa parte, seja por recusarmos a assumir quaisquer responsabilidades além do círculo estreito dos interesses pessoais, em verdade, buscamos justificativas para negar o egoísta que ainda nos manipula. O egoísmo é o ralo pelo qual o amor se esgota; enquanto não entendermos isto, continuaremos a desperdiçar o melhor da vida.

Indaguei ao Loureiro se ele sabia de uma atitude egoísta da minha parte nos últimos anos. Ao menos algo que fosse significativo. Brinquei que, em uma viagem recente, escondi uma barra de chocolate para não dividir esta minha paixão com ninguém. Rindo, falei que ninguém merece condenação por tão pouco. O sapateiro não precisou me responder. Em movimento de sábia sincronicidade, um jeito no qual a vida arruma as peças no tabuleiro das horas com o intuito de ensinar a lição que nos negamos aprender, fomos surpreendidos com a chegada de Renê, um dos muitos amigos de Loureiro que moravam na pequena e charmosa cidade de ruas estreitas e sinuosas. Já tínhamos sido apresentados em outra ocasião. Era um homem simpático, artista plástico especializado em esculturas de bronze, com cerca de quarenta anos idade. Renê estava desnorteado. Lucy, a sua esposa, uma bela mulher com longos cabelos negros, muito elegante e trabalhadora, gerente de um dos bancos da cidade, queria se divorciar. Ele se dizia surpreso e traído. Não que ela tivesse se apaixonado por outra pessoa; nada disso, apenas alegava não suportar a convivência em comum. Renê explicou que o motivo do rompimento era o fato de a esposa não suportar mais a maneira como o marido conduzia a sua profissão e, por consequência, como isso refletia no casamento. Havia dez anos, desde que foram morar juntos, Lucy apostara e financiara a carreira artística do Renê. A esposa se dizia desanimada, não apenas pelo fato de ele não conseguir vender as suas obras, mas por se dedicar pouco à tarefa de esculpir ao ficar muito tempo lendo livros, assistindo filmes e em reflexão. Tinha dias que nem mesmo tocava nas esculturas. Fazer escultura não é como fazer pão, Renê explicou. Tais afazeres eram fatores de inspiração imprescindíveis à arte, que precisa de uma atmosfera adequada para a criação. Enquanto ela dizia que chegara o momento de ele encontrar um trabalho, o artista rebatia que já tinha um, apenas não se tornara uma fonte de renda. Ainda, ressaltou.

Concordei com o Renê. Eles tinham um acordo. Lucy não tinha o direito de dizer não quero mais ou simplesmente cansei, depois de tantos anos de parceria. Não era justo. Ele tinha uma idade que era um entrave para se iniciar no mercado de trabalho formal. Tratava-se de um abandono cruel. O artista acrescentou ser um homem de bom coração, gentil, educado e amoroso com todos. Loureiro disse sim com a cabeça enquanto entregava uma caneca de café para Renê. O sapateiro pontuou: “As suas palavras sobre como se define não são mentirosas. Sem dúvida, você é um sujeito com os atributos que enumerou. Todavia, vamos tentar entender os motivos pelos quais a Lucy diz não suportar mais o casamento. O objeto se modifica a depender do ângulo pelo qual o observamos”.

O raciocínio do sapateiro nos desconcertou. Esperávamos o seu apoio imediato face a injustiça da situação. Em seguida, Loureiro lembrou que, quando estivera a última vez em visita ao atelier, todas as obras estavam inacabadas e, portanto, sem condições de serem vendidas. Questionou a razão de ele não terminar uma escultura antes de iniciar outra. Renê argumentou que o seu cérebro, como de todo artista, era multifacetado, diferente da maioria das pessoas, cujo pensamento é linear. Então, acontecia de ter de interromper uma obra para iniciar outra por causa de uma ideia mais interessante que lhe ocorria. Garantiu que em algum momento, o qual não podia precisar, retornaria aos trabalhos paralisados. O sapateiro pontuou que, passado dez anos, ele não tinha nenhuma escultura finalizada. Renê justificou que não seriam boas o bastante para serem oferecidas ao mercado, algo que o prejudicaria, uma vez que teria o seu nome ligado às peças de baixa qualidade. Desfazer o olhar inicial do público seria muito complicado. Era mais inteligente esperar o momento certo. Queria que a sua escultura de estreia fosse magnífica a ponto de firmar de modo definitivo o seu nome no cenário das artes plásticas. Tratava-se de uma estratégia infalível de marketing, alegou.

Lamentava a esposa o abandonar no momento em que estavam tão perto de alcançar a conquista planejada quando se apaixonaram. Disse que ganharia muito dinheiro com as suas obras, a ponto de Lucy não mais precisar se entregar à rotina estressante do mercado bancário. Ela poderia parar de trabalhar assim que as esculturas tivessem o merecido reconhecimento. Desistir dos sonhos é um erro, acrescentou. Loureiro concordou com uma severa ponderação: “Como projetos de uma vida, os sonhos são sagrados, seja por desenvolver os nossos dons, seja por fazer algo que nos impulsiona ao aperfeiçoamento pessoal. Contudo, esse sonho é seu, não dela”.

O artista rebateu: “Sim, viver da arte é um sonho meu. No entanto, como casal, deveríamos compartilhar os nossos sonhos. No mais, ela seria beneficiada mais à frente, caso não fosse tão egoísta”. Loureiro questionou: “A Lucy deve ter um trabalho chato enquanto você adia indefinidamente os seus sonhos deliciosos? Até quando? Modificar os fatores dessa equação seria gesto de egoísmo ou de autorrespeito?”. Renê respondeu que, por olhar apenas para os próprios interesses, e retirar o apoio fundamental a uma vida em comum, naquele momento, a esposa pensava apenas em si mesmo, sem levar em consideração as enormes dificuldades que imporia a ele. O futuro dele não mais fazia parte da equação dela. Portanto, não tinha qualquer dúvida quanto ao egoísmo da Lucy.

Admitiu que não sabia o que seria dos seus dias dali em diante. O sapateiro sugeriu: “Comece por conseguir um trabalho que o sustente”. Irritado, o artista se negou sob o argumento de que o seu sonho era ser um escultor. Não podia perder tempo exercendo outras atividades que em nada acrescentariam ao seu propósito de vida. Loureiro não se permitiu sair do seu equilíbrio: “Não disse para desistir da arte. Apenas sugeri que arrumasse um emprego capaz de manter as condições mínimas de sobrevivência. A dignidade não é um presente; trata-se de uma conquista. Se souber administrar o tempo, uma arte por si só, encontrará condições para não precisar abrir mão dos sonhos. Embora possa duvidar, o trabalho será sempre uma poderosa fonte de inspiração para a vida”. Renê argumentou não ter certeza se seria possível, pois faltariam as condições adequadas para se dedicar à arte. O sapateiro tornou a lembrar: “Por dez anos, quando teve o apoio financeiro e emocional, além de todo o tempo necessário, você nada produziu”.

Fez uma pausa antes de fazer uma pergunta de simples retórica: “Entende que a razão de não viver da arte nunca foi uma questão de incentivo, tempo nem de dinheiro?”.

Renê discordou. Usou como alegoria a figura do lenhador que dedica a maior parte do tempo em conseguir a perfeita afiação do machado, no intuito de fazer um único, preciso e definitivo corte na madeira. Afirmou que se preparara por todos esses anos e estava próximo de iniciar a sua grande produção artística, pois graças à longa espera, amadurecera os conceitos que usaria em suas obras. No entanto, a Lucy me tomou o machado no momento em que eu começaria a cortar a lenha, lamentou. Loureiro não concordou: “Ela não lhe tomou nada que fosse seu. Tudo precisa de limite. A Lucy não acredita mais que você consiga. Entendeu que não apostou na arte, mas financiou a postergação e a inércia. Todos têm o direito de não querer mais. Quem desistiu não foi ela, mas você por ter desperdiçado a oportunidade oferecida. Sob o prisma do egoísmo você acredita ter sido abandonado no meio da viagem; se olhasse pela ótica do respeito talvez entendesse a ingratidão da sua parte por não reconhecer o amor, o apoio e a solidariedade da Lucy com sonhos que não eram dela. Não lamente, mas agradeça. Ignorar o esforço e até mesmo a presença de outra pessoa para que as nossas conquistas se completem é uma espécie de egoísmo nem sempre perceptível. Ela seria egoísta se o impedisse de viver o seu sonho. Isto a Lucy nunca fez. Enquanto insistir em se esconder por trás do personagem da vítima, terá dificuldade para compreender que ela acreditou no seu sonho bem mais do que você se dedicou a ele”.

Calamos por longos minutos. Depois, o artista disse que Lucy garantiria uma ajuda de custo por três meses. Impossível terminar as esculturas e se estabilizar no mercado em tempo tão estreito. Confessou não saber o que fazer dos seus dias. Loureiro franziu as sobrancelhas e disse com firmeza: “Encontre as partes que, por estarem perdidas, impediram que os seus sonhos se tornassem realidade. Erga-se com as condições que restaram. Sim, sempre será possível. No mais, acredite em você; ninguém vive os próprios dons sem o equilíbrio oriundo da fé em si mesmo. Em seguida, siga em frente à procura do tesouro oculto em seu âmago; transforme-se. Encontros, descobertas e conquistas; em resumo, são as etapas necessárias à viagem de todos nós”.

Com os olhos marejados, Renê agradeceu a conversa e foi embora. Eu nada disse, mas fiquei entre a irritação e a decepção com as palavras do sapateiro. Um amigo o tinha procurado em busca de apoio; saíra da oficina após uma severa reprimenda. Talvez, com ânimo pior do que quando entrara. Como o horário do trem estava próximo, me despedi e parti. Levei comigo uma sensação estranha, diferente de todas as outras vezes que ali estivera.

Um ano se passara. Após o meu período de estudos no mosteiro, como de costume, passei na oficina do sapateiro antes de ir para a estação ferroviária. Fui recebido com um sorriso de sincera alegria e um forte abraço. Após me entregar uma caneca com café, conversamos sobre diversos assuntos. Em determinado momento, notei sobre a prateleira uma escultura de bronze em forma de baguete que nunca estivera ali. Ao perceber o meu interesse, Loureiro disse se tratar de um presente do Renê: “O pão da vida nº 4, foi assim que intitulou a obra”.

Sem nada dizer, fiquei sem entender a atitude do artista em presentear o sapateiro. Eu me lembrava em como Loureiro tinha sido rigoroso quando Renê esteve na oficina em busca de apoio. Antes que a conversa prosseguisse, como era hora do almoço, ele sugeriu que fôssemos comer algo. Havia uma padaria próxima dali que servia o meu sanduíche predileto, com cogumelos assados, manjericão, tomate e o inigualável queijo da região. Aceitei de imediato. Em alguns minutos, estávamos acomodados em uma mesa, ao lado da janela, com vista para a praça. A garçonete nos serviu duas taças de tinto. Enquanto aguardávamos os sanduíches, perguntei se Loureiro tinha notícias de Renê. O sapateiro fez um gesto com o queixo para que eu olhasse para trás. O escultor, vestido com avental branco dos funcionários da padaria, se aproximava trazendo não dois, mas três sanduíches iguais. O maravilhoso recheio vinha envolvido por uma apetitosa baguete.

Sorridente, Renê retirou o avental e sentou conosco à mesa. Antes que eu fizesse qualquer pergunta, explicou que trabalhava na padaria como ajudante de padeiro. Como entrava no serviço às cinco horas para encerrar ao meio-dia, estava liberado para nos acompanhar no almoço. Havia uma luz indescritível em seus olhos; uma alegria genuína gerada por alguém que finalmente entendera o fundamental: tudo que me falta é aquilo que ignoro em mim.

Renê queria me explicar, pois assim como eu, naquele dia, ele saíra da oficina sem a correta interpretação tanto da atitude da Lucy como das palavras do sapateiro. Demorou algumas semanas até compreender o seu egoísmo. Usava o ideal do sonho como justificativa para disfarçar a acomodação e a fragilidade que também se negava a reconhecer. Embora nunca tivesse admitido, sempre teve medo de fracassar. Ao não finalizar as esculturas, encontrara uma desculpa para não se expor às críticas inerentes a qualquer obra. Um esconderijo existencial que montara para si para não ter de lidar com a possibilidade de frustrações e rejeições. Assim, se alimentava da ilusão de que o sucesso estava bem próximo; porém, terminar as esculturas era um passo que nunca daria, pois, inconscientemente sabia se tratar de um risco que temia lidar. A realidade, com todos os seus entraves e dificuldades, o assustava.

A necessidade impulsiona o movimento essencial à vida. A iminência do caos o despertou. Quando teve de depender de si mesmo para sobreviver, se deu conta de como abandonara a vida, embora na época acreditasse ter dias perfeitos, sendo que, em verdade, tinha dias vazios. O fato de estarem encobertos por atividades nobres, como livros, filmes e meditação trazia uma aparente sensação de grandeza, pois, faltavam elementos de autossustentação, típicos de quando as ideias não encontram a realidade através da ação.

Aprendeu a fazer pão. Deixou-se encantar com a magia do aroma da massa no forno, da alegria das pessoas ao provarem o alimento que ele preparava com as próprias mãos. Eram as mesmas que serviam para confeccionar esculturas. Entendera o poder das suas mãos, assim como qual encanto que as suas obras deveriam ter. Não através dos sentidos relativos ao corpo, como o cheiro e o sabor, mas na magia de dialogar com o coração das pessoas. Lembrou que Loureiro tinha razão quando disse que o trabalho é uma poderosa fonte de inspiração à arte. O pão sempre simbolizou o alimento essencial ao corpo e à sobrevivência. Contudo, não basta. A alma também sente fome. Mas que pão é esse que a alimenta?

O amor em qualquer uma das mil virtudes, o próprio Renê respondeu à pergunta. Contudo, esclareceu, agora compreendia que amor sem compromisso é um sentimento nobre aprisionado pelos efeitos destrutivos do egoísmo. Embora tivesse dias agradáveis, por estar envolvido em afazeres prazerosos, interessantes e cultos, nenhum deles movia o seu dom; a criação desalinhada à produção é virtude desperdiçada. Faltava compromisso. Apesar de amar a esposa e reconhecer o seu apoio, na prática, as atitudes dele desvalorizavam o amor oferecido por ela. Admitiu que enganou a si mesmo por dez anos.

O atelier se tornara uma espécie de espaço onírico onde ele se escondia do medo e, sem perceber, deixava o egoísmo transbordar. Até que foi devorado. Não pela Lucy ou pela realidade, mas pela verdade que insistiu em ignorar. O pão da alma é o genuíno alimento da vida. A sua alma estava faminta pela verdade e também por amor. Um amor que tinha, mas que não sabia amar.

Fazer pão todos os dias, no início como meio de sobrevivência, depois por alegria, o fez compreender que o compromisso em perceber e sentir o outro é o alicerce de todas as relações, ao menos aquelas que se dispõem a vencer o tempo pelo egoísmo desconstruído. O ajudante de padeiro compreendeu que, embora tivesse muito amor no coração, nunca tivera compromisso com nada nem com ninguém. A liberdade não se completa na fuga. Jamais se dera conta disso. Tudo ao seu redor desmoronou para que pudesse se ver destruído pelo ócio e mentiras com as quais adorava se enganar. Amamos melhor à medida que nos tornamos menos egoístas. Renê estava se reconstruindo.

Ele fechou os olhos como quem busca por uma lembrança e disse: “Encontre as partes que, por estarem perdidas, impediram que os seus sonhos se tornassem realidade. Erga-se com as condições que restaram. Sim, sempre será possível. No mais, acredite em você; ninguém vive os próprios dons sem o equilíbrio oriundo dessa fé em si mesmo. Em seguida, siga em frente à procura do tesouro oculto em seu âmago; transforme-se. Encontros, descobertas e conquistas; em resumo, são as etapas necessárias à viagem de todos nós”. Eram as palavras ditas, havia um ano, pelo sapateiro na oficina, cujo significado passara a servir de pedra angular para o Renê encontrar, descobrir e conquistar a si mesmo. Palavras que, por eu não ter entendido o alcance na época, acreditei não terem servido de acolhimento ao artista. Acolhemos quando abraçamos, mas também nas vezes que indicamos uma lanterna para alguém sair da escuridão. Se eu buscasse uma compreensão mais profunda, encontraria em mim o egoísta que ignorava e também me impedia de amar mais e melhor.

Em seguida, Renê disse que precisava ir. Tinha alguns assuntos para resolver sobre a exposição. Ao me ver surpreso, ele contou que tinha sido convidado para expor em uma miúda, porém charmosa galeria da cidade. A sua criação começara a se manifestar em produção. O trabalho na padaria em nada prejudicou a dedicação que passou a ter com a arte. Ao contrário, em um ano, finalizara quase duas dezenas de esculturas ao entender que o tempo é uma estrada peculiar. As obras eram variações sobre um mesmo tema, o pão da vida; o que explicava a escultura na oficina de Loureiro. Ele queria levar as pessoas a refletirem sobre a importância do assunto. Eu quis saber se ele estava preparado caso a reação do público não fosse a desejada. Renê disse que não importava. Esculpia como maneira de conversar com a própria alma. Nem todos entenderiam, ele sabia disso. No entanto, ainda que nenhuma delas fosse vendida, bastaria que conseguisse iluminar a trajetória de uma única pessoa com as suas obras para que alcançasse sucesso, que não está no dinheiro ou na fama, mas na luz que se acendeu. Então, sua alma restaria integrada à alma do mundo.

Animado com o novo ritmo dos dias, se despediu. Pela janela da padaria vimos quando, na praça em frente, se encontrou com a Lucy. Beijou-a suavemente nos lábios e se foram abraçados como um casal de namorados. Loureiro que até então nada dissera, terminou o último pedaço do sanduíche, e comentou: “Reencontraram-se; estão apaixonados”. Em seguida, acrescentou: “Mas não como antes. Conseguiram ir além de onde sempre estiveram. Renê entendeu que o egoísmo é sorrateiro como uma infiltração; a dificuldade e a demora em localizá-la termina por corroer o amor na sua estrutura se não for sanada com sabedoria. Talvez seja a principal causa dos desastres afetivos”.

Ainda atônito com o inusitado que parecia sem fim, falei que sempre acreditara que a existência do amor bastasse para sustentar um relacionamento. O sapateiro disse não com a cabeça, levantou a taça de vinho como se brindasse a vida, e pontuou: “Trata-se de um erro comum acreditar que o amor, pela sua simples presença, tudo irá solucionar. Embora o amor seja o eixo fundamental pelo qual caminhamos rumo à Luz, a evolução é a engrenagem vital do universo. Para não sucumbir, o amor precisa aprender a amar”.

O amor, um sentimento essencial, que eu conhecia desde sempre, mas ignorava os seus tons e nuances sem me dar conta dos prejuízos que isso me causava. Sugeri mais uma rodada de sanduíches e vinho. Havia muitas perguntas ainda sem respostas. O assunto é vasto. Talvez o sapateiro possa me ajudar.

 

 

 

 

6 comments

Terumi março 13, 2022 at 5:09 pm

Gratidão 🙏

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Magnum março 15, 2022 at 4:35 pm

Gratidão.

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Fernando março 18, 2022 at 10:53 pm

Gratidão profunda e sem fim amado irmão das estrelas, profunda e sem fim…que saudade que estava do nosso Loureiro….

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Lígia março 19, 2022 at 11:30 am

Texto brilhante!

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Andre Menezes março 23, 2022 at 3:31 am

Gratidão!

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Isabela Maria março 31, 2022 at 3:24 pm

Hoje aqui preparei o almoço ouvindo esta bênção! O verdadeiro Pão da Vida!!! E posso dizer que nunca saboreei um almoço assim: simples, degustativamente acolhedor! Gratidão!

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